26 julho 2025

Um Conto de Duas Cidades - Charles Dickens

 





Jorge F. Isah

 


Havia tempos queria ler esse livro de Dickens. Como a minha lista de leituras sofre constantes mudanças, “Um Conto...” teve a frente furada por outros tantos e, somente agora, pude concluí-lo. Dickens está na relação dos meus cinco ou seis escritores prediletos. Às vezes, vai para os primeiros lugares do topo, em outras, desce. Mas sempre está lá, desde que li pela primeira vez “David Copperfield, o amor pela escrita do inglês só aumentou.

Para muitos, “Um Conto...” é um livro político, a falar da Revolução Francesa. Certamente, no contexto histórico da Revolução Francesa, o autor penetra o emaranhado de casuísmos e desastres enovelados no evento, um dos mais importantes. Mas, assim como “Os Demônios” de Dostoievski, não está a falar apenas de um fato macabro e sinistro, do ponto de vista meramente político. Mais do que análises acerca de governos e seus sistemas, seja denunciar o totalitarismo revolucionário (no caso de ambos os livros), ele está a tratar da humanidade, em especial o homem e as circunstâncias a mover o seu íntimo em uma direção ou outra. Com isso, não estou a defender a tese de que as pessoas são aquilo que a sociedade quer, que o sistema quer. Quando se está em dúvida ou em um dilema, alguém sempre propõe: o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? E aqui é possível utilizar a mesma analogia para se referir a esta circunstância: é o homem quem molda a sociedade ou a sociedade quem o molda?

Parece uma proposição tola, mas não se pode deixar de reconhecer que, seja qual for a resposta, o indivíduo é, em última instância, o responsável por suas decisões, sejam de foro íntimo ou “forçadas” exteriormente. Em qualquer dos casos é possível decidir fazer ou não fazer. A resposta estará sempre, e para sempre, com o indivíduo.

Dickens, sem atender ao maniqueísmo usual dos nossos dias, descreve a opressão dos pobres diante da tirania aristocrática, mas que, quando assume o controle, os mesmos oprimidos espalham terror não somente aos aristocratas, mas a todos aqueles que não veem a execução e morte como únicas respostas. Se havia arbitrariedade de cima para baixo, ela se transformou em algo ainda mais despótica, e abusava não apenas os de cima, mas também os pares embaixo. Inimizades, desavenças e vinganças tornaram-se motivos para denunciar e enviar inocentes à guilhotina. Se pudessem, muitos ergueriam um altar para ela, não somente no coração, mas um monumento à posteridade, como o “deus” de uma época.

Em detalhes, vemos a barbárie, a indiferença e de como o homem pode se endurecer a ponto de se habituar com o mal sem considerá-lo mal mas bem, e o faça rotineiramente a ponto de ansiar e desejar mais e mais do seu veneno. O povo sublevado desconhece os limites até o sangue e a sua exposição pública. Cortar cabeças e exibi-las é tão comum como tricotar, beber uma taça de vinho, mastigar fumo ou acender um cachimbo. Até se embriagar ou intoxicar e repetir o mesmo no dia seguinte. Afinal, o que são 50, 60, 70 mortes? As ruas clamam por 100, se possível muito mais.

Esse é o pano de fundo, onde a vida dos personagens principais se misturam entre a Inglaterra e a França, entre a vida e a morte, a liberdade e a escravidão.

Contudo, Dickens não criou um tratado político ou social, mas escreveu sobre algo que conhece como ninguém: a alma. E, no final, é isso o que importa. Ele trata de arrependimento, perdão e martírio. Os acontecimentos são o mote para analisar e revelar o quão humano ou não se pode ser, ainda que santos tenham os seus pecados, e até mesmo em um demônio ou outro pode-se encontrar resquícios de compaixão; afinal, existe no pior dos homens a imagem de Deus, distorcida, embaçada, é verdade, mas está lá, debaixo de toneladas de lama e escombros, à espera de ser arrancada do abismo e trevas para a luz pelo Espírito.

Diferente do martírio que não se quer, daquele imposto e do qual não se pode fugir, por não haver outra opção, e resta submeter-se sem anuência, várias das personagens estão dispostas ao sacrifício, por escolha, vontade, decisão, em suprimir a si mesmas em prol do outro, o próximo. O mundo é feito de decisões, tanto para o bem quanto o mal, e a depender de quem as examina, o resultado pode ser reconhecido ou não. Existem várias formas de se encarar certas situações que, porém, estarão contaminadas por esse ou aquele preconceito, por essa ou aquela fraqueza. Independente de qual seja a sua avaliação, sem um princípio fundamental e verdadeiro, até mesmo a atitude mais benevolente e desinteressada se tornará ridícula. E a verdade, muito mais do que uma opinião, é construída em base objetiva e não subjetiva.

Você já ouviu isso alguma vez?

Via de regra, movido por estímulos egoístas e hedonistas, o homem moderno pouco se interessa pelo próximo além daquilo que pode extrair dele e do qual se beneficia, infelizmente. Não se satisfazer, ou melhor, desagradar-se, é algo quase inconcebível, se não a própria loucura. Quem não disse ou já ouviu: “importa eu ser feliz”?

Dickens reflete o evangelho, de que é possível haver paz no sofrimento, desde que seja o eflúvio a beneficiar quem se ama. Lembra-lhe Cristo e seu sacrifício?

A revolução francesa foi uma como tantas outras espalhadas na história. Trágica, cruel, hedionda, e a própria frase dos revolucionários: “Liberdade, igualdade e fraternidade, ou morte”(Sim, com o passar do tempo, o lema foi “dourado” a fim de não revelar toda a sua infâmia), demonstra o quão abjeto pode-se tornar um princípio, quando a vingança e reparação é o seu motriz. Por isso, se deve sempre ter cuidado com exigências e garantias de direitos, especialmente históricas, onde a injustiça, violência e criminalização fatalmente trocará apenas de lado.

Dickens está a nos revelar o homem tal como ele é, com seus medos, dúvidas, inseguranças e desejos. Nunca é fácil, ainda que algumas decisões pareçam ser, outras nem tanto, e haver aquelas quase impossíveis. Tomá-las mecanicamente, sem dilemas, é algo brutal e odioso, pois sempre tenderá ao caminho mais fácil, nem sempre o correto e moralmente desejável. A resposta é: tenho paz? E a paz não significa necessariamente tranquilidade e conforto. Não. Significa encarar o problema e até mesmo sofrer. No final, não somente vale a pena, mas é o retrato da verdade, definido na frase: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos.”(Jo 15:13); pois, “o amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha.” (1º Coríntios 13: 4-8).

No cenário de caos, violência e morticínio, Carton experimentou a paz, mesmo com salpicos escarlate:

“Isto que faço, aqui e agora, é a melhor coisa que jamais fiz na vida. E o repouso para onde vou, bem melhor que qualquer repouso que eu tivesse algum dia conhecido neste mundo”.

Nem mesmo o homem mais impiedoso e cruel resiste ao amor de Deus.

 

Nota: Talvez você não entenda o que escrevi, já que não fiz uma sinopse ou resumo do romance. Raramente o faço. Mas bastará lê-lo para confirmar o que digo.

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Avaliação: (****)

Título: Um Conto de Duas Cidades

Autor: Charles Dickens

Editora: Nova Fronteira

Páginas: 502


18 julho 2025

Tanto por fazer - Theodore Dalrymple

 




Jorge F. Isah

 

 

      Dalrymple é mais conhecido por suas obras de não-ficção, sobre a pós-modernidade, onde aspectos culturais, sociais, educacionais e políticos apontam para um mundo em franca degradação. Ao aprofundar-se nas causas e consequências desse “projeto”, a dissociação da sociedade com a realidade torna-se impressionante, mas não impressionável, ao menos para os “engenheiros” sociais e sua militância histérica e simplória. Tudo precisa ser modificado para se encaixar aos novos tempos, e o começo sempre é com o desmonte da língua e o uso de termos e expressões que, se analisados, demonstrar-se-ão incompatíveis e heteróclitos, para dizer o mínimo.

       Cada vez mais, o homem tem se tornado ambíguo ao entregar-se a ideias vagas e atitudes problemáticas, a expô-lo em permanente risco. Não raro, crimes, brutalidade, ataques e mortes têm ganhado o apoio de tantos, enquanto pensar fora das caixas ideológicas é sinal de ameaça e extremismo. Nunca se viu um amor tão raivoso e hostil; e talvez essa seja a maior de todas as provas do declínio humano, a hipocrisia oficial e oficiosa, onde as palavras negam os fatos e atos, e vice-versa. Em suma, a modernidade se especializou em demolir a moral e a tradição, enquanto subestima a responsabilidade individual, inocenta o mal enquanto “demoniza” o bem. Em tempos em que a razão é tão alardeada, o sentimentalismo é a motivação de uma massa disposta a comprar o discurso de que “o importante é ser feliz”, mesmo que para isso outros tenham de se “matar” para arranhar a casca dos seus infortúnios. 

      O universo de Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels), como um dos grandes intelectuais modernos, penetra em várias nuances e camadas, e a minha tentativa é resumir, a quem o desconhece, elementos presentes em quase todas as suas obras (li 3, ao todo, além deste); e não há como negar: os seus esforços em colocar no papel tudo aquilo que o establishment quer ocultar, derivam de décadas de trabalho como psiquiatra na África e Inglaterra, onde, inclusive, serviu como médico em penitenciárias. Ele fala do que viu e ouviu; mas, qual o peso disso em nossos dias?  Nada que um joguinho de palavras não possa substituir ou camuflar.

      “Tanto por fazer”, seu primeiro romance, é o monólogo do personagem Graham Underwood, um serial killer, o “Monstro de Eastham”, condenado à prisão perpétua por matar e enterrar no próprio quintal 15 vítimas (zombeteiro, alega serem 22). Criado na pobreza e brutalidade, utiliza-se disso para justificar parcialmente seus crimes; o que não o impediu de, na juventude, ler tanto quanto podia os filósofos gregos, os clássicos, e praticamente tudo sobre os assuntos pelos quais se interessou e descobriu. Em relação à maioria das pessoas, pode-se considerá-lo culto e inteligente; um tipo semelhante, ou alude, ao “Conde Fosco” de Wilkie Collins, “Long John Silver” de Stevenson, e “Juiz Holden” de Cormac McCarthy, todos cruéis e sanguinários a despeito da erudição e intelecto apurado.

      Em princípio, pareceu-me o relato de um criminoso, mas, à medida em que se desenvolvia, o tom “humorístico”, irônico e sarcástico tomou conta da história. Os argumentos de Graham eram “ipsis litteris” as alegações utilizadas por governos e seus gestores, pela mídia e seus propagandistas, pelos políticos, juristas, professores e toda a “intelligentsia”, para anular a realidade e forjar outra segundo o discurso ideológico. A maioria não se apercebe disso, mas Graham notou e, não por acaso, levantou a lebre da contradição e irracionalidade do sistema, capaz de condená-lo pelos mesmos motivos que inocenta outros tantos milhares. Vá lá, nada do que ele diz, ou a maior parte, faz sentido, a não ser para ele mesmo que se considera injustiçado, já que se vê como benfeitor, disposto a fazer o que as vítimas não eram capazes (queriam, mas não podiam, segundo ele), dar-lhes alívio e eliminar um problema social.

“Não, senhoras e senhores, a conclusão é inescapável: pode-se ser um assassino ético. E eu fui um assim” (pg. 41)

      Ao abordar vários aspectos sociais, as relações entre os poderosos e a plebe, tece críticas ao comportamento geral, permeado pelo relativismo moral e a ideologia que tende a minimizar e até mesmo inocentar criminosos confessos. A pós-modernidade criou um mundo impessoal e cínico, irresponsável e injusto, inquisidor e hipócrita. E ao provocar, espera ganhar a compreensão e simpatia da assistência. 

        Em momento algum, Graham se considera culpado ou demonstra arrependimento; ele é orgulhoso e jacta-se da sua inteligência e cultura, dos seus vícios e crimes, da racionalidade, da ausência de sentimentalismo, tem ares superiores, despreza qualquer um com facilidade, faz analogias e compara situações que desnudam o rei, enquanto todos continuam a vê-lo vestido.

“Eu sou moralmente superior a vocês porque, como o médico que pratica a eutanásia, eu não mato ao acaso; eu escolho quem deve morrer pelas minhas próprias mãos, de acordo com critérios racionais e humanos... vocês matam como o louco que entra num supermercado e massacra os clientes até que ele seja subjugado ou mesmo executado.” (pg. 60)

Aqui, médico e assassino se juntam em um mesmo propósito, e se um pode ser justificado socialmente, por que não o outro? No frigir dos ovos, aborto, eutanásia e homicídio são faces da mesma moeda. E tudo isso reafirma o seu ponto: ele é a vítima, ou mais um a vitimizar-se; o algoz, a sociedade. Onde mesmo já lemos e ouvimos isso?

      Dalrymple detalha-o com esmero e cuidado, tal qual se biografa um progressista, um ativista, ou o mero replicador urbano. Graham é vegetariano, ateu e ecologista. Se considera íntegro, consciente, livre, ético, herói, e no direito de matar sem ter de dar satisfação.

“Permanece uma única possibilidade, portanto, para explicar a legitimidade da transformação do cidadão normal em um assassino aprovado: que alguém pode legitimamente se tornar um assassino desse tipo quando, e somente quando, ele julgar que é certo fazer isso.” (pg. 41)

      Ao se utilizar da mesma retórica vigente e comumente alardeada na educação, administração, mídia, artes, academia e tutti quanti, ele tenta em si o antídoto que neutralize o veneno enquanto morre. Seu jogo não é probatório da razão; é tomar do sistema as armas com as quais ele o atacará ou, em última instância, o fará igual a todos, e tornará todos iguais a si. Não existe a verdade, mas quem se apregoa verdadeiro, mesmo na enxurrada de mentiras e falácias.

“Não que eu espere que alguém tome conhecimento de minhas ideias, eu não sou tão ingênuo a ponto de pensar nisso. Um profeta não só não é honrado em sua própria terra, mas em sua própria época.” (pg. 105)

      Graham expõe a estupidez, de maneira hilária, das chamadas lutas pelas minorias. Em dado momento, o “lobby canhoto” exigiu das autoridades o direito de aposentar-se antes dos destros, porque segundo os dados (sempre as tais estatísticas das quais nunca se sabe nada) os canhotos viviam dez anos menos que os destros; o retrotreinamento dos falsos destros em verdadeiros canhotos, a fim de reconquistarem a própria identidade; e, por fim, acabar com a linguagem ofensiva manidestra, “e eliminar do departamento: termos como sinistro e gauche, carregados de conotações depreciativas a respeito dos canhotos e do canhotismo.” (pg. 111). Trocar a expressão “He left his flat” por “He vacated his flat” ou “He leaved his flat”, já que “left” em inglês serve tanto para designar o verbo deixar e o substantivo esquerda, é o teste máximo a sujeitar a maioria.

      O fato de se dirigir aos leitores como “senhoras e senhores” demonstra como está a utilizar de eufemismo, assim como o mainstream insiste em enfiar goela abaixo da sociedade regras e normas descabidas, tudo em nome de uma suposta igualdade e justiça.

O seu desprezo é notório:

“Elas (as pessoas) têm a força de um touro, o cérebro de um frango e a moral de uma hiena” (p. 131)

      Os argumentos se seguem, entre choro e ranger de dentes, e Dalrymple escreve, pelas mãos de um serial killer, a insanidade, o misto de burrice e insolência, com as quais se quer reconstruir este mundo. Nisto, acerta em cheio. Porém, as ideias e teses de Underwood se repetem, repetem (talvez, efeito pretendido pelo autor), e a maluquice “lógica” do bandido parece opiniões saídas de telejornais e dos apologistas do mal: pedagogos, juristas, terapeutas, e tantos outros incapazes de perceber a ferida e o sangue após atirarem nos próprios pés.

      O romance poder-se-ia chamar filosófico; e trata do homem na busca incessante por revoltas e motins, e acaba por se tornar, ao mesmo tempo, vítima e carrasco.

      O Éden pós-queda se repete, repete, e quase não se consegue mais sair dele.

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Avaliação: (***)

Autor: Theodore Dalrymple

Editora: É Realizações

Páginas: 184

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10 junho 2025

A Ilha do Tesouro ou Construindo Jackyll & Hyde




Jorge F. Isah


Depois de algumas décadas, refiz a leitura de “A Ilha do Tesouro”, meio que despretensiosamente, já que sempre considerei o livro infanto-juvenil (talvez por tê-lo lido umas duas ou três vezes até os 14 ou 15 anos). É um livro que prendeu-me a atenção pela volta à nostalgia, dos dias em que me imaginava um aventureiro corajoso e destemido em um mundo perigoso, mas completamente desconhecido. Devo tê-lo lido em dois ou três dias, nos momentos disponíveis entre o trabalho, os estudos e os afazeres familiares; o que acabava me deixando ansioso para uma folguinha e a volta à narrativa de Stevenson. 

Como curiosidade, vale lembrar que a ideia inicial de R. L. Stevenson era escrever uma história para o seu sobrinho (alguns julgam ser o enteado), algo que aguçasse a imaginação e fantasia do jovem; publicada inicialmente na forma de capítulos em uma revista da época, surgiu na forma de livro em 1883. 

A grande importância do livro, além do próprio enredo, foi trazer para o gênero (que não existia como tal) elementos que o caracterizariam depois. O mote de tudo é a busca pelo tesouro do “Capitão Flint”, um pirata terrível que supostamente havia enterrado uma grande fortuna. O motim dos tripulantes e a luta pela sobrevivência, enquanto a corrida ao baú continuava, são o pano de fundo para o desenrolar da estória. 

De um lado temos o “bem” nas pessoas do jovem Jim Hawkins (o narrador, em primeira pessoa), Capitão Smollett, Dr. Livesey e o Lorde Trelawney; em outro lado temos Hands, Papy, Arrow e o carismático, mas não menos temido, Silver. Ele é um caso à parte. E será dele a maior parte deste comentário. 

Situemos “A Ilha do Tesouro”, escrito cinco anos antes de “O Estranho Caso do Dr. Jackyll e o Sr. Hyde”, também conhecido como “O médico e o Monstro”. Encontramos na figura do cozinheiro Long John Silver (um disfarce para encobrir as suas reais intenções) características, ainda que preliminares, a comporem a personalidade central de Jackyll e Hyde, os conflitos entre o bem e o mal. É claro que nada disso é traçado de forma límpida, o tal do preto no branco, como se fossem meros espectros antagônicos, sem conflitos interiores, dúvidas e muito pouca certeza. Não sou dualista; entretanto, entendo que existe um conflito em curso na vida humana, ora pendendo para um lado, ora outro,  as vezes entrelaçados; ainda que boa parte das pessoas esteja em lados opostos, aparentemente, numa guerra de interesses. 

Silver é uma mente culta, de intelecto privilegiado, de retórica apurada, mestre tático, ardiloso, sedutor, capaz de convencer a pulga de que é o cachorro. Em contrapartida, é uma mente atormentada, capaz de cometer atrocidades e crimes sem um leve pestanejar, sem qualquer arrependimento ou compaixão. Da mesma forma que transparece eloquência, e uma boa dose de submissão aos seus empregadores, se o fim é apossar-se do tesouro de Flint, a fúria, a qualquer um que atravesse o  caminho, o tornará sanguinário e cruel. Nem mesmo o carinho e interesse quase paternal pelo jovem Jim (de certa forma, ainda que momentâneo, protegendo e ensinando-o os segredos da navegação) o impedirá de afastá-lo como um mero obstáculo a ser transposto até a posse do tesouro. 


Estando na meia-idade, e tendo uma perna-de-pau, sua força física, aliada a uma violência natural (sem nos esquecer da sua sagacidade), torna-o em um oponente quase imbatível. O temor pelo qual perpassam inimigos e aliados é completamente justificado pelo corpo e mente diabólicos de Silver. A luta dele é pela sobrevivência, mesmo que decida-se por um lado, e depois por outro, os interesses são os de preservar-se a todo custo, ainda que resulte em dupla traição: aos antigos inimigos feitos novos amigos, e aos antigos amigos em inimigos. 

Existe alguma semelhança na construção de Silver e Jackyll/Hyde, numa luta ferrenha entre as virtudes e os vícios, travadas na alma do mesmo homem. 

Na teologia cristã, e na vida de cristãos conversos, essa batalha se trava no âmago, em que, transformados e regenerados por Cristo, ainda se vive com a natureza pecaminosa. Em vários textos bíblicos temo-la como a “luta entre o espírito e a carne”. Essa é uma realidade vivenciada em maior grau pelos cristãos, cientes do que seja o bem e o mal, o moral e imoral, vida e morte. Mas mesmo os não-cristãos têm em si a centelha do Imago Dei; e trava-se a mesma disputa, por causa dos atributos divinos transmitidos ao homem quando da sua criação. 

Por que toquei nesse ponto? Porque a boa literatura não prescinde a realidade, muito menos a realidade moral, da qual Silver e Jackyll/Hyde são exemplos do que somos, fomos ou seremos, em algum momento e alguma proporção. Ainda que a crueldade de Silver e Hyde não aflore em nossos atos, a certeza é de que, sem os aspectos da moral divina a nos frear, seríamos tão ou mais sanguinários que eles. 

Se levarmos em consideração que “O Médico e o Monstro” é uma aventura pela loucura, cobiça e depravação de Jackyll, a pretensão de se fazer Deus, como certo personagem do Éden, “A Ilha do Tesouro” não é menos uma aventura pela alma conturbada de Silver do que a caça à riqueza e poder. Por isso, Long John se inscreve no rol dos grandes personagens literários de todos os tempos, como um alerta para vencermos o mal. Por pouco, não pagou por seus atos, debaixo da benevolência do Dr. Livesey e de um acordo interessante a ambos. Fica contudo a imagem de que o homem sem Deus pode resistir ao apelo do mal por algo de divino que ainda reside em seu ser, mas de que, invariavelmente, ele será apenas o que é, um fugitivo do bem a cair nas malhas ou teias dos vícios e pecados. 

Ben Gunn entendeu, à sua maneira, aplicar engenhosamente os princípios morais, negando o que fora, para aliar-se àqueles que o salvariam. Ainda que tenha voltado novamente ao vômito como o cão... tempos depois. Mas vou parar por aqui, senão um comentário pode se tornar um ensaio. E estou longe de escrevê-lo.


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Avaliação: (****)

Título: A Ilha do Tesouro

Autor: Robert Louis Stevenson

Editora: L&PM Pocket

No. Páginas: 366



04 junho 2025

Judas, o Obscuro - Thomas Hardy

 




Jorge F. Isah

 

 

Judas é um tipo literário muito próximo de Jó, o personagem bíblico, em suas agruras, aflições e dores. Ao passo em que Jó sofre exatamente por sua fidelidade a Deus, e pelo desejo sincero de retidão e justiça (o que acaba por despertar a maldade objetiva de Satanás), Judas deseja apenas se ver livre das amarras sociais, numa espécie de autonomismo e independência, acreditando que suas decisões cabem apenas e exclusivamente a si mesmo, sem se importar, ou vislumbrar, com as consequências dos seus atos. A liberdade de Judas é pueril e enganadora; e arrasta-o para dentro do “Mal”.

O livro escrito por Thomas Hardy (um entusiasta apaixonado pelas ideias de Darwin) foi escrito em 1895, e carregado do naturalismo em voga, que não deixou de influenciar a literatura. Judas, por mais que tente, ao seu jeito, fugir do destino que lhe é traçado, sucumbe à sua inexorabilidade (referência ao personagem bíblico que traiu Jesus?)¹.

Como não sou de fazer resumo dos livros, também não o farei neste. Apontarei, contudo, o que mais me chamou a atenção, sem fazer spoilers, e sem desestimular o futuro leitor a emprenhar-se nas aventuras e desventuras do protagonista:

1)  Judas tenta “mudar” o seu destino, algo que os naturalistas, e, em especial Hardy, não crê possível. Para ele, Judas será o que é, nascido um pária, morrerá como tal.

2)  Ciente do que lhe espera, Judas apela para um autonomismo impossível, como se pudesse viver no mundo alheio ao mundo, sem que seus atos trouxessem consequências para si e seus queridos. Pouco a pouco, no decorrer da história, parte para a negação de Deus, fazendo do Cristianismo o “bode expiatório” do seu sofrimento. Em uma sociedade cristã, a culpa de todas as convenções e males se deve, portanto, ao Cristianismo, num apelo tresloucado à razão, como sendo-a santa, pura e perfeita; de maneira que, se todos os homens a aplicassem por completo, negando suas crenças e fé, todos seriam felizes. Acaba-se por criar e defender um dualismo “fé x razão” no enredo, o que é, no mínimo, reducionista, simplório.

3)  Hardy não escreveu uma única linha em que não destilasse a sua aversão ao Cristianismo, se não explicitamente (como em muitos diálogos e pensamentos), deixou-os subliminarmente evocados em ações e comportamentos. Porém, o Cristianismo descrito pelo autor é o que podemos chamar de “cristianismo secular” ou “nominal”, onde a aparência cristã é utilizada para justificar o farisaísmo e a hipocrisia do homem. Veja bem, farisaísmo e hipocrisia não são, nem de longe, aspectos do verdadeiro Cristianismo, mas a “máscara” daqueles que o próprio Senhor Jesus denunciou a seu tempo. Talvez, por isso mesmo, o autor escolheu o nome “Judas” para o seu protagonista que, mesmo vivendo por mais de três ano na companhia do Cristo, não se furtou a traí-lo.

4)  Ao fugir das convenções e de aspectos morais que regulavam o convívio social, se viu pagando um preço alto, vivendo como um “cigano”, juntamente com a sua família. O capricho de não querer se enquadrar ao escopo da sociedade colocou-o na situação mais miserável que o enquadramento social lhe destinaria. Em sua rebeldia juvenil e ingênua, acreditava possível passar ileso, sem traumas, quebrando regras. Judas não se considera responsável por si, mas “a chorar as pitangas” contra  o inimigo a destruir-lhe a felicidade: a sociedade; enquanto aplica-se em cavar para si e os seus o caminho de ruina. Este é um aspecto, em que o mal dentro do homem procura uma versão de mal fora de si, e o distrai e afasta do julgamento correto, da seriedade correta, da conclusão correta, onde o relativismo é o tiro certeiro no vazio, e o atirador se convence de ter acertado o alvo, como um Quixote a lutar com monstros e demônios apenas na imaginação.

5)  Outro aspecto, fruto dessa visão vitimista e malévola, inegável em Judas e sua esposa, Sue, é o orgulho e presunção de, ao não se curvarem aos hábitos da sua época, serem superiores aos seus concidadãos. A prova encontra-se nas inúmeras vezes em que exaltavam suas inteligências, raciocínios e um apelo à razão como a essência de todas as virtudes; por conseguinte, sendo os seus detentores, consideravam-se também especiais, enquanto eram apenas jactantes, desdenhosos e antipáticos.

6)  Nem mesmo o sacrifício pessoal, como o do prof. Richard, parece um ato isento de soberba, de autoexaltação obstinada, dominada pela “pureza” racional.

7)  Entretanto, não há como não se compadecer da “má-sorte” e os rumos que suas vidas tomaram. Ao ponto de, sem qualquer esperança, sobrar-lhes a loucura e o definhamento.

Judas, o obscuro, é um livro pessimista, áspero, quase inóspito. Mesmo nos momentos mais ternos e belos, a angústia, dúvidas e desespero estão entranhadas nas palavras, sentimentos e reações. Não é um livro fácil de ler, pois os lampejos de esperança são quase imediatamente dizimados por uma realidade sufocante e cruel, pela teimosia de não mudar ou ceder, e a incapacidade de tornar à vida, de encará-la de maneira menos fatalista, onde a liberdade individual, via de regra, é quase inexistente diante do apelo opressivo e coercitivo do destino.

Entretanto, é possível encontrar momentos de ternura, elegância, acabando por tornar verossímil os personagens e o enredo como um todo.

 A linguagem é simples, sem rebuscamentos. A narrativa parece se arrastar um pouco, especialmente na primeira metade do livro. Contudo, em sua bissecção final, ela flui sem delongas.

Judas, o obscuro é um bom livro? Sim, sem dúvidas. Para estar no rol dos melhores de todos os tempos, como comumente é citado nas grandes listas? Tenho dúvidas. Talvez, precise ruminar ainda um bom tempo a história, e, quem sabe, fazer uma nova leitura, no futuro. Certo é que, tirando a defesa “intransigente” do racionalismo e de um certo determinismo naturalista, a “aversão” ao Cristianismo (criando um estereótipo, uma espécie de espantalho), o livro se sai bem.

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Notas: 1- Pode-se levantar a questão de que Judas traiu a si e sua família, como alguns apontam, mas não vejo fundamento. Por outro lado, é possível que Hardy tenha se utilizado do personagem Judas, do Novo Testamento, para dizer o quanto o caminho daquele era inevitalmente lúgubre, e, de alguma maneira, não se fez a devida justiça a ele; sua culpa não era inerente mas advinda do contexto social no qual vivia. Alguns teólogos e teóricos liberais concordariam, se não no todo em parte, com essa hipótese. 

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Avaliação: (***)

Autor: Thomas Hardy

Editora: Abril Cultural

Páginas: 461

26 maio 2025

Max Perkins - Um Editor de Gênios


 

Jorge F. Isah



Indicado pelo amigo Felipe Sabino, esta biografia trata do, talvez, maior editor americano de todos os tempos. Evidente que é impossível mensurar quem foi o maior ou não, mas certamente pelo volume de autores descobertos e publicados, gente da estirpe de Fitzgerald, Hemingway e Wolfe, para citar o triunvirato dos maiores e mais relevantes escritores dos seus tempos, e ainda o são mundo afora, nos dá a real dimensão do trabalho engenhoso a que Maxwell Perkins se devotou em quase cinco décadas de ofício, chegando ao cargo de Vice-presidente da Charles Scribner’s Sons, a mais conceituada e importante editora americana na primeira metade do século passado.

Lendário caçador e burilador de talentos, Max, como era chamado, entendia o seu trabalho não como uma simples profissão, mas um ministério,  ao qual se entregou de corpo, alma e espírito, e foi um dos mais relevantes, senão o maior, para os novos rumos que a literatura tomou a partir de suas descobertas e inspiração para autores e seus textos.  

      Antes de entrarmos na pessoa de Max, devo acentuar algo: o trabalho meticuloso de pesquisa, condensação e o mergulho às profundezas de Perkins e seus pupilos geniais. A. Scott Berg transpõe em palavras as emoções, frustrações, lealdade e desvelo do editor com a literatura e seus criadores. É um livro delicioso de ler, e ele consegue transportar à simplicidade as complexas relações entre os vários protagonistas e inúmeros figurantes. É quase impossível abandoná-lo. À medida que Berg tecia a sua rede, é irremediável tornar-se presa, já no início da construção. Por muitas vezes, vi-me descuidar de outros afazeres para devotar, e devorar, mais algumas páginas e tempo na companhia de tão ilustres personalidades. Scott Berg construiu, com talento e sensibilidade, o gênio e seus gênios, sendo ele também, sem exagero, um deles.

Por fim, a biografia serviu de base para uma versão cinematográfica de 2016: “O Mestre dos Gênios”(ainda não assisti, e o farei em breve; talvez até poste a resenha aqui), com Jude Law, Colin Firth, Guy Pearce e Nicole Kidman. E, se praticamente todas as versões cinéfilas de livros nunca conseguem sequer igualar a obra original, não espero algo de proporções similares quanto ao resultado, mesmo sabendo que são formas de comunicação e arte distintas. Desejo, contudo, que a produção e direção consigam agarrar o “espírito” do livro e transpô-lo para a tela. Já seria um grande feito.

William Maxwell Evarts Perkins, nasceu em 1884, em Nova York, filho de Elizabeth Evarts (filha de William M. Evarts, proeminente jurista, procurador e político) e de Edwards Clifford Perkins, advogado. Viveu a maior parte da infância em Plainfiel, New Jersey. Formou-se em economia na prestigiada Harvard University, em 1907; e, quando se decidiu pela carreira de editor, foi auxiliado pelo professor de literatura Charles Copeland que se tornaria um grande amigo. Nesse período, trabalhou no New York Times como repórter (1907 a 1910).

Sem muitas expectativas com a carreira jornalística, mas com alguma influência nos círculos literários da Big Apple, é contratado para o departamento de publicidade da Charles Scribner’s Sons, editora considerada “conservadora” e que detinha títulos de autores como Henry James, Sherwood Anderson, Rudyard Kipling, Robert Louis Stevenson, John Galsworthy e Edith Wharton, entre outros nomes considerados ultrapassados pelo mainstream da época. Muitos dos autores emergentes, durante o pós-Primeira Grande Guerra, jamais seriam publicados se não fosse o trabalho investigativo e “depurador” de Perkins, uma vez que o conselho diretivo da Scribner’s não somente era reticente, mas se opunha aos novos rumos em que a linguagem literária se aventurava, mantendo-se firme na disposição de investir nos clássicos. Com leitores fiéis, não estava disposta a romper a sua tradição editorial e investir em livros experimentais: novas estruturas, conceitos e estéticas.

Em pouco tempo, foi promovido para uma espécie de “auxiliar de edição”, onde ajudava na leitura e avaliação de textos originais e inéditos. Nessa época, chegou-lhe às mãos um livro intitulado The Romantic Egotist”, de um jovem desconhecido, F. Scott Fitzgerald. Enquanto os colegas recusaram o livro, com a alegação de não estar de acordo com a linha editorial, Perkins leu-o de uma sentada e ficou maravilhado; então, rapidamente, escreveu ao autor sugerindo algumas modificações a fim de convencer o velho “Charles” a publicá-lo. Scott empenhou-se em reescrevê-lo, e alguns meses, entregou-o a Max com todas as alterações propostas. Após um embate interno, Max persuadiu o “chefão”, e recebeu o aval para publicá-lo.

Em 1920, é lançado “Este lado do Paraíso”, e o livro se tornou um sucesso de crítica e público, lançando quase instaneamente Fitzgerald ao estrelado, confirmando o acerto de Max e seu “feeling” editorial.

Apesar da resistência de parte da equipe, Perkins começava a ganhar admiração e chamar a atenção. Foi ele quem lançou todos os livros de Scott, a quem tinha por amigo, a quem aconselhou e orientou, não somente em relação ao aspecto profissional, mas também financeiro e emocional. A relação do autor com a esposa, Zelda, era conturbada, e Scott se submetia a despesas enormes, um padrão de vida ostentador, noites e mais noites envolvidas no “glamour” a que Zelda impunha o casal. Com isso, Fitzgerald teve, por muitas vezes, que escrever literatura de segunda, terceira linha (Hemingway, de quem também era amigo, acusou-o várias vezes de prostituição, e de desperdiçar um talento inestimável em troca de dinheiro para munir os caprichos de Zelda), roteiros para Hollywood (Max considerava essa opção um verdadeiro desastre na carreira do pupilo), e palestras que odiava. Ao mesmo tempo em que Scott era um escritor talentosíssimo, tinha as suas fragilidades: o vício do alcoolismo, ostentação social e a indigência financeira, arrastando-o para um final onde a degradação artística, por fim, fez claudicar e aniquilar a pessoa.

Berg ressaltou:

“Anos depois, em Paris é uma festa, Hemingway resumiu a carreira de Fitzgerald com a imagem que primeiro chamou sua atenção quando lia ‘O Último Magnata’: ‘Seu talento era natural como desenho feito pela poeira nas asas de uma borboleta. A certa altura sua compreensão dele não era maior do que a que tinha a borboleta e ele não sabia distinguir se estava comprometido. Mais tarde, tornou-se consciente de suas asas danificadas e da estrutura delas e aprendeu a pensar e não pôde mais voar porque perdera o amor pelo voo e só constituía se lembrar de quando ele não exigia esforço’”.  

Após a publicação de “O Grande Gatsby”, Perkins recebeu de Fitzgerald, a indicação de outro autor: Ernest Hemingway. Scott e Ernest se conheceram em Paris, na casa de Gertrude Stein, local onde o círculo de escritores se encontrava para, em primeiro lugar, abastecer o ego de Stein, insaciável, e orgias regadas a álcool e drogas sem freios e fim (muito foi descrito em “Paris é uma festa”). Hemingway era o oposto de Fitzgerald, o tipo de “macho alfa”, seguro e audacioso.

Novamente, Max teve de suar gotas de sangue para a Scribner’s publicar “O Sol Também se Levanta”, em 1926. O livro era considerado excessivamente obsceno, ao ver da direção, e não satisfazia as exigências editoriais. Depois de inúmeras reuniões e o jeito diplomático, mas convincente de Max, o romance veio à lume. Novo sucesso de crítica e público. E, até a sua morte, Perkins seria o editor de Hemingway.

Certa vez, depois de insistir muito com Max (havia anos que não tirava férias), Hemingway levou-o para pescar em Key West, Flórida, no Golfo do México, e contou-lhe muitas das aventuras no mar, histórias sobre pescadores, touradas e caçadas, algumas das quais ele mesmo estava envolvido. Perkins ouviu-as e percebeu material suficiente para “Hem” escrever um livro até então inédito: algo sobre a pesca e o mar. Fez sugestões, considerações e incitou “Hem” a planejá-lo. Durante anos, o autor esquivou-se de fazê-lo, mas em 1951 publicou “O Velho e o Mar”, dedicando-o ao velho amigo, que havia falecido em 1947.

Em 1928, chega às suas mãos um calhamaço de páginas amarradas por barbantes, de um tal Thomas Wolfe, jovem escritor da Carolina do Norte. Havia sido recusado por todas as editoras em que enviou a sua obra, “O Lost: A Story of the Buried Life”. Tinha cerca de 1.100 páginas e entre 300.000 e 350.000 palavras. Era um excesso para um escritor iniciante, e fora dos padrões de edição da época. Max leu-o, considerou a ideia genial, mas era uma obra caótica e carecia de ajustes: um corte de 100.000 a 150.000 palavras e a reestruturação da história. Ele as sugeriu a Tom que, mesmo não gostando da ideia, concordou e trabalhou com o editor na nova formatação.

 Marcia Davenport descreveu:

Tudo que Max faz visa o efeito integral do livro (...) Ele acredita nos nossos personagens, que se tornam reais para ele (...) Mas pode pegar algo caótico, nos dar um andaime para construirmos uma casa em cima dele (...) Sua tarefa é grande, longa, cheia de agonia e confusão”. Berg acrescentou: “Como tantos de seus autores, ela (Marta) descobriu ao voltar ao trabalho que os comentários de Max eram eficazes de uma forma quase subliminar; que ele tinha um jeito de atirar observações com delicadeza como se atirasse seixos em um lago, criando anéis de significado que cresciam até tocar a consciência do autor”(pg. 572).

Lançado em 1929, “Look Homeward, Angel” foi estrondoso sucesso de crítica e público, e provavelmente pela ligação quase filial de Wolfe com Perkins: para Max, o filho que não teve (tinha cinco filhas), para Tom, o mentor e tutor único, a relação ia do céu ao inferno e vice-versa. A ligação entre eles é o centro da biografia de Berg e ocupa a maior parte. É possível ver o relacionamento ultrapassar o caráter profissional e tornar-se pessoal, emocional, quase familiar, como já descrevi. Thomas participa da rotina dos Perkins como se fosse um membro; e, ao mesmo tempo em que ganhava o carinho da esposa e filhas do editor, também se metia em cenas deploráveis e cruéis, ao ponto de causar certos “tremores” na relação.

Muitos críticos e executivos da própria Scribner’s acentuavam os méritos de Perkins nos livros de Wolfe, o que certamente deixou o autor enciumado e rancoroso. É comum, após as crises intempestivas, Tom se desculpar e buscar os conselhos do “papai”. Max, apesar de não se envolver na vida dos pupilos, que também eram seus amigos, especificamente Scott, Ernest e Tom, servia como confidente e orientador. Tentava, sempre que possível, auxiliá-los em qualquer situação ou problema. Era generoso, amigo, confiável, leal e um pacificador, no sentido de nunca promover disputas e impor sua vontade, apesar de, quase sempre, convencê-los. Se Fitzgerald era frágil e maleável, Hemingway impetuoso e confiante, Wolfe ficava no meio do caminho, entre a vaidade, a insegurança e o melindre.

Sobre isso, Berg escreveu:

“Na raiz de toda a raiva de Wolfe estava a crença geral de que sem Perkins ele era impublicável – um escritor fracassado. O próprio Wolfe dera fôlego a essa noção, tornando públicos fatos que Perkins lutara para manter privados” (pg. 451).

Em carta, Max ponderou com Wolfe:

“A minha impressão, porém, é de que você pediu minha ajuda, de que a deseja(...) E também tenho a impressão de que as mudanças não lhe foram impostas (você não é muito propenso a aceitar imposições, Tom, nem eu, muito dado a fazê-las), mas, sim, discutidas, muitas vezes por horas”(...) Acredito que o escritor, de todo jeito, deva sempre ter a última palavra, e minha intenção sempre foi essa. Sempre adotei tal postura e às vezes cheguei a ver o prejuízo que isso teve sobre certos livros, mas, ao menos, em igual medida, o quanto também foi útil. O livro pertence ao autor”(pg. 457).

Max lidava da melhor forma com temperamentos tão distintos, sempre gentil e econômico. Não era dado a exibições, rechaçava elogios, e escondia a timidez no silêncio; os livros eram o refúgio para afastar-se do mundo das pessoas, ao menos as reais.

A exceção foi a relação platônica com  Elizabeth Lemmon. Durante a maior parte de sua vida, correspondeu-se com ela por meio de longas cartas, nas quais se abria de uma maneira singular. Ela era a sua confidente, a pessoa em quem mais confiava, e com quem, certamente, caso não tivesse casado com Louise Saunders, se uniria. Não houve qualquer relacionamento lascivo entre eles. Havia, sim, um envolvimento emocional, fraterno, que poderia se estender a outros aspectos, caso Max não fosse completamente leal à família. Algo verdadeiramente difícil, não impossível, nos dias atuais. Sobretudo, era um homem de caráter, princípios e, mesmo não havendo qualquer referência a algum relacionamento com Deus (algo que a esposa, nos anos derradeiros do casamento, aceitou, ao converter-se ao catolicismo), Max tinha em seu temperamento e atitudes um espírito cristão.

A relação entre Maxwell e Beth foi dedicada, honrada e sincera, mas nada a permitir “avanços” ou aventuras extraconjugais. O fato de Louise se dar bem com a “rival”, de se confraternizarem nos raros momentos em que a distância (os Perkins moravam em Connecticut, os Lemmon em Baltimore, distante 460 km) e a vida profissional exaustiva e compulsiva de Max permitiram.

Perkins mentoreou e obteve, para outros dos seus pupilos, grande sucesso, como Edmundo Wilson, Alan Paton, Erskine Caldwell, John P. Marquand, Marjorie Kinnan Rawlings, S.S. Van Dine, Ring Lardner, James Jones (autor de “A um Passo da Eternidade” e “Além da Linha Vermelha”),  Marguerite Young, e a lista cresce...

A coletânea de cartas, publicada em 1950, “Editor to Author”, descreve como foram os relacionamentos entre o gênio e seus gênios. Em especial, Perkins foi não somente o pai às filhas que amava devotadamente, mas também aos outros que adotou, quase gerou, e, enquanto pôde, protegeu, orientou e entregou-os ao mundo.

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FRASES:


“A melhor sensação que existe é a de ir dormir cansado”.

“Quanto mais é um homem, menos ele deseja”.

“A verdadeira escrita faz-se na cabeça, onde as impressões estão armazenadas, e faz-se com o olho e o ouvido. A agonia vem depois, quando passamos para o papel, mas isso pode tornar-se fácil se, através da leitura, soubermos como os outros o fazem.”

“A base genuína da amizade é ter um ou dois preconceitos em comum”.

“A obrigação mais importante da amizade é ouvir”.

“A verdade é que os melhores escritores não são aquele que, via de regra, fazem sucesso de imediato”.

“Creio, na verdade, que a melhor escrita é aquela que vem muito depois dos acontecimentos com que se relaciona, numa altura em que já houve assimilação e reflexão, e o autor consegue finalmente entendê-los por inteiro. É bom jornalismo aquele que é feito rapidamente enquanto tudo é novidade, mas essa não é a melhor escrita.”

“Mal posso crer, na verdade, mas prefiro fingir que é verdade”.

“Minha sensação é de que o primeiro compromisso do editor é para com o talento. E se não vamos publicar um talento como este (F. Scott Fitzgerald), a coisa fica muito séria”.

“A meu ver, a universidade é o lugar para o indivíduo se expandir, superar preconceitos, olhar para tudo através dos próprios olhos”.

“Os homens medem o sucesso social pelo tipo de clube a que pertencem”.

“Não existem duas moças iguais, como também nenhuma moça é a mesma, exceto por pura coincidência, em duas ocasiões diferentes”.

“Mesmo quando as pessoas estão totalmente erradas, não se pode senão respeitar os que falam com tal sinceridade passional”.

“Estou tentando dizer a um escritor e à sua esposa como ele deveria escreve. Não é engraçado, já que é uma coisa que eu mesmo não sei fazer? Cheguei até a lhe dar para escrever uma história que inventei — e ele ficou encanto com ela. É um bocado difícil falar a noite toda de coisas sobre as quais você não entende nada”.

“Quando o tumulto e a gritaria da turba de críticos e mexeriqueiros esmorecer, ‘O Grande Gatsby’ se destacará como um livro extraordinário”.

“Seria uma lástima o próprio significado de um livro tão original ser desconsiderado devido aos uivos de um bando de tagarelas mesquinhos, puritanos e idiotas”.

“Como esperar, me diga, que um homem entenda as mulheres?... Ou uma única mulher, que seja?”

“Tenho a ambição de pegar a estrada aos sessenta anos. As chances são mais ou menos de uma em mil de que isso venha a acontecer”.

“A forma como se ensina literatura e escrita na faculdade é prejudicial. Faz com que se adquira o hábito de ver tudo através de uma espécie de fotografia da literatura, em vez de captar o que está à volta através dos próprios sentidos. Diria que alguns anos num jornal, para alguém que ambicione ser escritor, é muito melhor do que alguns anos na faculdade”.

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Avaliação: (****)

Autor: A. Scott Berg

Editora: Instrínseca

Páginas: 544



15 maio 2025

O Demônio da Cidade Branca - Erik Larson

 





Jorge F. Isah



 Foi o primeiro livro de Erik Larson que li. A impressão, no geral, foi boa, pois ele descreve em detalhes os eventos históricos da "Grande Feira Mundial de Chicago", em 1893, concomitantemente com os ataques do primeiro serial killer americano, H. H. Holmes, na mesma Chicago e na mesma época.

 Primeiramente, ressalto a profusão de citações, a extensa bibliografia apontada, e fotografias que me pareceram oriundas de um trabalho historiográfico dispendioso, acurado e rigoroso. 

 Em segundo lugar, a narrativa se assemelha muito com os romances históricos, em voga nas últimas décadas. A diferença é que a obra se mostra claramente histórica, mas escrita em uma linguagem cativante, simples, íntima, onde as várias fases da feira (e da vida de seus realizadores), de Holmes e suas vítimas, se intercalam, favorecendo a leitura, tornando-a leve, didática, estimulante e mantendo um certo clima de suspense “noir”. Podemos encontrar as lutas, desejos, frustrações, rivalidades, cooperações, traições e tudo o mais que se pode ler em qualquer drama. Com isto, não estou dizendo que Larson desejou escrever um romance, não o é, ainda que se assemelhe em muitos pontos. Entretanto, ele se utilizou da linguagem "romancesca" para trazer leveza e criar empatia com o leitor. Ponto para ele. 

 Ao traçar um paralelo entre a Feira, Holmes e seus crimes, faz com que coisas diametralmente díspares, como a criação de um evento suntuoso e monumental, de caráter e apelo global, corram em paralelo à destruição provocada pelo “gênio” diabólico de Holmes. Alguém pode dizer que, em algum aspecto, o serial killer também era um criador, ao planejar e pôr em prática seus projetos bárbaros e atrozes. Bem, não entendo assim, e reputo Holmes como um homem com algumas habilidades e magnetismo pessoal, mas apenas os usando para a destruição, inclusive pessoal; e se para destruir é necessário "criar" algo, essa criação não passa de meios para a destruição, e não pode ser incluída no rol daqueles que constroem a beleza do nada, como é o caso dos grandes arquitetos David Burnham e F. L. Olmsted, entre outros, os gênios por trás da Feira de Chicago.

Se imaginarmos que a Feira abriu espaço para as maiores inovações tecnológicas, muitas das quais se tornariam imprescindíveis na sociedade moderna, como a eletricidade, tubos de vácuo elétricos iluminados por correntes sem fio, o telautógrafo (uma espécie de fac-símile primitivo), esteiras rolantes, o rádio e transmissões por ondas elétricas, equipamentos sonoros elétricos, a roda-gigante (criada para rivalizar com a Torre Eiffel, a principal atração da Feira de Paris, em 1889); e cientistas ilustres como Tesla, Edison, Bell, Gray; mais de 2 km quadrados de área iluminada, com réplica monumental de pirâmides, transatlânticos, colunas greco-romanas, tudo abarcado com o que de mais inovador e futurista a tecnologia podia reunir e proporcionar à época, temos um evento monumental e fascinante. 

Os visitantes das mais de 200 instalações se deslumbraram com a gigantesca, inusitada e profética demonstração do que viria a acontecer nas próximas décadas, em termos científicos, e a beleza incomum que os idealizadores da Feira ergueram e revelaram ao mundo. Chicago foi, durante a Feira Mundial, a antevisão do futuro naquele presente. 

Portanto, não dá para dizer o mesmo de Holmes, um psicopata, frio, dissimulado e covarde (inspirador de outros tantos malignos homens). Holmes era a antítese de Burnham e seus colegas, e, certamente por isso, Larson colocou-os lado a lado na narrativa; uma amostra ou lembrança, ou melhor, um alerta de que se existe criatividade construtiva, existe o labor para o mal e a deficiência. Neste sentido, Holmes foi um "criador" incompleto, negativo, cruel, fraco. Sem forças e talento para produzir o bem, contentou-se em destruir; e, durante o seu julgamento, tentou se passar por vítima, utilizando-se do delírio intelectual (presente em muitos acadêmicos e cientistas modernos), a fim de suprimir a realidade, distorcendo-a, na vã tentativa de enganar, se possível, alguns quanto à sua verdadeira imagem: um homem maldito, cruel e insensível!

Larson poderia ter reduzido em algumas dezenas de páginas a sua história, talvez não se entregando tanto a detalhes técnicos mais, digamos, enfadonhos. Entendo, contudo, que lhe pareceu necessário, a fim de poder aquilatar, um século depois, a grandiosidade e dispêndio criativo, econômico e de esforço, na construção da Feira das Feiras, a “World’s Columbian Exposition”, revelando a genialidade e o empreendedorismo humano.

Quanto a Holmes, aproveitando-se da ingenuidade e boa-fé das pessoas, utilizando-se do seu carisma para torturar e assassinar gente comum, colocou-o no rol dos maiores infames da humanidade e da história. De forma que, em meio ao brilho inventivo da arquitetura, física, engenharia e tantos obstáculos ultrapassados pela engenhosidade humana, temos a figura nefasta e torpe do primeiro serial killer e sua odiosa, e não menos feia e aterradora, "criação", fazendo jus ao título do livro. 

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Avaliação: (***)

Título: O Demônio na Cidade Branca

Autor: Erik Larson

Editora: Intrínseca

Páginas: 448

01 maio 2025

Diário de um Velho Louco - Junichiro Tanizaki

 




Jorge F. Isah

 

 

                Como o título denuncia, o livro foi escrito na forma de diário, pelo patriarca da família Utsugi. Quase um octogenário, impotente, com terríveis dores lombares e na mão, a gastar boa parte do dia com terapias, remédios e reclamações sem fim, é um homem relativamente culto, que gosta de teatro, poesias e domina muitas das tradições japonesas; é crítico, ácido, egoísta e despreza a família. Nutre antipatia pela esposa, velha como ele, as filhas e netos. Talvez a única pessoa a se relacionar pacificamente seja o filho Jokichi (talvez, e somente talvez, haja algum respeito por ele; não por ele, mas pelo que conquistou na vida. Mais adiante, entenderá), cujo distanciamento o mantém reservado a maior parte do tempo, não somente durante as inúmeras viagens a trabalho, mas também nas constantes reuniões que varam a noite. Utsugi quase sempre não se abstém de humilhar e escarnecer os demais membros, de maneira insolente e nada sutil. É rico, e isso o deixa senhor da situação, e evidência ainda mais o inconformismo que sente com a família e a vida.

    Nutre, contudo, uma obsessão pela nora, Sasaki, mulher de Jokichi. Como disse, se existe alguma inveja quanto ao sucesso do filho, provavelmente reside no fato dele ter amealhado o seu objeto de adoração. Sim, o velho tem fetiche pelos pés de Sasaki (ex-dançarina de clubes noturnos), os quais descreve com arrebatado deleite. Tudo faz para tocá-la e desfrutar dos parcos e raros momentos em que a esperta nora submete-se aos arroubos senis do vovô, assim chamado carinhosamente. Não sem cobrar o silêncio quanto as suas escapadas com o amante, Haruhisa, que o velho recebe em sua própria casa, e a presenteia com um anel valiosíssimo, em detrimento de, por exemplo, emprestar certa importância (muito inferior ao do anel) para a filha quitar o débito da casa. Talvez sejam vinganças de um louco, o homem que perdeu completamente a noção da razão e tem a sua consciência amortecida pela luxúria e traição, mas talvez seja o dane-se que a proximidade da morte pode se encarregar de exibir.

   Tanizaki descreve toda essa amálgama de desgraças de maneira burlesca e caricata, como se estivesse a brincar, ironizar as maluquices do velho e o assombro dos demais personagens. Existem cenas de nítido humor, um humor distendido, quase negro, permeado pelo ridículo e sarcasmo. Assim, a narrativa é fluída, simples e transmite com eficiência o clima picaresco e satírico da trajetória do ancião. A tragédia tem sempre elementos absurdos e espalhafatosos, e aqui não é diferente.

   Algumas pessoas reputam o livro como libertador, o frescor do sexo livre, sem amarras, e desse ser um traço da literatura japonesa não afeita aos rigores morais do Ocidente e, em especial, do Cristianismo, uma vez que o budismo e o xintoísmo são religiões mais, digamos, flexíveis quanto aos princípios. Será mesmo?... Não seria o contrário?  No sentido de o Japão ser um país muito mais apegado às tradições, à honra, à família, uma moral ainda mais palpável e elevada (no sentido de graduação) do que a nossa? Ou Sade, Diderot, Laclos, Boccaccio, Roma, Atenas e tutti quanti autores e palcos centenários e milenares escreveram e foram descritos em orgias e libertinagem? A comparação colocaria o personagem de Tanizaki como um velhinho inofensivo e bocó, mas ainda assim um hedonista, como outros em diferentes épocas e culturas. Porém, existem graus de imoralidade, de vícios, assim como virtudes e bondade. O homem, seja ocidental, oriental e, caso exista algum, marciano, é sempre o mesmo homem, indisposto ao bem e predisposto ao mal, ainda que o mal não se manifeste em toda a sua virulência, nem o bem algo inerente, mas fruto dos resquícios, conta-gotas, do Imago Dei. Sem entrar nos pormenores teológicos, do ponto de vista literário, o autor denuncia a degradação e o apodrecimento da sociedade japonesa, ao contrário da conclusão libertária que alguns, ou muitos, depreendem do livro. 

  O velho, culto e abastado, ao manter uma relação incestuosa com Sasaki, em seu ceticismo com o mundo e as pessoas, a vida, a morte e qualquer possibilidade de esperança, transforma-a em ídolo, a deusa não somente momentânea, mas da qual, inclusive, quer esculpir as formas exatas dos pés e colocar sobre o seu mausoléu, e substituir os símbolos religiosos pela sua própria deidade. E isso me leva a questionar se, no fim das contas, Utsugi não é o seu próprio deus a estabelecer os ritos do autoculto, autoveneração e autodevoção. E Sasaki não seria o sacrifício através do qual os seus súditos, a família, amigos e serviçais, conheceriam os caprichos de um deus idoso e caquético?

 Deparei-me também com a ideia de toda a narrativa não ser nada além de imaginação e delírio do velho safado (apropriação de Bukowski), em sua condição decrépita e caduca, já que a maior parte do livro é narrada por ele, à exceção de dois capítulos onde a enfermeira e o médico descrevem a sua particular condição. Seja ou não alucinação, a verdade é que Tanizaki compôs a face de um homem com a qual muitos podem se identificar, velho ou não, onde as consequências afetam não somente o indivíduo, mas todos ao seu redor, especialmente os que, por um motivo ou outro, tenham intimidade e convívio. Sem contar o pouco caso com aqueles a auxiliá-lo, a se preocuparem, independente da motivação. Convenhamos, ele é um velho esquisito, manipulador em sua obsessão tardia e caduca; depende de todos, mas arrasta-os consigo para a queda vertiginosa. 

Isolado em si mesmo, a sua excentricidade era impulso, de ser o que não podia mais ser, à cata de um elixir da vida e da juventude, onde, perdoe-me Cormac, os velhos ou fracos não têm vez!

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Avaliação: (***)

Título: Diário de um Velho Louco

Autor: Junichiro Tanizaki

Páginas: 208

Editora: Estação Liberdade

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