26 julho 2025

Um Conto de Duas Cidades - Charles Dickens

 





Jorge F. Isah

 


Havia tempos queria ler esse livro de Dickens. Como a minha lista de leituras sofre constantes mudanças, “Um Conto...” teve a frente furada por outros tantos e, somente agora, pude concluí-lo. Dickens está na relação dos meus cinco ou seis escritores prediletos. Às vezes, vai para os primeiros lugares do topo, em outras, desce. Mas sempre está lá, desde que li pela primeira vez “David Copperfield", o amor pela escrita do inglês só aumentou.

Para muitos, “Um Conto...” é um livro político, a falar da Revolução Francesa. Certamente, no contexto histórico da Revolução Francesa, o autor penetra o emaranhado de casuísmos e desastres enovelados no evento, um dos mais importantes. Mas, assim como “Os Demônios” de Dostoiévski, não está a falar apenas de um fato macabro e sinistro, do ponto de vista meramente político. Mais do que análises acerca de governos e seus sistemas, seja denunciar o totalitarismo revolucionário (no caso de ambos os livros), ele está a tratar da humanidade, em especial o homem e as circunstâncias a mover o seu íntimo em uma direção ou outra. Com isso, não estou a defender a tese de que as pessoas são aquilo que a sociedade quer, que o sistema quer. Quando se está em dúvida ou em um dilema, alguém sempre propõe: o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? E aqui é possível utilizar a mesma analogia para se referir a esta circunstância: é o homem quem molda a sociedade ou a sociedade quem o molda?

Parece uma proposição tola, mas não se pode deixar de reconhecer que, seja qual for a resposta, o indivíduo é, em última instância, o responsável por suas decisões, sejam de foro íntimo ou “forçadas” exteriormente. Em qualquer dos casos é possível decidir fazer ou não fazer. A resposta estará sempre, e para sempre, com o indivíduo.

Dickens, sem atender ao maniqueísmo usual dos nossos dias, descreve a opressão dos pobres diante da tirania aristocrática, mas que, quando assume o controle, os mesmos oprimidos espalham terror não somente aos aristocratas, mas a todos aqueles que não veem a execução e morte como únicas respostas. Se havia arbitrariedade de cima para baixo, ela se transformou em algo ainda mais despótica, e abusava não apenas os de cima, mas também os pares embaixo. Inimizades, desavenças e vinganças tornaram-se motivos para denunciar e enviar inocentes à guilhotina. Se pudessem, muitos ergueriam um altar para ela, não somente no coração, mas um monumento à posteridade, como o “deus” de uma época.

Em detalhes, vemos a barbárie, a indiferença e de como o homem pode se endurecer a ponto de se habituar com o mal sem considerá-lo mal mas bem, e o faça rotineiramente a ponto de ansiar e desejar mais e mais do seu veneno. O povo sublevado desconhece os limites até o sangue e a sua exposição pública. Cortar cabeças e exibi-las é tão comum como tricotar, beber uma taça de vinho, mastigar fumo ou acender um cachimbo. Até se embriagar ou intoxicar e repetir o mesmo no dia seguinte. Afinal, o que são 50, 60, 70 mortes? As ruas clamam por 100, se possível muito mais.

Esse é o pano de fundo, onde a vida dos personagens principais se misturam entre a Inglaterra e a França, entre a vida e a morte, a liberdade e a escravidão.

Contudo, Dickens não criou um tratado político ou social, mas escreveu sobre algo que conhece como ninguém: a alma. E, no final, é isso o que importa. Ele trata de arrependimento, perdão e martírio. Os acontecimentos são o mote para analisar e revelar o quão humano ou não se pode ser, ainda que santos tenham os seus pecados, e até mesmo em um demônio ou outro pode-se encontrar resquícios de compaixão; afinal, existe no pior dos homens a imagem de Deus, distorcida, embaçada, é verdade, mas está lá, debaixo de toneladas de lama e escombros, à espera de ser arrancada do abismo e trevas para a luz pelo Espírito.

Diferente do martírio que não se quer, daquele imposto e do qual não se pode fugir, por não haver outra opção, e resta submeter-se sem anuência, várias das personagens estão dispostas ao sacrifício, por escolha, vontade, decisão, em suprimir a si mesmas em prol do outro, o próximo. O mundo é feito de decisões, tanto para o bem quanto o mal, e a depender de quem as examina, o resultado pode ser reconhecido ou não. Existem várias formas de se encarar certas situações que, porém, estarão contaminadas por esse ou aquele preconceito, por essa ou aquela fraqueza. Independente de qual seja a sua avaliação, sem um princípio fundamental e verdadeiro, até mesmo a atitude mais benevolente e desinteressada se tornará ridícula. E a verdade, muito mais do que uma opinião, é construída em base objetiva e não subjetiva.

Você já ouviu isso alguma vez?

Via de regra, movido por estímulos egoístas e hedonistas, o homem moderno pouco se interessa pelo próximo além daquilo que pode extrair dele e do qual se beneficia, infelizmente. Não se satisfazer, ou melhor, desagradar-se, é algo quase inconcebível, se não a própria loucura. Quem não disse ou já ouviu: “importa eu ser feliz”?

Dickens reflete o evangelho, de que é possível haver paz no sofrimento, desde que seja o eflúvio a beneficiar quem se ama. Lembra-lhe Cristo e seu sacrifício?

A revolução francesa foi uma como tantas outras espalhadas na história. Trágica, cruel, hedionda, e a própria frase dos revolucionários: “Liberdade, igualdade e fraternidade, ou morte”(Sim, com o passar do tempo, o lema foi “dourado” a fim de não revelar toda a sua infâmia), demonstra o quão abjeto pode-se tornar um princípio, quando a vingança e reparação é o seu motriz. Por isso, se deve sempre ter cuidado com exigências e garantias de direitos, especialmente históricas, onde a injustiça, violência e criminalização fatalmente trocará apenas de lado.

Dickens está a nos revelar o homem tal como ele é, com seus medos, dúvidas, inseguranças e desejos. Nunca é fácil, ainda que algumas decisões pareçam ser, outras nem tanto, e haver aquelas quase impossíveis. Tomá-las mecanicamente, sem dilemas, é algo brutal e odioso, pois sempre tenderá ao caminho mais fácil, nem sempre o correto e moralmente desejável. A resposta é: tenho paz? E a paz não significa necessariamente tranquilidade e conforto. Não. Significa encarar o problema e até mesmo sofrer. No final, não somente vale a pena, mas é o retrato da verdade, definido na frase: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos.”(Jo 15:13); pois, “o amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha.” (1º Coríntios 13: 4-8).

No cenário de caos, violência e morticínio, Carton experimentou a paz, mesmo com salpicos escarlate:

“Isto que faço, aqui e agora, é a melhor coisa que jamais fiz na vida. E o repouso para onde vou, bem melhor que qualquer repouso que eu tivesse algum dia conhecido neste mundo”.

Nem mesmo o homem mais impiedoso e cruel resiste ao amor de Deus.

 

Nota: Talvez você não entenda o que escrevi, já que não fiz uma sinopse ou resumo do romance. Raramente o faço. Mas bastará lê-lo para confirmar o que digo.

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Avaliação: (****)

Título: Um Conto de Duas Cidades

Autor: Charles Dickens

Editora: Nova Fronteira

Páginas: 502


18 julho 2025

Tanto por fazer - Theodore Dalrymple

 




Jorge F. Isah

 

 

      Dalrymple é mais conhecido por suas obras de não-ficção, sobre a pós-modernidade, onde aspectos culturais, sociais, educacionais e políticos apontam para um mundo em franca degradação. Ao aprofundar-se nas causas e consequências desse “projeto”, a dissociação da sociedade com a realidade torna-se impressionante, mas não impressionável, ao menos para os “engenheiros” sociais e sua militância histérica e simplória. Tudo precisa ser modificado para se encaixar aos novos tempos, e o começo sempre é com o desmonte da língua e o uso de termos e expressões que, se analisados, demonstrar-se-ão incompatíveis e heteróclitos, para dizer o mínimo.

       Cada vez mais, o homem tem se tornado ambíguo ao entregar-se a ideias vagas e atitudes problemáticas, a expô-lo em permanente risco. Não raro, crimes, brutalidade, ataques e mortes têm ganhado o apoio de tantos, enquanto pensar fora das caixas ideológicas é sinal de ameaça e extremismo. Nunca se viu um amor tão raivoso e hostil; e talvez essa seja a maior de todas as provas do declínio humano, a hipocrisia oficial e oficiosa, onde as palavras negam os fatos e atos, e vice-versa. Em suma, a modernidade se especializou em demolir a moral e a tradição, enquanto subestima a responsabilidade individual, inocenta o mal enquanto “demoniza” o bem. Em tempos em que a razão é tão alardeada, o sentimentalismo é a motivação de uma massa disposta a comprar o discurso de que “o importante é ser feliz”, mesmo que para isso outros tenham de se “matar” para arranhar a casca dos seus infortúnios. 

      O universo de Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels), como um dos grandes intelectuais modernos, penetra em várias nuances e camadas, e a minha tentativa é resumir, a quem o desconhece, elementos presentes em quase todas as suas obras (li 3, ao todo, além deste); e não há como negar: os seus esforços em colocar no papel tudo aquilo que o establishment quer ocultar, derivam de décadas de trabalho como psiquiatra na África e Inglaterra, onde, inclusive, serviu como médico em penitenciárias. Ele fala do que viu e ouviu; mas, qual o peso disso em nossos dias?  Nada que um joguinho de palavras não possa substituir ou camuflar.

      “Tanto por fazer”, seu primeiro romance, é o monólogo do personagem Graham Underwood, um serial killer, o “Monstro de Eastham”, condenado à prisão perpétua por matar e enterrar no próprio quintal 15 vítimas (zombeteiro, alega serem 22). Criado na pobreza e brutalidade, utiliza-se disso para justificar parcialmente seus crimes; o que não o impediu de, na juventude, ler tanto quanto podia os filósofos gregos, os clássicos, e praticamente tudo sobre os assuntos pelos quais se interessou e descobriu. Em relação à maioria das pessoas, pode-se considerá-lo culto e inteligente; um tipo semelhante, ou alude, ao “Conde Fosco” de Wilkie Collins, “Long John Silver” de Stevenson, e “Juiz Holden” de Cormac McCarthy, todos cruéis e sanguinários a despeito da erudição e intelecto apurado.

      Em princípio, pareceu-me o relato de um criminoso, mas, à medida em que se desenvolvia, o tom “humorístico”, irônico e sarcástico tomou conta da história. Os argumentos de Graham eram “ipsis litteris” as alegações utilizadas por governos e seus gestores, pela mídia e seus propagandistas, pelos políticos, juristas, professores e toda a “intelligentsia”, para anular a realidade e forjar outra segundo o discurso ideológico. A maioria não se apercebe disso, mas Graham notou e, não por acaso, levantou a lebre da contradição e irracionalidade do sistema, capaz de condená-lo pelos mesmos motivos que inocenta outros tantos milhares. Vá lá, nada do que ele diz, ou a maior parte, faz sentido, a não ser para ele mesmo que se considera injustiçado, já que se vê como benfeitor, disposto a fazer o que as vítimas não eram capazes (queriam, mas não podiam, segundo ele), dar-lhes alívio e eliminar um problema social.

“Não, senhoras e senhores, a conclusão é inescapável: pode-se ser um assassino ético. E eu fui um assim” (pg. 41)

      Ao abordar vários aspectos sociais, as relações entre os poderosos e a plebe, tece críticas ao comportamento geral, permeado pelo relativismo moral e a ideologia que tende a minimizar e até mesmo inocentar criminosos confessos. A pós-modernidade criou um mundo impessoal e cínico, irresponsável e injusto, inquisidor e hipócrita. E ao provocar, espera ganhar a compreensão e simpatia da assistência. 

        Em momento algum, Graham se considera culpado ou demonstra arrependimento; ele é orgulhoso e jacta-se da sua inteligência e cultura, dos seus vícios e crimes, da racionalidade, da ausência de sentimentalismo, tem ares superiores, despreza qualquer um com facilidade, faz analogias e compara situações que desnudam o rei, enquanto todos continuam a vê-lo vestido.

“Eu sou moralmente superior a vocês porque, como o médico que pratica a eutanásia, eu não mato ao acaso; eu escolho quem deve morrer pelas minhas próprias mãos, de acordo com critérios racionais e humanos... vocês matam como o louco que entra num supermercado e massacra os clientes até que ele seja subjugado ou mesmo executado.” (pg. 60)

Aqui, médico e assassino se juntam em um mesmo propósito, e se um pode ser justificado socialmente, por que não o outro? No frigir dos ovos, aborto, eutanásia e homicídio são faces da mesma moeda. E tudo isso reafirma o seu ponto: ele é a vítima, ou mais um a vitimizar-se; o algoz, a sociedade. Onde mesmo já lemos e ouvimos isso?

      Dalrymple detalha-o com esmero e cuidado, tal qual se biografa um progressista, um ativista, ou o mero replicador urbano. Graham é vegetariano, ateu e ecologista. Se considera íntegro, consciente, livre, ético, herói, e no direito de matar sem ter de dar satisfação.

“Permanece uma única possibilidade, portanto, para explicar a legitimidade da transformação do cidadão normal em um assassino aprovado: que alguém pode legitimamente se tornar um assassino desse tipo quando, e somente quando, ele julgar que é certo fazer isso.” (pg. 41)

      Ao se utilizar da mesma retórica vigente e comumente alardeada na educação, administração, mídia, artes, academia e tutti quanti, ele tenta em si o antídoto que neutralize o veneno enquanto morre. Seu jogo não é probatório da razão; é tomar do sistema as armas com as quais ele o atacará ou, em última instância, o fará igual a todos, e tornará todos iguais a si. Não existe a verdade, mas quem se apregoa verdadeiro, mesmo na enxurrada de mentiras e falácias.

“Não que eu espere que alguém tome conhecimento de minhas ideias, eu não sou tão ingênuo a ponto de pensar nisso. Um profeta não só não é honrado em sua própria terra, mas em sua própria época.” (pg. 105)

      Graham expõe a estupidez, de maneira hilária, das chamadas lutas pelas minorias. Em dado momento, o “lobby canhoto” exigiu das autoridades o direito de aposentar-se antes dos destros, porque segundo os dados (sempre as tais estatísticas das quais nunca se sabe nada) os canhotos viviam dez anos menos que os destros; o retrotreinamento dos falsos destros em verdadeiros canhotos, a fim de reconquistarem a própria identidade; e, por fim, acabar com a linguagem ofensiva manidestra, “e eliminar do departamento: termos como sinistro e gauche, carregados de conotações depreciativas a respeito dos canhotos e do canhotismo.” (pg. 111). Trocar a expressão “He left his flat” por “He vacated his flat” ou “He leaved his flat”, já que “left” em inglês serve tanto para designar o verbo deixar e o substantivo esquerda, é o teste máximo a sujeitar a maioria.

      O fato de se dirigir aos leitores como “senhoras e senhores” demonstra como está a utilizar de eufemismo, assim como o mainstream insiste em enfiar goela abaixo da sociedade regras e normas descabidas, tudo em nome de uma suposta igualdade e justiça.

O seu desprezo é notório:

“Elas (as pessoas) têm a força de um touro, o cérebro de um frango e a moral de uma hiena” (p. 131)

      Os argumentos se seguem, entre choro e ranger de dentes, e Dalrymple escreve, pelas mãos de um serial killer, a insanidade, o misto de burrice e insolência, com as quais se quer reconstruir este mundo. Nisto, acerta em cheio. Porém, as ideias e teses de Underwood se repetem, repetem (talvez, efeito pretendido pelo autor), e a maluquice “lógica” do bandido parece opiniões saídas de telejornais e dos apologistas do mal: pedagogos, juristas, terapeutas, e tantos outros incapazes de perceber a ferida e o sangue após atirarem nos próprios pés.

      O romance poder-se-ia chamar filosófico; e trata do homem na busca incessante por revoltas e motins, e acaba por se tornar, ao mesmo tempo, vítima e carrasco.

      O Éden pós-queda se repete, repete, e quase não se consegue mais sair dele.

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Avaliação: (***)

Autor: Theodore Dalrymple

Editora: É Realizações

Páginas: 184

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