20 outubro 2025

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 45: "A fiel disciplina da igreja"








Jorge F.Isah


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RESUMO DA AULA PASSADA:

Na aula passada falamos das marcas de uma igreja verdadeira, fundamentais para distingui-la em meio a tantas denominações que se auto intitulam cristãs.

1) A Fiel pregação do Evangelho - Estudamos que a marca principal é a pregação do Evangelho, não de qualquer "evangelho", mas o Evangelho de Cristo. Conforme o Senhor Jesus nos entregou, em Mt 28.18-20, a "Grande Comissão", a obra de proclamar a sua palavra e fazer discípulos, batizando-os.

2) A correta ministração das ordenanças -
- O Batismo - Mt 26.19-20;
- A ceia do Senhor - Lc 22.19-20.

Paramos no item 3) que é "O fiel exercício da disciplina".
Deixei, para os irmãos lerem durante a semana, dois versos, os quais leremos, novamente, agora:

Mt 18.15-20: "Ora, se teu irmão pecar contra ti, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, ganhaste a teu irmão; Mas, se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas toda a palavra seja confirmada. E, se não as escutar, dize-o à igreja; e, se também não escutar a igreja, considera-o como um gentio e publicano. Em verdade vos digo que tudo o que ligardes na terra será ligado no céu, e tudo o que desligardes na terra será desligado no céu. Também vos digo que, se dois de vós concordarem na terra acerca de qualquer coisa que pedirem, isso lhes será feito por meu Pai, que está nos céus. Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles.".

e

1Co 5.1-5: "Geralmente se ouve que há entre vós fornicação, e fornicação tal, que nem ainda entre os gentios se nomeia, como é haver quem abuse da mulher de seu pai. Estais ensoberbecidos, e nem ao menos vos entristecestes por não ter sido dentre vós tirado quem cometeu tal ação. Eu, na verdade, ainda que ausente no corpo, mas presente no espírito, já determinei, como se estivesse presente, que o que tal ato praticou, Em nome de nosso SENHOR Jesus Cristo, juntos vós e o meu espírito, pelo poder de nosso Senhor Jesus Cristo, Seja entregue a Satanás para destruição da carne, para que o espírito seja salvo no dia do SENHOR Jesus".

O que fica claro para os irmãos nesses textos?

Podemos falar em disciplina na igreja?

Como? Por que?

Primeiramente, no texto de Mateus, temos, uma ordem cronológica no evento:
- Um irmão encontra-se em pecado;

- Ele é advertido por outro irmão, mas persiste no erro;

- É chamado à presença de mais um ou dois para, novamente, ser exortado ao arrependimento;

- É levado finalmente à igreja, visto não ter se arrependido;

- Ainda assim, se insistir em permanecer no pecado, não arrepender-se, revelando um coração duro e empedernido, a igreja deve considerá-lo como gentio ou publicano, como um incrédulo.

Então, temos o Senhor Jesus investindo a igreja de autoridade, da sua autoridade, ao dizer que onde dois ou três estiverem deliberando em seu nome, ali ele estará [v.19-20].

E qual é a autoridade da igreja?

A que ela se refere?

Apenas em assuntos ligados à doutrina?

À ordem do culto?

Em deliberar como serão gastos os recursos financeiros da igreja?

Ou também nos assuntos relativos ao comportamento escandaloso de seus membros?

Há uma ideia de que esse verso se refere, pura e simplesmente, a qualquer reunião de crentes, o que é verdade, mas, no contexto de Mateus 18, especificamente, ele nos diz da autoridade com a qual Cristo investiu a igreja para deliberar, decidir, dirimir e aplicar todas as resoluções que foram tomadas no âmbito eclesiástico, inclusive, em relação à conduta dos seus membros. Mais do que estar no nosso meio [não entendam que eu esteja menosprezando ou conferindo somenos importância a um fato essêncial e fundamental: Cristo presente no seio da sua igreja], deu-nos a autoridade para resolver todas as questões relativas à igreja, inclusive, a de juízo, em e pelo seu nome. Quando decidimos algo, o fazemos em o nome de Cristo, e é ao nome dele que devemos honrar e ser leais.

Por isso Cristo está a tratar exatamente do pecado de um irmão e da necessidade de discipliná-lo. Não é algo ultrapassado, sem cabimento, nos dias atuais, pois os mandamentos do Senhor são eternos, e nenhum tratamento humano, seja filosófico, psicológico ou pedagógico pode suprimi-lo. De forma que a prática da disciplina eclesiástica é uma prova de maturidade, e amor cristão, tanto a Deus, como à igreja, como também ao irmão empedernido. Mantê-lo em seu pecado é dar um "empurrãozinho" em direção ao inferno; e se alguém considera o desdém como forma de acolhida, saiba que ele é prova maior de rejeição, de falta de apreço, e do exercício de um certo sentimento de superioridade que leva a não fazer caso da desgraça e do mal que acomete o pecador, mas também da igreja conivente com o seu pecado.

Quando se aborda o tema da disciplina estamos tratando diretamente de dois aspectos: a dependência do crente à igreja e a autoridade da igreja sobre o crente.

Alguém tem dúvidas de que seja isso o que o Senhor está dizendo?

Penso que a igreja, ao se omitir quanto a esse assunto, revela alguns sérios problemas.

Vamos agora a 1Co 5.1-5; não vou transcrevê-lo novamente.

O que salta aos olhos dos irmãos nesta passagem?

O pecado, escândalo, de um irmão levou Paulo a comparar a igreja com o mundo, ou melhor, a considerá-la mais pecaminosa do que o próprio mundo.

O que os irmãos entendem quando Paulo chama os Coríntios de estarem "ensoberbecidos" [vaidosos, orgulhosos, soberbos]? Não é esse o sinal de desprezo que apontei acima?

A soberba, que é um tipo de autossuficiência, de se considerar superior e até mesmo intocado ou inatingível, levou a igreja a:

- Negligenciar e fazer vistas-grossas ao pecado;

- Tornou-se conivente com o pecado, associando-se a ele;

- Faltou o temor do Senhor, levando-a à insensatez [Pv 9.10];

- Faltou-lhe amor e piedade para com o irmão em pecado, sabendo que a prática exercida por ele flagrantemente afrontava a Deus;

- E eles mesmos desprezavam o conselho divino e a sua Lei;

- Por fim, tudo isso levou a igreja de Corinto a não se envergonhar do pecado daquele irmão, de forma que ele permanecia no meio deles. Paulo alertou-os de que o orgulho impediu-lhes de tirá-lo dentre eles [v.2].

Em seguida, invocando a autoridade dado por Cristo, falando em nome dele, pela união que há entre o espírito de Paulo e dos irmãos de Corínto [aqui temos o princípio da igreja invisível, espiritual e universal da qual já falamos, e pela qual a igreja tem autoridade para deliberar em todos os assuntos a ela pertinentes, em conformidade com o que Cristo disse em Mt 18.19-20, em uma clara relação entre o que o Senhor disse para fazer e Paulo, como apóstolo da igreja, fez], ele entrega o tal irmão pecador a Satanás, para que a carne seja destruída e o espírito seja salvo [v.5].

O que lhes parece isso? A carne destruída e o espírito salvo pela disciplina da igreja? Mas como se dá isso? E, por que?

Paulo diz o mesmo de Himeneu e Alexandre em 1Tm 1.20, entregando-os, como blasfemadores, a Satanás. Aqui não é possível saber se ele já é salvo ou não, ainda que pareça que não. O certo é que ele comete um pecado grave, e ao que tudo indica foi exortado individualmente por um ou outro irmão, não arrependeu-se e insistiu na rebeldia. A igreja, portanto, tem o dever de excluí-lo, para que, estando fora da proteção da igreja, padeça nas mãos de Satanás e reconheça e busque a necessidade de perdão. Deus utilizará o diabo para disciplinar, na carne, àquele homem.

Hebreus 12.4-13 parece-me a chave da resposta. O apóstolo nos remete ao castigo que não é punitivo, mas educativo, pedagógico, como se gosta de dizer atualmente. Com o objetivo de sarar, de curar e, porque não, salvar o perdido. Veja bem, não é possível saber se aquele irmão era salvo ou não; o texto aponta para o fato dele não ser salvo, pois precisaria ser entregue ao diabo para que o fosse, mas o certo é que o castigo tinha o intento de curá-lo, e sará-lo do quê? De uma vida de pecados, empedernida, e que resistia ao arrependimento. E tudo isso é prova de amor de Deus para com os seus, e da igreja para com os irmãos.

Qual atitude é mais fácil para um pai que sabe do envolvimento do seu filho com as drogas, por exemplo? Procurar curá-lo [e muitas vezes com atitudes que vão contra a vontade rebelde do filho de se drogar, podendo ser a internação ou entregá-lo à justiça] ou abandoná-lo ao próprio vício, como muitos pais e mães agem atualmente? Em qual delas ele demonstrará amor verdadeiro? Em qual delas temos piedade e misericórdia?

Certa vez, vi uma declaração impactante de uma mãe na Tv. O seu filho estava envolvido em crimes, um jovem de 15 anos, e ela preferiu entregá-lo à polícia do que vê-lo caminhar a passos largos para a morte prematura. Ela disse ter tentado de tudo para demover o filho da vida de crimes, e não houve mudanças. Então, em um ato desesperado, ela o denunciou. Muitos a criticaram por essa atitude. Muitos entenderam que a posição dela não traria resultados à correção do filho. Mas, entendo que, na simplicidade daquela senhora, ela agiu como uma verdadeira mãe que ama o seu filho. Ela não foi negligente nem omissa, preferiu a dor de denunciá-lo, e levá-lo certamente à condenação, do que vê-lo viver uma vida miserável de crimes [e as suas lágrimas e a expressão de sofrimento eram evidências claras de como o seu coração estava partido e angustiado]. Ela vislumbrava, na prisão, uma chance que ele não teria levando a vida que levava do lado de fora... Ela entregava o filho à justiça para que pudesse resgatá-lo novamente. Tal qual Paulo diz, ela esperava que ele, no fim de tudo, se salvasse da vida criminosa e da morte iminente.

Então, temos que o princípio da disciplina da igreja visa o arrependimento, e deve ser aplicada em amor, piedoso e misericordioso, que levará, como consequência, caso o irmão se arrependa, ao perdão por parte da igreja e de Cristo [não nessa ordem, claro!].

E isso traz tristeza à igreja, e deve trazê-la também ao irmão em pecado, como Paulo diz em 2Co 2.4-11. Aqui, exatamente, encontramos uma outra exortação relativa a esse mesmo irmão, de que a igreja o perdoe e não aja de maneira excessivamente dura para não aumentar-lhe a tristeza. Ao que tudo indica, esse irmão se arrependeu, mas a igreja não parecia muito disposta a perdoá-lo e tratá-lo novamente como a um irmão. Tem-se de ter cuidado para não extrapolar o ensinamento bíblico e não agirmos no mesmo nível de carnalidade do pecador.

Mas, e se o irmão não se arrepender? Como deve proceder a igreja? Este é o segundo objetivo da disciplina, manter a unidade da igreja. Um exército dividido, sem um objetivo comum, o de glorificar a Deus, não subsiste.

Leia o que Paulo diz em 2Tm 3.1-9 e 4.2-4; e veja o que João, chamado de o apóstolo do amor, nos diz em sua Carta segunda, versos 9-11:

“Todo aquele que prevarica, e não persevera na doutrina de Cristo, não tem a Deus. Quem persevera na doutrina de Cristo, esse tem tanto ao Pai como ao Filho. Se alguém vem ter convosco, e não traz esta doutrina, não o recebais em casa, nem tampouco o saudeis. Porque quem o saúda tem parte nas suas más obras”.

A palavra “prevaricar” significa proceder mal; transgredir a moral, os bons costumes: aquele jovem prevaricara. Vti: Faltar a, deixar de cumprir: Prevaricar aos deveres, às promessas. Corromper, perverter. 

É preciso entender que o crente não pode nem deve ser motivo de escândalos para a igreja, o que, consequentemente, significa escândalo para o nome de Cristo. Por isso há tantas e tantas advertências ao comportamento e modos de agir do cristão. É nosso dever testemunhar, não somente com palavras mas com atos, tudo o que nos foi entregue por Deus como a sua vontade, de que sejamos irrepreensíveis e exemplos para os homens e a sociedade. Ser luz no mundo não é outra coisa a não ser guia-lo [o mundo] na verdade, tirando-o das trevas, do engano, da mentira e do pecado. Mas se nós mesmos estamos em trevas, como podemos enxergar o caminho, seguir a Cristo, e levar outros conosco?

Para finalizar, entendemos que a disciplina pode ser exercida de várias formas, desde a simples exclusão do irmão das atividades de liderança, o não participar da Ceia do Senhor, até, em último caso, a exclusão do rol de membresia. Mas estes serão assuntos que abordaremos mais detidamente à frente. Por hora, é-nos necessário ter a certeza de que a disciplina eclesiástica é bíblica e uma das mais importantes marcas de uma igreja verdadeiramente cristã.

Notas:  Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico 

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ÁUDIO DA AULA 45: 

13 outubro 2025

Fazenda Africana ou África Minha - Karen Blixen

 




Jorge F. Isah

 

 

      Li, há uns 10 anos, “A Festa de Babette”, de Karen Blixen e, para ser sincero, não me lembro de praticamente nada. Foi um livro que passou por mim como se não tivesse passado, ou o fizesse tão rapidamente que não deixou rastros. Isso acontece por vários motivos, sejam pessoais (alguma instabilidade ou preocupação momentânea que bloqueia a concentração), descuido ou pouco caso, e o corre-corre da vida que nos impede às vezes de atender ao realmente importante. Não sei precisar ao certo a razão, mas durante os anos seguintes nutri o desejo de relê-lo.

      Como coleciono exemplares da Cosac & Naify, quase um fetiche, caiu-me às mãos o volume “A Fazenda Africana”; comprei-o e fui baixar a versão em ebook para não desgastar o livro físico, já que estava impecavelmente novo e não foi nada barato (também não foi absurdo; considerei a compra quase uma pechincha, dado os valores exorbitantes que exemplares da Cosac ganharam no mercado). Pois bem, encontrei a tradução portuguesa, “África Minha”, e por ser lusitana (Tradução de Ana Falcão Bastos), animei-me ainda mais; tenho apreciado muito essas traduções e, quando possível, opto por elas.

      Já nas primeiras páginas, Karen fisgou-me. Não conseguia abandonar a leitura. A prosa fluída, às vezes poética, autobiográfica, e sobretudo cativante em toda a sua simplicidade aparente (mas não se engane!), fez-me refém. A história se desenvolve no período 10-30 do século passado, quando a autora viveu no Quênia, próximo de Nairobi, onde, juntamente com o marido (citado pouquíssimas vezes; era um espectro a pairar na minha mente, sem nunca se materializar), adquiriu uma fazenda para cultivo de café.

Dizer que a protagonista é a própria África, não seria exagero. Karen está a compor um canto, elegia, entre sabores e dissabores, do continente ao qual, desde o primeiro contato, tornou-se parte de si e jamais esqueceu. As narrativas, algumas sequenciais e outras de fatos isolados, espalham-se pelas mais de 400 páginas numa mistura equilibrada de elementos a tornar o leitor correligionário de suas aventuras. Perdi a conta das vezes em que me deparei a rir de situações onde a graça sutil estava implícita, como uma pérola oculta na ostra. Era a maneira de presentear os leitores, sem exageros e gargalhadas fáceis. 




      Pertencente à aristocracia dinamarquesa (uma baronesa, casada com Bror Blixen-Finecke), as histórias tratam dos nativos (Kikuys, Masais e Somalis), colonos, imigrantes (indianos, europeus, árabes, etc), que povoaram a região à procura de oportunidades. É nítido o amor e carinho com que Karen se refere ao povo e ao país, ainda que utilize imagens, digamos, nada politicamente corretas, a causar a ojeriza dos “mimizentos” de hoje. As comparações, antes de serem depreciativas, em sua maioria são carinhosas e reais. Evidente haver paralelos negativos, porque sempre, em todo lugar, conviverão pessoas boas,  dignas e seus opostos. Ela não glamouriza ou doura a pílula, como se fossem coitadinhos, merecedores de pena. Não. A interação é zelosa, onde ela e outros “estrangeiros” se integram sem maiores problemas aos indígenas. Não é uma relação de domínio e submissão, mas de aliança. Ela aprende com os colonos que aprendem com ela, respeita sua cultura e eles não parecem se preocupar com a dela. O ambiente é de nítida liberdade, sem imposições e exigências, num clima de cuidado, harmônico e pacífico.

Alguém pode aventar: “Mas a perspectiva é da autora e não dos nativos!”. Tudo bem, é possível, afinal Karen é quem descreve os eventos e mais ninguém daquele círculo se importou em fazê-lo; então, por que duvidar?... Outro detalhe é: qual a possibilidade de, décadas depois, o bairro onde existia a fazenda ter o nome da sua proprietária? E um museu, também? “É pouco, e não quer dizer nada!”, garantiria o alguém. Mas para anos de revoluções, massacres e guerras intermináveis, patrocinadas por movimentos ideológicos, etnias que se odeiam e querem a eliminação dos seus opostos, o nome Blixen ainda ser respeitado no lugar é quase um milagre.




      Os “mimizentos” de plantão se horrorizam com as caçadas (ela, perita caçadora), a injustiça (chamada tantas vezes pelos nativos para julgar conflitos), os jogos de poder (sem entrar em conchavos e sempre visando o melhor para “a sua gente”), mas esquecem-se de o mundo nunca ter sido diferente disso, e de não ser o parque de diversões que os pretensos reconstrutores da terra imaginam; até, por que, mesmo em parques temáticos e recreativos, acidentes e mortes acontecem. E estamos a falar de um ambiente altamente controlado, a fim de se evitar os sinistros... Convenhamos, o fato de Karen ser mulher, independente e capaz de gerir uma fazenda, nos primórdios do século XX, não é pouca coisa. E eles mesmos, os defensores do “feminismo”, se veem a atacar o relato de uma mulher independente, não eivada por discursos vazios e sem sentido, mas que, sem alardes e panfletagem, viveu-o. É por essas e outras que não entendo a mente pós-moderna e sua quase suprema incoerência, ou melhor, as artimanhas arrivistas enquanto posam de morais e éticos. Mas deixemo-los com seus desvios e lapsos.

      As descrições são bucólicas, quase líricas. Pode-se dizer, saudosistas. A África é a sua terra prometida. A sua Canãa. O lugar onde esperava permanecer até a morte e lá ser enterrada; do qual foi exilada e viveu a diáspora na Europa. Mais do que vislumbre e expectação, aquele lugar e, mesmo anos após partir, era onde deveria permanecer. Ela foi peregrina em terras estranhas, em todas e todas, a buscar o Éden. Certamente, as montanhas Ngong foram o lugar mais próximo de alcançá-lo.   

O livro trata do triângulo amoroso, se é que podemos chamar, entre Karen, o marido e o amante, Denys George Finch-Hatton, ex-piloto da RAF (Royal Air Force), na Primeira Grande Guerra. Porém, de forma tão sutil que alguns menos atentos podem sequer perceber. Na verdade, o marido, um mulherengo empedernido que transmitiu sífilis à esposa, se separou dela em 1920, e se divorciou em 1925. Além de ser adúltero, era um péssimo gestor. Karen, ao assumir as rédeas da fazenda, manteve-a em seu poder por 17 anos. Após a separação, o relacionamento com o militar, antes uma amizade, tornou-se amoroso; como disse, é sutilmente descrito na trama. O mais “santarrão” dos leitores pode ficar tranquilo: não existem detalhes, cenas ou descrições inflamadas, sequer são aventadas. São tão rarefeitas como a presença diáfana do esposo.

É um livro de paixões e temores, mas acima de tudo real.

Não cheguei a ler os livros de Hemingway sobre as suas aventuras africanas. Estão na lista, à espera. Na adolescência me deparei com alguns relatos de Livingstone, suas expedições e descobertas no coração da África Meridional. Ele, missionário e pesquisador, empreendeu várias incursões ao coração do continente e tinha um amor genuíno e sincero para com os povos subsaarianos. Então, os relatos de Blixen não têm correlações com outras obras e leituras, nem como as comparar. Rendo-me, tão somente, ao seu talento e ao fato de ser uma exímia contadora de histórias, com uma simplicidade enganadora, já que as camadas do texto vão se revelando durante a narrativa: o seu cristianismo, a sua independência, a sua solidão, e a “maternidade tardia”, algo possível de se ver no relacionamento com muitas das crianças e jovens, o envolvimento afetivo e emocional.

Nesse contexto, é possível notar que o trato era quase familiar e, como tal, carregado de alegrias, decepções, tristezas e solidariedade. Em tempos e cenários tão artificialmente concebidos como os atuais, as histórias descritas de “África Minha” apresentam-se legítimas, intensas, palpáveis e, em muitos sentidos, puras.

Karen Blixen vislumbrou o paraíso, desejou-o, e se viu nele. Mesmo sem a perfeição original, o Éden era possível. E, talvez, ela esteja agora, neste momento, ainda mais maravilhada.

 

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Avaliação: (****)

Título: África Minha

Autora: Karen Blixen

Editora: Clube do Autor

Páginas: 381

Sinopse: “Em 1914 Karen Blixen chegou ao Quénia com o marido para gerir uma plantação de café Imediatamente conquistada pelo mágico local, Karen Blixen passou aí os anos mais felizes da sua vida, até ao colapso da plantação Foi então forçada a regressar à terra natal, a Dinamarca, onde escreveu África Minha. Escrito com uma vivacidade que nos faz sonhar imediatamente com o continente africano, o livro retrata um estilo de vida desaparecido para todo o sempre.” 




06 outubro 2025

A Morte na Morte de Charles Kirk

 






 

 

Jorge F. Isah

 

 

Em Minas, existe um ditado muito repetido: “Não faça aos outros o que não gostaria que fizessem com você!”. Na verdade, ele tem relação direta com os ensinamentos bíblicos: Em todas as coisas façam aos outros o que vocês desejam que eles lhes façam. Essa é a essência de tudo que ensinam a lei e os profetas.

Por que estou a falar deste assunto?

Bem, no último dia 10, o apologista cristão e conservador, Charles Kirk, foi executado na Universidade de Utah, enquanto promovia um debate com alunos. O fato em si já seria lamentável, se não acontecesse em um local onde, originalmente, seria apropriada a troca de ideias. A escola perdeu boa parte do seu significado ao impedir e censurar vozes discordantes. Mas, quando adversários intelectuais são ameaçados, perseguidos ou sofrem agressões, algumas culminando em mortes, é necessário rever não somente as diretrizes educacionais como humanas.

Basta uma ligeira olhadela nas redes sociais para constar que existe uma comoção, a tristeza por um ato covarde, frio e inumano. Porém, não é difícil encontrar aqueles que se refestelam, soltam foguetes e vibram com o heroísmo do pusilânime “sniper”. O homem, sentado em uma cadeira, cuja arma era o microfone, foi abatido sem nenhuma piedade. A camiseta branca com os dizeres “Freedom” manchou-se de sangue. Os filhos e a esposa não terão mais o seu querido... e o mundo perdeu mais uma vez, mesmo que os “festeiros” não se deem conta disso.  

Podia ser qualquer um, até mesmo o pior entre os piores criminosos: por que eu me alegraria com a sua morte?  Por que eu a desejaria? Por que insuflaria outros a querê-la? Se o próprio Santo diz: Não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva. Convertei-vos, convertei-vos dos vossos maus caminhos.

A questão é: qual o direito de alguém, seja lá quem for, se alegrar com a morte do outro? Não digo fomentá-la, mas divertir-se, desdenhar a vida, sendo ela o bem mais precioso que se tem?... É incoerente desfrutar o que tem e impedir que outros desfrutem também. É imoral se refestelar nos prazeres, atrevido, diante dos que pranteiam. É como aquele que acabou de comer caviar e arrota sobre o faminto. Mas ele mesmo, o arrotador, pede a morte do comedor de caviar e se esquece de que ele também comeu e, pior, arrotou.  O exemplo do Rei Davi, confrontado pelo profeta Natan, deveria servir de exemplo e de como responder ao pecado.

Estamos na era da morte. Nunca ela foi tão quista. Antes temida, e quanto mais longe melhor, hoje virou fetiche. Quase um objeto de culto. Com isso, a vida perdeu vigor e enfraqueceu-se, ainda que a maioria não tenha consciência.

Esses eventos têm origem no afastamento de Deus, na perda da moral absoluta e no coletivismo que faz o indivíduo ser uma peça descartável e substituível: ele nunca será ele mesmo, mas um ectoplasma do grupo. A consciência, sentimentos, emoções vêm de fora, e independente da bagunça interior, acabam por se acomodar no caos. E o caos não produz ordem, espiritual e mental, mas faz com que tudo ganhe o rótulo de “sobrevivência”, de conservar o pouco que resta. E o que resta? Quase nada. Virtudes e qualidades são desprezadas porque não se tem aquilo que nunca viu ou soube existir. Ficam apenas os monturos nos escombros. E deles saem apenas refugos e escórias.

O homem agoniza na frívola empáfia. E quando deseja ou se diverte com a morte de alguém, está se condenando a si mesmo à morte. Resta-nos, aos que amam a vida, e ela está em Cristo antes de estar em qualquer outro, pedir para que o morto ressuscite. Do contrário...

Talvez seja pedir muito. Talvez seja pedir o que não se pode dar; e não sabem que o desejo pela morte é um mau-agouro. Não algo místico, mas real, que pode levar a uma guerra indesejada; a qual ele sequer imaginou. Uma luta fadada ao desastre, que pode arrolar outros, mas na qual ele morre junto, pouco a pouco, enquanto perde a humanidade, a capacidade de ser humano e, como tal, a imagem de Deus, transfigurando-se na serpente do Éden ou um demônio qualquer.  

Temo por eles, pois não têm esperança além do que veem: o tiro, a prisão, a tortura, a segregação, a humilhação, a indiferença, o riso besta e bestial. Tudo fruto do medo; o pavor de perder aquilo que nunca teve ou pode ter...

Porque a qualquer que não tem, até o que parece ter lhe será tirado.


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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

17 setembro 2025

Prefácio de Sammis Reachers ao livro "Na Eira de Ornã"

 





Sammis Reachers*




Contista, romancista e crítico literário, em Jorge F. Isah o poeta é persona bissexta. E isto, esse chegar pela tarde, é excelente tanto para o beletrista quanto para os bons vinhos: seu verso é maturado e emancipado, sob a têmpera de suas muitas influências e leituras.

Sua poesia rompe e funda seu rumo, feito jangada de Caronte no rio metafísico; uma poética que emana e dimana uma angústia soteriológica. Percepções e sentimentos patentes em um poema como Confessionale, onde legendários pecadores da literatura (Mr. Hyde, Fausto, Dorian Gray) preparam sua atuação, sua farsa citadina, enquanto "a beleza [jaz] exilada em manguezais":

  

Confessionale

 

Cores, formas, geométricas e desiguais

Ruídos, cantos, afinados e dissonantes

Ouro, prata, cobres e portais

Récita, danças, frenesi e variantes

 

Ruas e casas em silêncio mortal

Corações e mentes presos em cofres

A beleza exilada em manguezais

 

Hyde está sobre holofotes

Fausto cala-se atrás do ralete

Gray compõe seu make-up

 

Versos eliotianos lindam versos surrealistas, num jogo hermético tão caro ao poeta, desde seus livros anteriores, A Palavra Não Escrita e Arpeggios Insulares. Ao leitor, embarcado/aluado na fruição, cabe desnudar-se para abarcar, com tal potência, a nudez do autor, suas flores e descalabros. Na fímbria entre brumas e rochas, podemos ouvir a voz dos moralistas franceses como La Bruyère e La Rochefoucauld, vaticinando contra os vícios deste mundo em descendente torvelinho.

Signos afloram em tensa caudalosidade, o vernáculo entrega seus frutos à dor do poeta e sua cisma, convidando o leitor ao labirinto. Ao seu final, a luz de Cristo, início e fim da vida e do poema, dá seu vaticínio e irrompe do verboverso de ardências deste “Na Eira de Ornã”.


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* - Sammis Reachers é editor, poeta, escritor e autor premiado. Entre os seus muitos trabalhos na Web destacam-se: Azul Caudal, Mar Ocidental e Poesia Evangélica.

Leia a crítica ao seu livro "A Ordem Luterana da Cruz Combatente".  

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04 setembro 2025

Homem Invisível - Ralph Ellison

 







  Jorge F. Isah

 

 

Este é o que se poderia dizer um daqueles livros que caiu no meu colo, sem indicação, sem ouvir falar, ou ter referência. Em minhas constantes buscas por títulos, e por descontos (ninguém é de ferro!), na última Prime Day deparei-me com ele e, à primeira vista, me remeteu à ficção científica de Wells. Mas não era. Escrito por um tal Ralph Ellison, cujo nome não me dizia nada. Li a sinopse e me interessei pela história, já com receio de ser um daqueles livros lançados como “antirracistas” (a encher as livrarias), e que são apenas panfletários e libelos muito mal escritos.

Estava às voltas com outros volumes, e reservei-o para a semana seguinte, furando, mais uma vez, a longa fila que se arrasta. Não falo de design de capas, porque o assunto é sempre o texto, história e narrativa, mas achei a da José Olympio artisticamente bela e sugestiva. O designer conseguiu captar a essência do livro e, quase, porque não deixa de ser uma falácia, pôde garantir: “uma imagem vale mais do que mil palavras”.

Dias depois, comecei a lê-lo. Já no início, me vi capturado pela introdução; o final do 1º parágrafo diz:

Levei muito tempo para constatar, e com doloroso efeito rebote de expectativas, aquilo que todo mundo parece saber desde o nascimento: que não sou nada além de mim mesmo. Primeiro, porém, eu tive de descobrir que era um homem invisível”.

A ideia da busca pela identidade e um lugar no mundo parecem óbvias, e vai se confirmando no progresso da leitura. Contudo, vai além.


    Pode-se ver que, decorridos 20 anos desde o início da trajetória do personagem (o narrador está na casa dos 40), outros elementos se agregaram.

Negro, nascido em meio ao racismo americano, filho de pobres, e uma ligação intensa com o avô falecido, que parece uma espécie de voz interior; ele vai para a faculdade de negros onde experimenta na própria pele o jogo de poder, e, nesse campo, não existe cor, mas  apenas o rigoroso código sem o qual é impossível progredir social e intelectualmente. O reitor e o conselho, ocupados por negros, pareciam cumprir à risca as últimas palavras do avô, no leito de morte:

“Filho, depois de eu partir, quero que continue nesta luta. Nunca lhe contei, mas nossa vida é uma guerra, e tenho sido um traidor desde que nasci, um espião no território inimigo, desde que deixei minha arma, na época da Reconstrução. Viva com a cabeça na boca do leão. Quero que você os derrote de tanto dizer sim, que os solape com sorrisos escancarados, concorde com eles até a morte e a destruição, deixe-os engolirem você até vomitarem ou explodirem” (pg. 50).  

Parece o delírio de um velho moribundo, mas, depois de andar algumas páginas, refleti que, no final das contas, o que o ancião queria dizer era: “Não ligue para o que pensam de você, engane-os, iluda-os, mas saiba no íntimo quem você é!”. O narrador estava convicto de já ser assim:

“Na cidade, eu era elogiado pelos homens mais brancos do que lírios. Era considerado um exemplo de conduta desejável, exatamente como meu avô fora” (pg. 51).

A morte do velho causou-lhe um impacto profundo, porém, mais do que ela, as suas últimas palavras “causaram tanta ansiedade que foi como se ele não tivesse morrido” (pg. 51).

Em meio às dúvidas, havia a certeza de não se deixar vencer tão facilmente.

Em uma sequência desastrosa, ao ciceronear o principal filantropo da instituição, Sr. Norton (branco), se vê expulso pelo reitor, dr. Bledsoe (negro), preocupado em resguardar a sua posição e confirmar, diante de negros e brancos, a sua capacidade diretiva. Com isso, parte para Nova York com várias cartas assinadas pelo reitor e endereçadas a contatos, onde o jovem proscrito será apresentado como candidato a alguma vaga. Na verdade, todo o arranjo do reitor é uma farsa, e somente depois de perambular por salas de espera, secretárias impessoais e respostas mecânicas, à espera de resultado, descobre que fora enganado. Veio-lhe então a imagem quase onipresente da estátua de bronze do fundador da faculdade, “o símbolo de um Pai frio, as mãos esticadas no espantoso gesto de levantar um véu que tremula em rígidas dobras metálicas acima do rosto de um escravo ajoelhado; e me vejo desorientado, incapaz de decidir se o véu está realmente sendo levantado ou abaixado mais firmemente para o lugar onde se achava, se presencio uma revelação ou uma cegueira mais eficiente.” (pg. 73).

A saga errática do nosso herói continua em situações bizarras, engraçadas e absurdas. Contra elas, por mais que tente reagir, é sempre capturado, subjugado; mas o orgulho e o ardor ingênuo encarregaram-se de ocultar ou, ao menos, não deixar evidente o descontrole que tinha sobre a própria vida. Estivesse incógnito ou evidente, ele era uma peça de uma engrenagem gigante, cuja função, ação e propósito desconhecia e, nem mesmo o tempo foi capaz de elucidar. O sistema dava a cada um ares de importância, enquanto os mantinham em cabrestos; e por mais que se grite, mova e queira vislumbrar o panorama, consegue-se ver tão somente o que as viseiras permitem, os arreios indiquem, e o chicote não reprima.

No fundo, toda essa movimentação social na busca do Éden, ou da Babel, é fruto da cegueira e arrogância. Ninguém pode salvar quem não se considera perdido ou condenado; resta que, primeiro, o faça a si mesmo. De alguma forma, a busca do protagonista é essa: ao descobrir o seu lugar no mundo, constata que não é definitivo, e antes mesmo de ocupá-lo, já preparam o seu substituto. A chama de vida é possível, e ele a encontra na pessoa da velha Mary mas, seduzido pela notoriedade e a promessa de mais disso e daquilo, abandona-a, e o que poderia ser uma fogueira acolhedora e aprazível se apaga em quase um piscar de olhos... A ilusão está por toda parte, e quase sempre o que os olhos veem o coração não sente ou compreende. A verdade é que o mundo, tal qual o conhecemos, é por demais inóspito se estivermos a olhar apenas o que podemos e queremos. Assim, não é difícil ser amealhado e enganado por ideologias, falsos ídolos, apóstatas e messias de araque, que engabelam com a promessa doidivana de um paraíso na terra, ao alcance das mãos, mesmo sem ninguém o ter alcançado.



Num pulo, se vê envolvido em uma teia, aliciado por um grupo de ideólogos, a “Irmandade”, cujos objetivos não têm nada a ver com a aparente causa negra, mas se utiliza dela para alcançá-los. Jack passa a ser o seu mentor e com ele tem acesso a tudo o que é mais apetecível à alma: imoralidade, aética, conforto e algum poder. Antes é preciso transformá-lo à imagem do movimento, e até mesmo um codinome (um pseudônimo) o obriga a rejeitar o próprio nome, a abandonar e não ter contato com a família, amigos e nada que o remeta ao passado; resta apenas o futuro e o presente a construí-lo. Em busca da identidade, precisa negar a pessoalidade. Na construção do novo homem, o antigo deve ser destruído. Não há lugar para sentimentos, arrependimento ou hesitação. A Irmandade precede o indivíduo; e ele não pode sobreviver, para que ela não morra. Enquanto houver resquícios do velho homem, não se pode construir o novo e forjar uma nova identidade. Ela é coletiva, e o nosso homem “pré-invisível” está disposto ao sacrifício, a fim de trabalhar pela causa do seu povo. Com o tempo, nota no irmão Jack (o líder do movimento) os mesmos sintomas que tornam Bledsoe um homem temido. Se a Irmandade é um grupo de racionais-materialistas, os inimigos mais ferrenhos, Ras e seu clã, são anarquistas. Em ambos, é perceptível o desprezo a qualquer valor minimamente humano; nada além do poder, e estamos conversados.

Existem momentos, mais do que o normal, em que ele se faz de pobre-coitado, e começa um chororô repetitivo e monótono. Não é algo que comprometa a história, mas que poderia ter menos visibilidade. Contudo, entendo a intenção, como um primeiro estágio do homem impotente e infantil diante da loucura ou injustiça do mundo; mas são notas que o excesso faz destoar.

Em suas quase 600 páginas, Ellison narra as desventuras e frustrações do nosso herói, ou anti-herói se preferir, até o ponto em que, em mais um descuido, se viu lançado na mais plena escuridão, e dela não quis mais sair. Quem se importa com um homem invisível?  Mas, do seu bunker, ele ouve e sabe o que se passa com outros tantos homens como ele, que, se pudessem escolher, não o seguiriam em sua jornada, afinal, não se segue a quem não se enxerga.

A conclusão final de Ralph Ellison, a última frase, nos conclama à reflexão: “Quem sabe se, nas frequências mais baixas, eu falo também por você?”.

Pretensioso?!... Esta é, contudo, a vantagem de ser invisível.

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Classificação: (****)

Título: Homem Invisível

Autor: Ralph Ellison

Editora: José Olympio

Páginas: 574

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21 agosto 2025

Peter Sellers: O vendedor de risos

 





Jorge F. Isah



É provável, em algum momento, você ter ouvido falar ou visto um dos filmes de Peter Sellers. Por três décadas, ele formatou o estilo de humor refinado, sofisticado, meio desastrado, às vezes irônico (muito humor negro), em outros, caricato, mas sempre genial. É considerado justamente um dos maiores humoristas de todos os tempos. Versátil, se aventurou por todos os gêneros interpretativos e artísticos, inclusive imitando celebridades, tocando bateria em sketchs e shows e, vez ou outra, atuava em papéis dramáticos. Como ótimo artista, se saia bem em quase tudo, do ponto de vista profissional, enquanto a vida privada se arrastava aos trancos e barrancos, em meio aos constantes ataques de insegurança e depressão. Certa vez, em uma entrevista, disse não saber o porquê de as pessoas gostarem do seu trabalho, pois odiava praticamente tudo o que fazia; à revelia das inúmeras influências deixadas em astros como Steve Martin, Robin Williams, Martin Shore, Dudley Moore e tantos outros.

Nascido em Hampshire, Inglaterra, Richard Henry Sellers, era filho de Peg Marks e Bill Sellers, artistas de Vaudeville. Desde pequeno, Richard, cujo irmão mais velho Peter nasceu morto, atuava nos palcos juntos aos pais e o avô. Estranhamente, todos na família o chamavam de Peter (talvez venha daí a sua vulnerabilidade emocional), então decidir-se pelo nome artístico não foi involuntário, apesar de haver aquela fibra de ironia e sarcasmo, típico dos seus maneirismos pessoais e caprichos estilísticos. Tornou-se no que já era ou ficou conhecido: Peter Sellers.

Dos palcos, após um interlúdio na II Grande Guerra, quando se voluntariou, migrou para o rádio onde misturava música e esquetes cômicas e entre seus colegas estava o ator Dudley Moore. Contratado pela BBC por causa do seu talento nato em imitar vozes de famosos, teve grande sucesso sob a batuta do produtor George Martin, que se tornaria o “quinto” Beatles, de quem Peter seria grande amigo.




Estreou no cinema em 1951, em Penny Points to Paradise, daí em diante não parou mais, intercalando a presença nas telas com a dublagem de filmes. Teve o primeiro grande papel em 1955, ao viver um dos criminosos em Quinteto da Morte, The Ladykillers, cujo remake teve Tom Hanks no papel principal (no Brasil, Matadores de Velhinhas, de 2004). Como protagonista estreou em 1959 em I'm All Right Jack, cujo título em português, horrível por sinal (a capacidade tupiniquim de quase invariavelmente torná-los ruins), chamou-se Papai é nudista.

Dirigiu a primeira película em 1961, Mr. Topaze (BR:A solidão da riqueza), onde também estrelou.

Contudo, o auge artístico se deu nas décadas de 1960 e 1970 onde construiu sua carreira magistral e insólita, primeiro sob a direção de Stanley Kubrick, em Lolita (baseado na obra homônima e polêmica de Vladimir Nobokov), em 1962, e posteriormente Black Edwards, com quem faria diversos filmes, inclusive a saga A pantera cor-de-rosa, onde viveria o atrapalhado e desastrado Inspector Closeau, certamente o mais icônico dos seus personagens. A partir dessa estreia, em 1963, Sellers se tornaria um nome mundialmente conhecido e seria um enorme sucesso de bilheteria.

Em 1964, novamente sob a regência do exigente e meticuloso Kubrick, Peter interpretaria três personagens, um alemão, um britânico e um americano, em Dr. Fantástico (Dr. Strangelove of: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), e lhe renderia a indicação ao Oscar de melhor ator, por sua marcante e polivalente atuação.




Ele contracenou com Sofia Loren (por quem se apaixonou, mas não foi correspondido), Goldie Hawn, o amigo Ringo Star, George Sanders, Shirley McLaine, Ursula Andress, David Niven, Robert Loggia, Melvyn Douglas, Richard Basehart, George C. Scott, Shelley Winters, James Mason e tantos outros renomados nomes do cinema mundial, como os diretores Vittorio de Sica, Billy Wilder e John Huston, além de ser o primeiro homem a figurar na capa da revista Playboy (vestido, claro!).

Enquanto obtinha estrondoso sucesso, por causa do seu temperamento difícil e encrenqueiro, fruto da insegurança e depressão, diretores e atores começaram a evitá-lo, rejeitando-o nos sets, e filmes antes inevitavelmente destinados a ele tomaram outros rumos pelas mãos de atores não tão geniais, mas menos voláteis. Instável emocionalmente, começou a beber e usar drogas, a culminar em grave lesão cardíaca decorrente de uma série de enfartes quase fulminantes, em 1964, obrigando-o a implantar um marca-passo em 1970... o seu coração jamais seria o mesmo.

Casou-se quatro vezes, sempre em relacionamentos tumultuados, nos quais os filhos acabaram sendo envolvidos e, quando morreu, a despeito de tentar anular o testamento em favor da última esposa, a atriz Lynne Frederick, ela acabou herdando toda a sua fortuna após a morte e todos os seus direitos autorais, cabendo a cada um dos filhos o valor simbólico de $800,00 (oitocentas livras esterlinas)... Mas, chega de fofocas, porque não é o que nos interessa...




Sellers foi um dos maiores gênios do cinema, e as atuais gerações pouco ou nada sabem dele. Infelizmente, a sutileza, a ironia e, porque não, o sarcasmo de seus personagens, roteiros e direção, deram lugar às peças vulgares, infames e apelativas (óbvio, não estou a generalizar, mas em sua maioria são estúpidas e sem graça) de forma que, se não fosse por um ou outro remanescente do velho humor, mesmo remodelado, o que é natural, o estilo já estaria morto. Neste aspecto, o politicamente correto, o outro lado da moeda, trabalha sempre contra o bom humor, ao enrijecer obstinadamente o discurso ideológico e pragmático. Aos apreciadores da arte, resta deliciarem-se com as fitas de Sellers, Lewis, Stan e Lauren, Cantiflas, Oscarito e Grande Otelo, Buster Keaton, Chaplin, Irmãos Marx, Mel Brooks, Golias e tantos quanto o cinema e os palcos produziram e quase não forjam mais. Ainda nos restam Rowan Atkinson, Steve Martin, Martin Shore, Jerry Seinfeld e Woody Allen, e mais uns poucos.

Peter Sellers morreu em 1980, aos 54 anos, vítima de... enfarte, desta vez fulminante. Em seu testamento pediu a execução da canção de Glenn Miller, In the Mood, em seu último ato de cínico deboche, pois odiava a música. Assim viveu e morreu o grande astro, sempre com aquela pontinha de humor inigualável, perspicaz e quixotesco.

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Citações de Peter Sellers (traduzidas livremente)



· “Sou como todos os humoristas, me divirto enquanto estou atuando”

· “Conversa como televisão em lua-de-mel... é desnecessária!”

· “As pessoas nadarão na merda se lhe derem um pouco de dinheiro”

· “Quando uma amiga se torna muito cara, não há outra escolha senão se casar com ela”

· “Houve um tempo em que meu "eu" autêntico existia, mas eu o removi cirurgicamente”

· “Aprendamos a apreciar os momentos em que descobrimos as árvores e podemos recolher os frutos”

· “Cavalheiros, vocês não podem lutar aqui! Esta é a Sala de Guerra!”

· “Quem eu sou no mundo? Ah, um grande quebra-cabeças!”

· “Não será fácil, isto porque sempre fracasso onde outros têm sucesso!”

· “Se não consigo encontrar um jeito de viver comigo mesmo, não posso esperar que alguém viva comigo!

· “Como ‘Dr. Strangelove’ em ‘Dr. Strangelove’ (1964)”

· “Algumas formas da realidade são tão horríveis que recusamos enfrentá-las, a menos que sejamos encurralados nela pela comédia. Considerar qualquer assunto inadequado para a comédia é admitir a derrota”

· “Ver-me como uma pessoa na tela deveria ser a experiência mais monótona que você deveria querer ter” 

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Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga 



14 agosto 2025

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 44: "Marcas da Igreja Verdadeira"


 
Jorge F. Isah






Um  rápido resumo da aula anterior:
  • Igreja como organismo [corpo vivo]; 
  • Igreja como organização [corpo local]; 
  • Igreja invisível e universal [todos os santos em todos os tempos];
  • Igreja visível [onde há os joio e o trigo, ainda que o trigo seja verdadeiramente a parte visível da igreja universal.
Como distinção, temos o exemplo do ladrão da cruz, que faz parte da igreja universal, a igreja espiritual que reúne os crentes de todos os tempos, mas não chegou a fazer parte da igreja visível, do corpo local.

Mt 13.24-30; Mt 13.47-50; Mt 3.12


As Marcas da Igreja

1. AS MARCAS DA IGREJA EM GERAL.

PERGUNTAS: 
  • PODEMOS DIZER QUE HÁ MARCAS QUE INDIQUEM UMA VERDADEIRA IGREJA? 
  • QUAIS? 
  • ATÉ QUE PONTO ELAS SÃO NECESSÁRIAS PARA QUE SEJA PARTE DA IGREJA DE CRISTO?
a. Sentia-se pouca necessidade destas marcas quando a igreja era claramente uma só. Mas, quando surgiram as heresias, tornou-se necessário indicar certas mudanças pelas quais se pudesse reconhecer a igreja verdadeira. Enquanto a igreja crescia, cresciam também as investidas do inimigo para destruí-la. Já, à época dos apóstolos, um número grande e heresias conviviam com a sã doutrina; elas mesmas, as igrejas heréticas, se autodenominavam igrejas de Cristo, como membros do Corpo. Portanto, com o passar do tempo, foi necessário indicar algumas marcas pelas quais se pudesse distinguir a igreja verdadeira da falsa.

Havia um padrão da verdade ao qual a igreja deve corresponder, e reconheciam esse padrão na Palavra de Deus.


2. AS MARCAS DA IGREJA EM PARTICULAR.

a. A fiel pregação da Palavra. [Mt 28.18-20 – Evangelização e discipulado]
Esta é a mais importante marca da igreja. A fiel pregação da Palavra é o grande meio para a manutenção da igreja e para habilitá-la a ser a mãe dos fiéis. Que esta é uma das características da igreja transparece em passagens como:
  • Jo 8.31, 32, 47; 14.23; 1 Jo 4.1-3; 1Ts 5.21; Ap 2.2
Atribuir esta marca à igreja não significa que a pregação da Palavra na igreja terá que ser perfeita para que ela possa ser considerada como igreja verdadeira. Tal ideal é inatingível na terra; só se pode atribuir à igreja uma pureza "incompleta" de doutrina.

Uma igreja pode ser relativamente impura em sua apresentação da verdade, sem deixar de ser uma igreja verdadeira. Paulo escreve à igreja de Corinto, onde os pecados campeavam, e muitos deles eram mais vergonhosos e infames do que os produzidos pelos ímpios, contudo, ainda assim, o apóstolo se refere a ela como igreja, e aos seus membros como irmãos. 

Mas há um limite além do qual a igreja não pode ir, na apresentação errônea da verdade ou em sua negação, sem perder o seu verdadeiro caráter e tornar-se uma igreja falsa. É o que acontece quando artigos fundamentais de fé são negados publicamente, e a doutrina e a vida já não estão sob o domínio da Palavra de Deus.

E é a palavra de Deus que retém as instruções instituídas pelo próprio Deus e que devem ser cumpridas pela igreja – At 2.41-42.
[Esta passagem sugere a seguinte ordem: conversão, batismo, admissão à igreja local, andar ordeiro, observância da Ceia do Senhor e da oração coletiva]

b) Ordenanças: Ordem, lei, prescrição [1Co 1.2].
Que a reta administração das ordenanças é uma característica da igreja verdadeira, segue-se da sua inseparável conexão com a pregação da Palavra e de passagens como:
  • Mt 28.19; Mc 16.15, 16; At 2.42; 1 Co 11.23-30.

1- Batismo: Mc 16.15-16; Mt 26.19-20.

2- Ceia do Senhor – Lc 22.19-20; 1Co 11.23-26

C) O fiel exercício de disciplina.

É deveras essencial para a manutenção da pureza da doutrina e para salvaguardar a santidade dos sacramentos. As igrejas que relaxarem na disciplina, descobrirão mais cedo ou mais tarde em sua esfera de influência um eclipse da luz da verdade e abusos nas coisas santas. Daí, a igreja que quiser permanecer fiel ao seu ideal, na medida em que isto é possível na terra, deverá ser diligente e conscienciosa no exercício da disciplina cristã. A Palavra de Deus insiste na adequada disciplina a ser exercida na igreja de Cristo - Mt 18.15-18;

  • 1 Co 5.1-5, 13 [1Tm 1.20 e 2Co 2.4-11] – Igreja como proteção ao crente. Paulo parece dizer que aquele que é expulso do convívio da igreja está entregue a Satanás, ao mundo, estando sujeito a ele e sem a proteção do Corpo.
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Notas: 1- No áudio, os pontos apenas tocados levemente aqui são expostos mais detidamente, sobre as marcas primordiais da verdadeira Igreja de Cristo. 2- A seção 2C, que se refere à disciplina eclesiástica será discutida mais à frente, em outra aula.
3- É discutida também a questão dos sacramentos [batismo e ceia], do ponto de vista católico e reformado, como meios de graça, os quais, nós, batistas, não reconhecemos, já que os temos por ordenanças e, em momento algum, acreditamos que eles tragam uma "sobre-graça" sob a "graça", e que sejam os aspectos visíveis da "Aliança" ou "Pacto".
4- No áudio, confundi Tomás de Aquino com Agostinho, o qual formulou primeiramente a doutrina dos sacramentos, ainda que o primeiro tenha-o seguido na questão. 
5- Faço também, na aula, um pequeno comentário sobre o filme "Redenção", cujo título em inglês é "Machine Gun Preacher", analisando o batismo bíblico.
6 - Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico  
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ÁUDIO DA AULA 44: