04 setembro 2025

Homem Invisível - Ralph Ellison

 







  Jorge F. Isah

 

 

Este é o que se poderia dizer um daqueles livros que caiu no meu colo, sem indicação, sem ouvir falar, ou ter referência. Em minhas constantes buscas por títulos, e por descontos (ninguém é de ferro!), na última Prime Day deparei-me com ele e, à primeira vista, me remeteu à ficção científica de Wells. Mas não era. Escrito por um tal Ralph Ellison, cujo nome não me dizia nada. Li a sinopse e me interessei pela história, já com receio de ser um daqueles livros lançados como “antirracistas” (a encher as livrarias), e que são apenas panfletários e libelos muito mal escritos.

Estava às voltas com outros volumes, e reservei-o para a semana seguinte, furando, mais uma vez, a longa fila que se arrasta. Não falo de design de capas, porque o assunto é sempre o texto, história e narrativa, mas achei a da José Olympio artisticamente bela e sugestiva. O designer conseguiu captar a essência do livro e, quase, porque não deixa de ser uma falácia, pôde garantir: “uma imagem vale mais do que mil palavras”.

Dias depois, comecei a lê-lo. Já no início, me vi capturado pela introdução; o final do 1º parágrafo diz:

Levei muito tempo para constatar, e com doloroso efeito rebote de expectativas, aquilo que todo mundo parece saber desde o nascimento: que não sou nada além de mim mesmo. Primeiro, porém, eu tive de descobrir que era um homem invisível”.

A ideia da busca pela identidade e um lugar no mundo parecem óbvias, e vai se confirmando no progresso da leitura. Contudo, vai além.


    Pode-se ver que, decorridos 20 anos desde o início da trajetória do personagem (o narrador está na casa dos 40), outros elementos se agregaram.

Negro, nascido em meio ao racismo americano, filho de pobres, e uma ligação intensa com o avô falecido, que parece uma espécie de voz interior; ele vai para a faculdade de negros onde experimenta na própria pele o jogo de poder, e, nesse campo, não existe cor, mas  apenas o rigoroso código sem o qual é impossível progredir social e intelectualmente. O reitor e o conselho, ocupados por negros, pareciam cumprir à risca as últimas palavras do avô, no leito de morte:

“Filho, depois de eu partir, quero que continue nesta luta. Nunca lhe contei, mas nossa vida é uma guerra, e tenho sido um traidor desde que nasci, um espião no território inimigo, desde que deixei minha arma, na época da Reconstrução. Viva com a cabeça na boca do leão. Quero que você os derrote de tanto dizer sim, que os solape com sorrisos escancarados, concorde com eles até a morte e a destruição, deixe-os engolirem você até vomitarem ou explodirem” (pg. 50).  

Parece o delírio de um velho moribundo, mas, depois de andar algumas páginas, refleti que, no final das contas, o que o ancião queria dizer era: “Não ligue para o que pensam de você, engane-os, iluda-os, mas saiba no íntimo quem você é!”. O narrador estava convicto de já ser assim:

“Na cidade, eu era elogiado pelos homens mais brancos do que lírios. Era considerado um exemplo de conduta desejável, exatamente como meu avô fora” (pg. 51).

A morte do velho causou-lhe um impacto profundo, porém, mais do que ela, as suas últimas palavras “causaram tanta ansiedade que foi como se ele não tivesse morrido” (pg. 51).

Em meio às dúvidas, havia a certeza de não se deixar vencer tão facilmente.

Em uma sequência desastrosa, ao ciceronear o principal filantropo da instituição, Sr. Norton (branco), se vê expulso pelo reitor, dr. Bledsoe (negro), preocupado em resguardar a sua posição e confirmar, diante de negros e brancos, a sua capacidade diretiva. Com isso, parte para Nova York com várias cartas assinadas pelo reitor e endereçadas a contatos, onde o jovem proscrito será apresentado como candidato a alguma vaga. Na verdade, todo o arranjo do reitor é uma farsa, e somente depois de perambular por salas de espera, secretárias impessoais e respostas mecânicas, à espera de resultado, descobre que fora enganado. Veio-lhe então a imagem quase onipresente da estátua de bronze do fundador da faculdade, “o símbolo de um Pai frio, as mãos esticadas no espantoso gesto de levantar um véu que tremula em rígidas dobras metálicas acima do rosto de um escravo ajoelhado; e me vejo desorientado, incapaz de decidir se o véu está realmente sendo levantado ou abaixado mais firmemente para o lugar onde se achava, se presencio uma revelação ou uma cegueira mais eficiente.” (pg. 73).

A saga errática do nosso herói continua em situações bizarras, engraçadas e absurdas. Contra elas, por mais que tente reagir, é sempre capturado, subjugado; mas o orgulho e o ardor ingênuo encarregaram-se de ocultar ou, ao menos, não deixar evidente o descontrole que tinha sobre a própria vida. Estivesse incógnito ou evidente, ele era uma peça de uma engrenagem gigante, cuja função, ação e propósito desconhecia e, nem mesmo o tempo foi capaz de elucidar. O sistema dava a cada um ares de importância, enquanto os mantinham em cabrestos; e por mais que se grite, mova e queira vislumbrar o panorama, consegue-se ver tão somente o que as viseiras permitem, os arreios indiquem, e o chicote não reprima.

No fundo, toda essa movimentação social na busca do Éden, ou da Babel, é fruto da cegueira e arrogância. Ninguém pode salvar quem não se considera perdido ou condenado; resta que, primeiro, o faça a si mesmo. De alguma forma, a busca do protagonista é essa: ao descobrir o seu lugar no mundo, constata que não é definitivo, e antes mesmo de ocupá-lo, já preparam o seu substituto. A chama de vida é possível, e ele a encontra na pessoa da velha Mary mas, seduzido pela notoriedade e a promessa de mais disso e daquilo, abandona-a, e o que poderia ser uma fogueira acolhedora e aprazível se apaga em quase um piscar de olhos... A ilusão está por toda parte, e quase sempre o que os olhos veem o coração não sente ou compreende. A verdade é que o mundo, tal qual o conhecemos, é por demais inóspito se estivermos a olhar apenas o que podemos e queremos. Assim, não é difícil ser amealhado e enganado por ideologias, falsos ídolos, apóstatas e messias de araque, que engabelam com a promessa doidivana de um paraíso na terra, ao alcance das mãos, mesmo sem ninguém o ter alcançado.



Num pulo, se vê envolvido em uma teia, aliciado por um grupo de ideólogos, a “Irmandade”, cujos objetivos não têm nada a ver com a aparente causa negra, mas se utiliza dela para alcançá-los. Jack passa a ser o seu mentor e com ele tem acesso a tudo o que é mais apetecível à alma: imoralidade, aética, conforto e algum poder. Antes é preciso transformá-lo à imagem do movimento, e até mesmo um codinome (um pseudônimo) o obriga a rejeitar o próprio nome, a abandonar e não ter contato com a família, amigos e nada que o remeta ao passado; resta apenas o futuro e o presente a construí-lo. Em busca da identidade, precisa negar a pessoalidade. Na construção do novo homem, o antigo deve ser destruído. Não há lugar para sentimentos, arrependimento ou hesitação. A Irmandade precede o indivíduo; e ele não pode sobreviver, para que ela não morra. Enquanto houver resquícios do velho homem, não se pode construir o novo e forjar uma nova identidade. Ela é coletiva, e o nosso homem “pré-invisível” está disposto ao sacrifício, a fim de trabalhar pela causa do seu povo. Com o tempo, nota no irmão Jack (o líder do movimento) os mesmos sintomas que tornam Bledsoe um homem temido. Se a Irmandade é um grupo de racionais-materialistas, os inimigos mais ferrenhos, Ras e seu clã, são anarquistas. Em ambos, é perceptível o desprezo a qualquer valor minimamente humano; nada além do poder, e estamos conversados.

Existem momentos, mais do que o normal, em que ele se faz de pobre-coitado, e começa um chororô repetitivo e monótono. Não é algo que comprometa a história, mas que poderia ter menos visibilidade. Contudo, entendo a intenção, como um primeiro estágio do homem impotente e infantil diante da loucura ou injustiça do mundo; mas são notas que o excesso faz destoar.

Em suas quase 600 páginas, Ellison narra as desventuras e frustrações do nosso herói, ou anti-herói se preferir, até o ponto em que, em mais um descuido, se viu lançado na mais plena escuridão, e dela não quis mais sair. Quem se importa com um homem invisível?  Mas, do seu bunker, ele ouve e sabe o que se passa com outros tantos homens como ele, que, se pudessem escolher, não o seguiriam em sua jornada, afinal, não se segue a quem não se enxerga.

A conclusão final de Ralph Ellison, a última frase, nos conclama à reflexão: “Quem sabe se, nas frequências mais baixas, eu falo também por você?”.

Pretensioso?!... Esta é, contudo, a vantagem de ser invisível.

________________________________

Classificação: (****)

Título: Homem Invisível

Autor: Ralph Ellison

Editora: José Olympio

Páginas: 574

________________________________


21 agosto 2025

Peter Sellers: O vendedor de risos

 





Jorge F. Isah



É provável, em algum momento, você ter ouvido falar ou visto um dos filmes de Peter Sellers. Por três décadas, ele formatou o estilo de humor refinado, sofisticado, meio desastrado, às vezes irônico (muito humor negro), em outros, caricato, mas sempre genial. É considerado justamente um dos maiores humoristas de todos os tempos. Versátil, se aventurou por todos os gêneros interpretativos e artísticos, inclusive imitando celebridades, tocando bateria em sketchs e shows e, vez ou outra, atuava em papéis dramáticos. Como ótimo artista, se saia bem em quase tudo, do ponto de vista profissional, enquanto a vida privada se arrastava aos trancos e barrancos, em meio aos constantes ataques de insegurança e depressão. Certa vez, em uma entrevista, disse não saber o porquê de as pessoas gostarem do seu trabalho, pois odiava praticamente tudo o que fazia; à revelia das inúmeras influências deixadas em astros como Steve Martin, Robin Williams, Martin Shore, Dudley Moore e tantos outros.

Nascido em Hampshire, Inglaterra, Richard Henry Sellers, era filho de Peg Marks e Bill Sellers, artistas de Vaudeville. Desde pequeno, Richard, cujo irmão mais velho Peter nasceu morto, atuava nos palcos juntos aos pais e o avô. Estranhamente, todos na família o chamavam de Peter (talvez venha daí a sua vulnerabilidade emocional), então decidir-se pelo nome artístico não foi involuntário, apesar de haver aquela fibra de ironia e sarcasmo, típico dos seus maneirismos pessoais e caprichos estilísticos. Tornou-se no que já era ou ficou conhecido: Peter Sellers.

Dos palcos, após um interlúdio na II Grande Guerra, quando se voluntariou, migrou para o rádio onde misturava música e esquetes cômicas e entre seus colegas estava o ator Dudley Moore. Contratado pela BBC por causa do seu talento nato em imitar vozes de famosos, teve grande sucesso sob a batuta do produtor George Martin, que se tornaria o “quinto” Beatles, de quem Peter seria grande amigo.




Estreou no cinema em 1951, em Penny Points to Paradise, daí em diante não parou mais, intercalando a presença nas telas com a dublagem de filmes. Teve o primeiro grande papel em 1955, ao viver um dos criminosos em Quinteto da Morte, The Ladykillers, cujo remake teve Tom Hanks no papel principal (no Brasil, Matadores de Velhinhas, de 2004). Como protagonista estreou em 1959 em I'm All Right Jack, cujo título em português, horrível por sinal (a capacidade tupiniquim de quase invariavelmente torná-los ruins), chamou-se Papai é nudista.

Dirigiu a primeira película em 1961, Mr. Topaze (BR:A solidão da riqueza), onde também estrelou.

Contudo, o auge artístico se deu nas décadas de 1960 e 1970 onde construiu sua carreira magistral e insólita, primeiro sob a direção de Stanley Kubrick, em Lolita (baseado na obra homônima e polêmica de Vladimir Nobokov), em 1962, e posteriormente Black Edwards, com quem faria diversos filmes, inclusive a saga A pantera cor-de-rosa, onde viveria o atrapalhado e desastrado Inspector Closeau, certamente o mais icônico dos seus personagens. A partir dessa estreia, em 1963, Sellers se tornaria um nome mundialmente conhecido e seria um enorme sucesso de bilheteria.

Em 1964, novamente sob a regência do exigente e meticuloso Kubrick, Peter interpretaria três personagens, um alemão, um britânico e um americano, em Dr. Fantástico (Dr. Strangelove of: How I Learned to Stop Worrying and Love the Bomb), e lhe renderia a indicação ao Oscar de melhor ator, por sua marcante e polivalente atuação.




Ele contracenou com Sofia Loren (por quem se apaixonou, mas não foi correspondido), Goldie Hawn, o amigo Ringo Star, George Sanders, Shirley McLaine, Ursula Andress, David Niven, Robert Loggia, Melvyn Douglas, Richard Basehart, George C. Scott, Shelley Winters, James Mason e tantos outros renomados nomes do cinema mundial, como os diretores Vittorio de Sica, Billy Wilder e John Huston, além de ser o primeiro homem a figurar na capa da revista Playboy (vestido, claro!).

Enquanto obtinha estrondoso sucesso, por causa do seu temperamento difícil e encrenqueiro, fruto da insegurança e depressão, diretores e atores começaram a evitá-lo, rejeitando-o nos sets, e filmes antes inevitavelmente destinados a ele tomaram outros rumos pelas mãos de atores não tão geniais, mas menos voláteis. Instável emocionalmente, começou a beber e usar drogas, a culminar em grave lesão cardíaca decorrente de uma série de enfartes quase fulminantes, em 1964, obrigando-o a implantar um marca-passo em 1970... o seu coração jamais seria o mesmo.

Casou-se quatro vezes, sempre em relacionamentos tumultuados, nos quais os filhos acabaram sendo envolvidos e, quando morreu, a despeito de tentar anular o testamento em favor da última esposa, a atriz Lynne Frederick, ela acabou herdando toda a sua fortuna após a morte e todos os seus direitos autorais, cabendo a cada um dos filhos o valor simbólico de $800,00 (oitocentas livras esterlinas)... Mas, chega de fofocas, porque não é o que nos interessa...




Sellers foi um dos maiores gênios do cinema, e as atuais gerações pouco ou nada sabem dele. Infelizmente, a sutileza, a ironia e, porque não, o sarcasmo de seus personagens, roteiros e direção, deram lugar às peças vulgares, infames e apelativas (óbvio, não estou a generalizar, mas em sua maioria são estúpidas e sem graça) de forma que, se não fosse por um ou outro remanescente do velho humor, mesmo remodelado, o que é natural, o estilo já estaria morto. Neste aspecto, o politicamente correto, o outro lado da moeda, trabalha sempre contra o bom humor, ao enrijecer obstinadamente o discurso ideológico e pragmático. Aos apreciadores da arte, resta deliciarem-se com as fitas de Sellers, Lewis, Stan e Lauren, Cantiflas, Oscarito e Grande Otelo, Buster Keaton, Chaplin, Irmãos Marx, Mel Brooks, Golias e tantos quanto o cinema e os palcos produziram e quase não forjam mais. Ainda nos restam Rowan Atkinson, Steve Martin, Martin Shore, Jerry Seinfeld e Woody Allen, e mais uns poucos.

Peter Sellers morreu em 1980, aos 54 anos, vítima de... enfarte, desta vez fulminante. Em seu testamento pediu a execução da canção de Glenn Miller, In the Mood, em seu último ato de cínico deboche, pois odiava a música. Assim viveu e morreu o grande astro, sempre com aquela pontinha de humor inigualável, perspicaz e quixotesco.

______________________________


Citações de Peter Sellers (traduzidas livremente)



· “Sou como todos os humoristas, me divirto enquanto estou atuando”

· “Conversa como televisão em lua-de-mel... é desnecessária!”

· “As pessoas nadarão na merda se lhe derem um pouco de dinheiro”

· “Quando uma amiga se torna muito cara, não há outra escolha senão se casar com ela”

· “Houve um tempo em que meu "eu" autêntico existia, mas eu o removi cirurgicamente”

· “Aprendamos a apreciar os momentos em que descobrimos as árvores e podemos recolher os frutos”

· “Cavalheiros, vocês não podem lutar aqui! Esta é a Sala de Guerra!”

· “Quem eu sou no mundo? Ah, um grande quebra-cabeças!”

· “Não será fácil, isto porque sempre fracasso onde outros têm sucesso!”

· “Se não consigo encontrar um jeito de viver comigo mesmo, não posso esperar que alguém viva comigo!

· “Como ‘Dr. Strangelove’ em ‘Dr. Strangelove’ (1964)”

· “Algumas formas da realidade são tão horríveis que recusamos enfrentá-las, a menos que sejamos encurralados nela pela comédia. Considerar qualquer assunto inadequado para a comédia é admitir a derrota”

· “Ver-me como uma pessoa na tela deveria ser a experiência mais monótona que você deveria querer ter” 

_____________________________ 

Nota: Texto publicado originalmente na Revista Bulunga 



14 agosto 2025

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 44: "Marcas da Igreja Verdadeira"


 
Jorge F. Isah






Um  rápido resumo da aula anterior:
  • Igreja como organismo [corpo vivo]; 
  • Igreja como organização [corpo local]; 
  • Igreja invisível e universal [todos os santos em todos os tempos];
  • Igreja visível [onde há os joio e o trigo, ainda que o trigo seja verdadeiramente a parte visível da igreja universal.
Como distinção, temos o exemplo do ladrão da cruz, que faz parte da igreja universal, a igreja espiritual que reúne os crentes de todos os tempos, mas não chegou a fazer parte da igreja visível, do corpo local.

Mt 13.24-30; Mt 13.47-50; Mt 3.12


As Marcas da Igreja

1. AS MARCAS DA IGREJA EM GERAL.

PERGUNTAS: 
  • PODEMOS DIZER QUE HÁ MARCAS QUE INDIQUEM UMA VERDADEIRA IGREJA? 
  • QUAIS? 
  • ATÉ QUE PONTO ELAS SÃO NECESSÁRIAS PARA QUE SEJA PARTE DA IGREJA DE CRISTO?
a. Sentia-se pouca necessidade destas marcas quando a igreja era claramente uma só. Mas, quando surgiram as heresias, tornou-se necessário indicar certas mudanças pelas quais se pudesse reconhecer a igreja verdadeira. Enquanto a igreja crescia, cresciam também as investidas do inimigo para destruí-la. Já, à época dos apóstolos, um número grande e heresias conviviam com a sã doutrina; elas mesmas, as igrejas heréticas, se autodenominavam igrejas de Cristo, como membros do Corpo. Portanto, com o passar do tempo, foi necessário indicar algumas marcas pelas quais se pudesse distinguir a igreja verdadeira da falsa.

Havia um padrão da verdade ao qual a igreja deve corresponder, e reconheciam esse padrão na Palavra de Deus.


2. AS MARCAS DA IGREJA EM PARTICULAR.

a. A fiel pregação da Palavra. [Mt 28.18-20 – Evangelização e discipulado]
Esta é a mais importante marca da igreja. A fiel pregação da Palavra é o grande meio para a manutenção da igreja e para habilitá-la a ser a mãe dos fiéis. Que esta é uma das características da igreja transparece em passagens como:
  • Jo 8.31, 32, 47; 14.23; 1 Jo 4.1-3; 1Ts 5.21; Ap 2.2
Atribuir esta marca à igreja não significa que a pregação da Palavra na igreja terá que ser perfeita para que ela possa ser considerada como igreja verdadeira. Tal ideal é inatingível na terra; só se pode atribuir à igreja uma pureza "incompleta" de doutrina.

Uma igreja pode ser relativamente impura em sua apresentação da verdade, sem deixar de ser uma igreja verdadeira. Paulo escreve à igreja de Corinto, onde os pecados campeavam, e muitos deles eram mais vergonhosos e infames do que os produzidos pelos ímpios, contudo, ainda assim, o apóstolo se refere a ela como igreja, e aos seus membros como irmãos. 

Mas há um limite além do qual a igreja não pode ir, na apresentação errônea da verdade ou em sua negação, sem perder o seu verdadeiro caráter e tornar-se uma igreja falsa. É o que acontece quando artigos fundamentais de fé são negados publicamente, e a doutrina e a vida já não estão sob o domínio da Palavra de Deus.

E é a palavra de Deus que retém as instruções instituídas pelo próprio Deus e que devem ser cumpridas pela igreja – At 2.41-42.
[Esta passagem sugere a seguinte ordem: conversão, batismo, admissão à igreja local, andar ordeiro, observância da Ceia do Senhor e da oração coletiva]

b) Ordenanças: Ordem, lei, prescrição [1Co 1.2].
Que a reta administração das ordenanças é uma característica da igreja verdadeira, segue-se da sua inseparável conexão com a pregação da Palavra e de passagens como:
  • Mt 28.19; Mc 16.15, 16; At 2.42; 1 Co 11.23-30.

1- Batismo: Mc 16.15-16; Mt 26.19-20.

2- Ceia do Senhor – Lc 22.19-20; 1Co 11.23-26

C) O fiel exercício de disciplina.

É deveras essencial para a manutenção da pureza da doutrina e para salvaguardar a santidade dos sacramentos. As igrejas que relaxarem na disciplina, descobrirão mais cedo ou mais tarde em sua esfera de influência um eclipse da luz da verdade e abusos nas coisas santas. Daí, a igreja que quiser permanecer fiel ao seu ideal, na medida em que isto é possível na terra, deverá ser diligente e conscienciosa no exercício da disciplina cristã. A Palavra de Deus insiste na adequada disciplina a ser exercida na igreja de Cristo - Mt 18.15-18;

  • 1 Co 5.1-5, 13 [1Tm 1.20 e 2Co 2.4-11] – Igreja como proteção ao crente. Paulo parece dizer que aquele que é expulso do convívio da igreja está entregue a Satanás, ao mundo, estando sujeito a ele e sem a proteção do Corpo.
_____________________________________________________


Notas: 1- No áudio, os pontos apenas tocados levemente aqui são expostos mais detidamente, sobre as marcas primordiais da verdadeira Igreja de Cristo. 2- A seção 2C, que se refere à disciplina eclesiástica será discutida mais à frente, em outra aula.
3- É discutida também a questão dos sacramentos [batismo e ceia], do ponto de vista católico e reformado, como meios de graça, os quais, nós, batistas, não reconhecemos, já que os temos por ordenanças e, em momento algum, acreditamos que eles tragam uma "sobre-graça" sob a "graça", e que sejam os aspectos visíveis da "Aliança" ou "Pacto".
4- No áudio, confundi Tomás de Aquino com Agostinho, o qual formulou primeiramente a doutrina dos sacramentos, ainda que o primeiro tenha-o seguido na questão. 
5- Faço também, na aula, um pequeno comentário sobre o filme "Redenção", cujo título em inglês é "Machine Gun Preacher", analisando o batismo bíblico.
6 - Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico  
_______________________________________________ 

ÁUDIO DA AULA 44:

26 julho 2025

Um Conto de Duas Cidades - Charles Dickens

 





Jorge F. Isah

 


Havia tempos queria ler esse livro de Dickens. Como a minha lista de leituras sofre constantes mudanças, “Um Conto...” teve a frente furada por outros tantos e, somente agora, pude concluí-lo. Dickens está na relação dos meus cinco ou seis escritores prediletos. Às vezes, vai para os primeiros lugares do topo, em outras, desce. Mas sempre está lá, desde que li pela primeira vez “David Copperfield", o amor pela escrita do inglês só aumentou.

Para muitos, “Um Conto...” é um livro político, a falar da Revolução Francesa. Certamente, no contexto histórico da Revolução Francesa, o autor penetra o emaranhado de casuísmos e desastres enovelados no evento, um dos mais importantes. Mas, assim como “Os Demônios” de Dostoiévski, não está a falar apenas de um fato macabro e sinistro, do ponto de vista meramente político. Mais do que análises acerca de governos e seus sistemas, seja denunciar o totalitarismo revolucionário (no caso de ambos os livros), ele está a tratar da humanidade, em especial o homem e as circunstâncias a mover o seu íntimo em uma direção ou outra. Com isso, não estou a defender a tese de que as pessoas são aquilo que a sociedade quer, que o sistema quer. Quando se está em dúvida ou em um dilema, alguém sempre propõe: o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? E aqui é possível utilizar a mesma analogia para se referir a esta circunstância: é o homem quem molda a sociedade ou a sociedade quem o molda?

Parece uma proposição tola, mas não se pode deixar de reconhecer que, seja qual for a resposta, o indivíduo é, em última instância, o responsável por suas decisões, sejam de foro íntimo ou “forçadas” exteriormente. Em qualquer dos casos é possível decidir fazer ou não fazer. A resposta estará sempre, e para sempre, com o indivíduo.

Dickens, sem atender ao maniqueísmo usual dos nossos dias, descreve a opressão dos pobres diante da tirania aristocrática, mas que, quando assume o controle, os mesmos oprimidos espalham terror não somente aos aristocratas, mas a todos aqueles que não veem a execução e morte como únicas respostas. Se havia arbitrariedade de cima para baixo, ela se transformou em algo ainda mais despótica, e abusava não apenas os de cima, mas também os pares embaixo. Inimizades, desavenças e vinganças tornaram-se motivos para denunciar e enviar inocentes à guilhotina. Se pudessem, muitos ergueriam um altar para ela, não somente no coração, mas um monumento à posteridade, como o “deus” de uma época.

Em detalhes, vemos a barbárie, a indiferença e de como o homem pode se endurecer a ponto de se habituar com o mal sem considerá-lo mal mas bem, e o faça rotineiramente a ponto de ansiar e desejar mais e mais do seu veneno. O povo sublevado desconhece os limites até o sangue e a sua exposição pública. Cortar cabeças e exibi-las é tão comum como tricotar, beber uma taça de vinho, mastigar fumo ou acender um cachimbo. Até se embriagar ou intoxicar e repetir o mesmo no dia seguinte. Afinal, o que são 50, 60, 70 mortes? As ruas clamam por 100, se possível muito mais.

Esse é o pano de fundo, onde a vida dos personagens principais se misturam entre a Inglaterra e a França, entre a vida e a morte, a liberdade e a escravidão.

Contudo, Dickens não criou um tratado político ou social, mas escreveu sobre algo que conhece como ninguém: a alma. E, no final, é isso o que importa. Ele trata de arrependimento, perdão e martírio. Os acontecimentos são o mote para analisar e revelar o quão humano ou não se pode ser, ainda que santos tenham os seus pecados, e até mesmo em um demônio ou outro pode-se encontrar resquícios de compaixão; afinal, existe no pior dos homens a imagem de Deus, distorcida, embaçada, é verdade, mas está lá, debaixo de toneladas de lama e escombros, à espera de ser arrancada do abismo e trevas para a luz pelo Espírito.

Diferente do martírio que não se quer, daquele imposto e do qual não se pode fugir, por não haver outra opção, e resta submeter-se sem anuência, várias das personagens estão dispostas ao sacrifício, por escolha, vontade, decisão, em suprimir a si mesmas em prol do outro, o próximo. O mundo é feito de decisões, tanto para o bem quanto o mal, e a depender de quem as examina, o resultado pode ser reconhecido ou não. Existem várias formas de se encarar certas situações que, porém, estarão contaminadas por esse ou aquele preconceito, por essa ou aquela fraqueza. Independente de qual seja a sua avaliação, sem um princípio fundamental e verdadeiro, até mesmo a atitude mais benevolente e desinteressada se tornará ridícula. E a verdade, muito mais do que uma opinião, é construída em base objetiva e não subjetiva.

Você já ouviu isso alguma vez?

Via de regra, movido por estímulos egoístas e hedonistas, o homem moderno pouco se interessa pelo próximo além daquilo que pode extrair dele e do qual se beneficia, infelizmente. Não se satisfazer, ou melhor, desagradar-se, é algo quase inconcebível, se não a própria loucura. Quem não disse ou já ouviu: “importa eu ser feliz”?

Dickens reflete o evangelho, de que é possível haver paz no sofrimento, desde que seja o eflúvio a beneficiar quem se ama. Lembra-lhe Cristo e seu sacrifício?

A revolução francesa foi uma como tantas outras espalhadas na história. Trágica, cruel, hedionda, e a própria frase dos revolucionários: “Liberdade, igualdade e fraternidade, ou morte”(Sim, com o passar do tempo, o lema foi “dourado” a fim de não revelar toda a sua infâmia), demonstra o quão abjeto pode-se tornar um princípio, quando a vingança e reparação é o seu motriz. Por isso, se deve sempre ter cuidado com exigências e garantias de direitos, especialmente históricas, onde a injustiça, violência e criminalização fatalmente trocará apenas de lado.

Dickens está a nos revelar o homem tal como ele é, com seus medos, dúvidas, inseguranças e desejos. Nunca é fácil, ainda que algumas decisões pareçam ser, outras nem tanto, e haver aquelas quase impossíveis. Tomá-las mecanicamente, sem dilemas, é algo brutal e odioso, pois sempre tenderá ao caminho mais fácil, nem sempre o correto e moralmente desejável. A resposta é: tenho paz? E a paz não significa necessariamente tranquilidade e conforto. Não. Significa encarar o problema e até mesmo sofrer. No final, não somente vale a pena, mas é o retrato da verdade, definido na frase: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos.”(Jo 15:13); pois, “o amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha.” (1º Coríntios 13: 4-8).

No cenário de caos, violência e morticínio, Carton experimentou a paz, mesmo com salpicos escarlate:

“Isto que faço, aqui e agora, é a melhor coisa que jamais fiz na vida. E o repouso para onde vou, bem melhor que qualquer repouso que eu tivesse algum dia conhecido neste mundo”.

Nem mesmo o homem mais impiedoso e cruel resiste ao amor de Deus.

 

Nota: Talvez você não entenda o que escrevi, já que não fiz uma sinopse ou resumo do romance. Raramente o faço. Mas bastará lê-lo para confirmar o que digo.

_____________________________

Avaliação: (****)

Título: Um Conto de Duas Cidades

Autor: Charles Dickens

Editora: Nova Fronteira

Páginas: 502


18 julho 2025

Tanto por fazer - Theodore Dalrymple

 




Jorge F. Isah

 

 

      Dalrymple é mais conhecido por suas obras de não-ficção, sobre a pós-modernidade, onde aspectos culturais, sociais, educacionais e políticos apontam para um mundo em franca degradação. Ao aprofundar-se nas causas e consequências desse “projeto”, a dissociação da sociedade com a realidade torna-se impressionante, mas não impressionável, ao menos para os “engenheiros” sociais e sua militância histérica e simplória. Tudo precisa ser modificado para se encaixar aos novos tempos, e o começo sempre é com o desmonte da língua e o uso de termos e expressões que, se analisados, demonstrar-se-ão incompatíveis e heteróclitos, para dizer o mínimo.

       Cada vez mais, o homem tem se tornado ambíguo ao entregar-se a ideias vagas e atitudes problemáticas, a expô-lo em permanente risco. Não raro, crimes, brutalidade, ataques e mortes têm ganhado o apoio de tantos, enquanto pensar fora das caixas ideológicas é sinal de ameaça e extremismo. Nunca se viu um amor tão raivoso e hostil; e talvez essa seja a maior de todas as provas do declínio humano, a hipocrisia oficial e oficiosa, onde as palavras negam os fatos e atos, e vice-versa. Em suma, a modernidade se especializou em demolir a moral e a tradição, enquanto subestima a responsabilidade individual, inocenta o mal enquanto “demoniza” o bem. Em tempos em que a razão é tão alardeada, o sentimentalismo é a motivação de uma massa disposta a comprar o discurso de que “o importante é ser feliz”, mesmo que para isso outros tenham de se “matar” para arranhar a casca dos seus infortúnios. 

      O universo de Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels), como um dos grandes intelectuais modernos, penetra em várias nuances e camadas, e a minha tentativa é resumir, a quem o desconhece, elementos presentes em quase todas as suas obras (li 3, ao todo, além deste); e não há como negar: os seus esforços em colocar no papel tudo aquilo que o establishment quer ocultar, derivam de décadas de trabalho como psiquiatra na África e Inglaterra, onde, inclusive, serviu como médico em penitenciárias. Ele fala do que viu e ouviu; mas, qual o peso disso em nossos dias?  Nada que um joguinho de palavras não possa substituir ou camuflar.

      “Tanto por fazer”, seu primeiro romance, é o monólogo do personagem Graham Underwood, um serial killer, o “Monstro de Eastham”, condenado à prisão perpétua por matar e enterrar no próprio quintal 15 vítimas (zombeteiro, alega serem 22). Criado na pobreza e brutalidade, utiliza-se disso para justificar parcialmente seus crimes; o que não o impediu de, na juventude, ler tanto quanto podia os filósofos gregos, os clássicos, e praticamente tudo sobre os assuntos pelos quais se interessou e descobriu. Em relação à maioria das pessoas, pode-se considerá-lo culto e inteligente; um tipo semelhante, ou alude, ao “Conde Fosco” de Wilkie Collins, “Long John Silver” de Stevenson, e “Juiz Holden” de Cormac McCarthy, todos cruéis e sanguinários a despeito da erudição e intelecto apurado.

      Em princípio, pareceu-me o relato de um criminoso, mas, à medida em que se desenvolvia, o tom “humorístico”, irônico e sarcástico tomou conta da história. Os argumentos de Graham eram “ipsis litteris” as alegações utilizadas por governos e seus gestores, pela mídia e seus propagandistas, pelos políticos, juristas, professores e toda a “intelligentsia”, para anular a realidade e forjar outra segundo o discurso ideológico. A maioria não se apercebe disso, mas Graham notou e, não por acaso, levantou a lebre da contradição e irracionalidade do sistema, capaz de condená-lo pelos mesmos motivos que inocenta outros tantos milhares. Vá lá, nada do que ele diz, ou a maior parte, faz sentido, a não ser para ele mesmo que se considera injustiçado, já que se vê como benfeitor, disposto a fazer o que as vítimas não eram capazes (queriam, mas não podiam, segundo ele), dar-lhes alívio e eliminar um problema social.

“Não, senhoras e senhores, a conclusão é inescapável: pode-se ser um assassino ético. E eu fui um assim” (pg. 41)

      Ao abordar vários aspectos sociais, as relações entre os poderosos e a plebe, tece críticas ao comportamento geral, permeado pelo relativismo moral e a ideologia que tende a minimizar e até mesmo inocentar criminosos confessos. A pós-modernidade criou um mundo impessoal e cínico, irresponsável e injusto, inquisidor e hipócrita. E ao provocar, espera ganhar a compreensão e simpatia da assistência. 

        Em momento algum, Graham se considera culpado ou demonstra arrependimento; ele é orgulhoso e jacta-se da sua inteligência e cultura, dos seus vícios e crimes, da racionalidade, da ausência de sentimentalismo, tem ares superiores, despreza qualquer um com facilidade, faz analogias e compara situações que desnudam o rei, enquanto todos continuam a vê-lo vestido.

“Eu sou moralmente superior a vocês porque, como o médico que pratica a eutanásia, eu não mato ao acaso; eu escolho quem deve morrer pelas minhas próprias mãos, de acordo com critérios racionais e humanos... vocês matam como o louco que entra num supermercado e massacra os clientes até que ele seja subjugado ou mesmo executado.” (pg. 60)

Aqui, médico e assassino se juntam em um mesmo propósito, e se um pode ser justificado socialmente, por que não o outro? No frigir dos ovos, aborto, eutanásia e homicídio são faces da mesma moeda. E tudo isso reafirma o seu ponto: ele é a vítima, ou mais um a vitimizar-se; o algoz, a sociedade. Onde mesmo já lemos e ouvimos isso?

      Dalrymple detalha-o com esmero e cuidado, tal qual se biografa um progressista, um ativista, ou o mero replicador urbano. Graham é vegetariano, ateu e ecologista. Se considera íntegro, consciente, livre, ético, herói, e no direito de matar sem ter de dar satisfação.

“Permanece uma única possibilidade, portanto, para explicar a legitimidade da transformação do cidadão normal em um assassino aprovado: que alguém pode legitimamente se tornar um assassino desse tipo quando, e somente quando, ele julgar que é certo fazer isso.” (pg. 41)

      Ao se utilizar da mesma retórica vigente e comumente alardeada na educação, administração, mídia, artes, academia e tutti quanti, ele tenta em si o antídoto que neutralize o veneno enquanto morre. Seu jogo não é probatório da razão; é tomar do sistema as armas com as quais ele o atacará ou, em última instância, o fará igual a todos, e tornará todos iguais a si. Não existe a verdade, mas quem se apregoa verdadeiro, mesmo na enxurrada de mentiras e falácias.

“Não que eu espere que alguém tome conhecimento de minhas ideias, eu não sou tão ingênuo a ponto de pensar nisso. Um profeta não só não é honrado em sua própria terra, mas em sua própria época.” (pg. 105)

      Graham expõe a estupidez, de maneira hilária, das chamadas lutas pelas minorias. Em dado momento, o “lobby canhoto” exigiu das autoridades o direito de aposentar-se antes dos destros, porque segundo os dados (sempre as tais estatísticas das quais nunca se sabe nada) os canhotos viviam dez anos menos que os destros; o retrotreinamento dos falsos destros em verdadeiros canhotos, a fim de reconquistarem a própria identidade; e, por fim, acabar com a linguagem ofensiva manidestra, “e eliminar do departamento: termos como sinistro e gauche, carregados de conotações depreciativas a respeito dos canhotos e do canhotismo.” (pg. 111). Trocar a expressão “He left his flat” por “He vacated his flat” ou “He leaved his flat”, já que “left” em inglês serve tanto para designar o verbo deixar e o substantivo esquerda, é o teste máximo a sujeitar a maioria.

      O fato de se dirigir aos leitores como “senhoras e senhores” demonstra como está a utilizar de eufemismo, assim como o mainstream insiste em enfiar goela abaixo da sociedade regras e normas descabidas, tudo em nome de uma suposta igualdade e justiça.

O seu desprezo é notório:

“Elas (as pessoas) têm a força de um touro, o cérebro de um frango e a moral de uma hiena” (p. 131)

      Os argumentos se seguem, entre choro e ranger de dentes, e Dalrymple escreve, pelas mãos de um serial killer, a insanidade, o misto de burrice e insolência, com as quais se quer reconstruir este mundo. Nisto, acerta em cheio. Porém, as ideias e teses de Underwood se repetem, repetem (talvez, efeito pretendido pelo autor), e a maluquice “lógica” do bandido parece opiniões saídas de telejornais e dos apologistas do mal: pedagogos, juristas, terapeutas, e tantos outros incapazes de perceber a ferida e o sangue após atirarem nos próprios pés.

      O romance poder-se-ia chamar filosófico; e trata do homem na busca incessante por revoltas e motins, e acaba por se tornar, ao mesmo tempo, vítima e carrasco.

      O Éden pós-queda se repete, repete, e quase não se consegue mais sair dele.

________________________

Avaliação: (***)

Autor: Theodore Dalrymple

Editora: É Realizações

Páginas: 184

________________________


10 junho 2025

A Ilha do Tesouro ou Construindo Jackyll & Hyde




Jorge F. Isah


Depois de algumas décadas, refiz a leitura de “A Ilha do Tesouro”, meio que despretensiosamente, já que sempre considerei o livro infanto-juvenil (talvez por tê-lo lido umas duas ou três vezes até os 14 ou 15 anos). É um livro que prendeu-me a atenção pela volta à nostalgia, dos dias em que me imaginava um aventureiro corajoso e destemido em um mundo perigoso, mas completamente desconhecido. Devo tê-lo lido em dois ou três dias, nos momentos disponíveis entre o trabalho, os estudos e os afazeres familiares; o que acabava me deixando ansioso para uma folguinha e a volta à narrativa de Stevenson. 

Como curiosidade, vale lembrar que a ideia inicial de R. L. Stevenson era escrever uma história para o seu sobrinho (alguns julgam ser o enteado), algo que aguçasse a imaginação e fantasia do jovem; publicada inicialmente na forma de capítulos em uma revista da época, surgiu na forma de livro em 1883. 

A grande importância do livro, além do próprio enredo, foi trazer para o gênero (que não existia como tal) elementos que o caracterizariam depois. O mote de tudo é a busca pelo tesouro do “Capitão Flint”, um pirata terrível que supostamente havia enterrado uma grande fortuna. O motim dos tripulantes e a luta pela sobrevivência, enquanto a corrida ao baú continuava, são o pano de fundo para o desenrolar da estória. 

De um lado temos o “bem” nas pessoas do jovem Jim Hawkins (o narrador, em primeira pessoa), Capitão Smollett, Dr. Livesey e o Lorde Trelawney; em outro lado temos Hands, Papy, Arrow e o carismático, mas não menos temido, Silver. Ele é um caso à parte. E será dele a maior parte deste comentário. 

Situemos “A Ilha do Tesouro”, escrito cinco anos antes de “O Estranho Caso do Dr. Jackyll e o Sr. Hyde”, também conhecido como “O médico e o Monstro”. Encontramos na figura do cozinheiro Long John Silver (um disfarce para encobrir as suas reais intenções) características, ainda que preliminares, a comporem a personalidade central de Jackyll e Hyde, os conflitos entre o bem e o mal. É claro que nada disso é traçado de forma límpida, o tal do preto no branco, como se fossem meros espectros antagônicos, sem conflitos interiores, dúvidas e muito pouca certeza. Não sou dualista; entretanto, entendo que existe um conflito em curso na vida humana, ora pendendo para um lado, ora outro,  as vezes entrelaçados; ainda que boa parte das pessoas esteja em lados opostos, aparentemente, numa guerra de interesses. 

Silver é uma mente culta, de intelecto privilegiado, de retórica apurada, mestre tático, ardiloso, sedutor, capaz de convencer a pulga de que é o cachorro. Em contrapartida, é uma mente atormentada, capaz de cometer atrocidades e crimes sem um leve pestanejar, sem qualquer arrependimento ou compaixão. Da mesma forma que transparece eloquência, e uma boa dose de submissão aos seus empregadores, se o fim é apossar-se do tesouro de Flint, a fúria, a qualquer um que atravesse o  caminho, o tornará sanguinário e cruel. Nem mesmo o carinho e interesse quase paternal pelo jovem Jim (de certa forma, ainda que momentâneo, protegendo e ensinando-o os segredos da navegação) o impedirá de afastá-lo como um mero obstáculo a ser transposto até a posse do tesouro. 


Estando na meia-idade, e tendo uma perna-de-pau, sua força física, aliada a uma violência natural (sem nos esquecer da sua sagacidade), torna-o em um oponente quase imbatível. O temor pelo qual perpassam inimigos e aliados é completamente justificado pelo corpo e mente diabólicos de Silver. A luta dele é pela sobrevivência, mesmo que decida-se por um lado, e depois por outro, os interesses são os de preservar-se a todo custo, ainda que resulte em dupla traição: aos antigos inimigos feitos novos amigos, e aos antigos amigos em inimigos. 

Existe alguma semelhança na construção de Silver e Jackyll/Hyde, numa luta ferrenha entre as virtudes e os vícios, travadas na alma do mesmo homem. 

Na teologia cristã, e na vida de cristãos conversos, essa batalha se trava no âmago, em que, transformados e regenerados por Cristo, ainda se vive com a natureza pecaminosa. Em vários textos bíblicos temo-la como a “luta entre o espírito e a carne”. Essa é uma realidade vivenciada em maior grau pelos cristãos, cientes do que seja o bem e o mal, o moral e imoral, vida e morte. Mas mesmo os não-cristãos têm em si a centelha do Imago Dei; e trava-se a mesma disputa, por causa dos atributos divinos transmitidos ao homem quando da sua criação. 

Por que toquei nesse ponto? Porque a boa literatura não prescinde a realidade, muito menos a realidade moral, da qual Silver e Jackyll/Hyde são exemplos do que somos, fomos ou seremos, em algum momento e alguma proporção. Ainda que a crueldade de Silver e Hyde não aflore em nossos atos, a certeza é de que, sem os aspectos da moral divina a nos frear, seríamos tão ou mais sanguinários que eles. 

Se levarmos em consideração que “O Médico e o Monstro” é uma aventura pela loucura, cobiça e depravação de Jackyll, a pretensão de se fazer Deus, como certo personagem do Éden, “A Ilha do Tesouro” não é menos uma aventura pela alma conturbada de Silver do que a caça à riqueza e poder. Por isso, Long John se inscreve no rol dos grandes personagens literários de todos os tempos, como um alerta para vencermos o mal. Por pouco, não pagou por seus atos, debaixo da benevolência do Dr. Livesey e de um acordo interessante a ambos. Fica contudo a imagem de que o homem sem Deus pode resistir ao apelo do mal por algo de divino que ainda reside em seu ser, mas de que, invariavelmente, ele será apenas o que é, um fugitivo do bem a cair nas malhas ou teias dos vícios e pecados. 

Ben Gunn entendeu, à sua maneira, aplicar engenhosamente os princípios morais, negando o que fora, para aliar-se àqueles que o salvariam. Ainda que tenha voltado novamente ao vômito como o cão... tempos depois. Mas vou parar por aqui, senão um comentário pode se tornar um ensaio. E estou longe de escrevê-lo.


__________________ 

Avaliação: (****)

Título: A Ilha do Tesouro

Autor: Robert Louis Stevenson

Editora: L&PM Pocket

No. Páginas: 366



04 junho 2025

Judas, o Obscuro - Thomas Hardy

 




Jorge F. Isah

 

 

Judas é um tipo literário muito próximo de Jó, o personagem bíblico, em suas agruras, aflições e dores. Ao passo em que Jó sofre exatamente por sua fidelidade a Deus, e pelo desejo sincero de retidão e justiça (o que acaba por despertar a maldade objetiva de Satanás), Judas deseja apenas se ver livre das amarras sociais, numa espécie de autonomismo e independência, acreditando que suas decisões cabem apenas e exclusivamente a si mesmo, sem se importar, ou vislumbrar, com as consequências dos seus atos. A liberdade de Judas é pueril e enganadora; e arrasta-o para dentro do “Mal”.

O livro escrito por Thomas Hardy (um entusiasta apaixonado pelas ideias de Darwin) foi escrito em 1895, e carregado do naturalismo em voga, que não deixou de influenciar a literatura. Judas, por mais que tente, ao seu jeito, fugir do destino que lhe é traçado, sucumbe à sua inexorabilidade (referência ao personagem bíblico que traiu Jesus?)¹.

Como não sou de fazer resumo dos livros, também não o farei neste. Apontarei, contudo, o que mais me chamou a atenção, sem fazer spoilers, e sem desestimular o futuro leitor a emprenhar-se nas aventuras e desventuras do protagonista:

1)  Judas tenta “mudar” o seu destino, algo que os naturalistas, e, em especial Hardy, não crê possível. Para ele, Judas será o que é, nascido um pária, morrerá como tal.

2)  Ciente do que lhe espera, Judas apela para um autonomismo impossível, como se pudesse viver no mundo alheio ao mundo, sem que seus atos trouxessem consequências para si e seus queridos. Pouco a pouco, no decorrer da história, parte para a negação de Deus, fazendo do Cristianismo o “bode expiatório” do seu sofrimento. Em uma sociedade cristã, a culpa de todas as convenções e males se deve, portanto, ao Cristianismo, num apelo tresloucado à razão, como sendo-a santa, pura e perfeita; de maneira que, se todos os homens a aplicassem por completo, negando suas crenças e fé, todos seriam felizes. Acaba-se por criar e defender um dualismo “fé x razão” no enredo, o que é, no mínimo, reducionista, simplório.

3)  Hardy não escreveu uma única linha em que não destilasse a sua aversão ao Cristianismo, se não explicitamente (como em muitos diálogos e pensamentos), deixou-os subliminarmente evocados em ações e comportamentos. Porém, o Cristianismo descrito pelo autor é o que podemos chamar de “cristianismo secular” ou “nominal”, onde a aparência cristã é utilizada para justificar o farisaísmo e a hipocrisia do homem. Veja bem, farisaísmo e hipocrisia não são, nem de longe, aspectos do verdadeiro Cristianismo, mas a “máscara” daqueles que o próprio Senhor Jesus denunciou a seu tempo. Talvez, por isso mesmo, o autor escolheu o nome “Judas” para o seu protagonista que, mesmo vivendo por mais de três ano na companhia do Cristo, não se furtou a traí-lo.

4)  Ao fugir das convenções e de aspectos morais que regulavam o convívio social, se viu pagando um preço alto, vivendo como um “cigano”, juntamente com a sua família. O capricho de não querer se enquadrar ao escopo da sociedade colocou-o na situação mais miserável que o enquadramento social lhe destinaria. Em sua rebeldia juvenil e ingênua, acreditava possível passar ileso, sem traumas, quebrando regras. Judas não se considera responsável por si, mas “a chorar as pitangas” contra  o inimigo a destruir-lhe a felicidade: a sociedade; enquanto aplica-se em cavar para si e os seus o caminho de ruina. Este é um aspecto, em que o mal dentro do homem procura uma versão de mal fora de si, e o distrai e afasta do julgamento correto, da seriedade correta, da conclusão correta, onde o relativismo é o tiro certeiro no vazio, e o atirador se convence de ter acertado o alvo, como um Quixote a lutar com monstros e demônios apenas na imaginação.

5)  Outro aspecto, fruto dessa visão vitimista e malévola, inegável em Judas e sua esposa, Sue, é o orgulho e presunção de, ao não se curvarem aos hábitos da sua época, serem superiores aos seus concidadãos. A prova encontra-se nas inúmeras vezes em que exaltavam suas inteligências, raciocínios e um apelo à razão como a essência de todas as virtudes; por conseguinte, sendo os seus detentores, consideravam-se também especiais, enquanto eram apenas jactantes, desdenhosos e antipáticos.

6)  Nem mesmo o sacrifício pessoal, como o do prof. Richard, parece um ato isento de soberba, de autoexaltação obstinada, dominada pela “pureza” racional.

7)  Entretanto, não há como não se compadecer da “má-sorte” e os rumos que suas vidas tomaram. Ao ponto de, sem qualquer esperança, sobrar-lhes a loucura e o definhamento.

Judas, o obscuro, é um livro pessimista, áspero, quase inóspito. Mesmo nos momentos mais ternos e belos, a angústia, dúvidas e desespero estão entranhadas nas palavras, sentimentos e reações. Não é um livro fácil de ler, pois os lampejos de esperança são quase imediatamente dizimados por uma realidade sufocante e cruel, pela teimosia de não mudar ou ceder, e a incapacidade de tornar à vida, de encará-la de maneira menos fatalista, onde a liberdade individual, via de regra, é quase inexistente diante do apelo opressivo e coercitivo do destino.

Entretanto, é possível encontrar momentos de ternura, elegância, acabando por tornar verossímil os personagens e o enredo como um todo.

 A linguagem é simples, sem rebuscamentos. A narrativa parece se arrastar um pouco, especialmente na primeira metade do livro. Contudo, em sua bissecção final, ela flui sem delongas.

Judas, o obscuro é um bom livro? Sim, sem dúvidas. Para estar no rol dos melhores de todos os tempos, como comumente é citado nas grandes listas? Tenho dúvidas. Talvez, precise ruminar ainda um bom tempo a história, e, quem sabe, fazer uma nova leitura, no futuro. Certo é que, tirando a defesa “intransigente” do racionalismo e de um certo determinismo naturalista, a “aversão” ao Cristianismo (criando um estereótipo, uma espécie de espantalho), o livro se sai bem.

_______________________________ 

Notas: 1- Pode-se levantar a questão de que Judas traiu a si e sua família, como alguns apontam, mas não vejo fundamento. Por outro lado, é possível que Hardy tenha se utilizado do personagem Judas, do Novo Testamento, para dizer o quanto o caminho daquele era inevitalmente lúgubre, e, de alguma maneira, não se fez a devida justiça a ele; sua culpa não era inerente mas advinda do contexto social no qual vivia. Alguns teólogos e teóricos liberais concordariam, se não no todo em parte, com essa hipótese. 

_______________________________  

Avaliação: (***)

Autor: Thomas Hardy

Editora: Abril Cultural

Páginas: 461