Jorge F. Isah
Este é o que se poderia dizer um daqueles livros que
caiu no meu colo, sem indicação, sem ouvir falar, ou ter referência. Em minhas
constantes buscas por títulos, e por descontos (ninguém é de ferro!), na última
Prime Day deparei-me com ele e, à primeira vista, me remeteu à ficção
científica de Wells. Mas não era. Escrito por um tal Ralph Ellison, cujo nome
não me dizia nada. Li a sinopse e me interessei pela história, já com receio de
ser um daqueles livros lançados como “antirracistas” (a encher as livrarias), e
que são apenas panfletários e libelos muito mal escritos.
Estava às voltas com outros volumes, e reservei-o
para a semana seguinte, furando, mais uma vez, a longa fila que se arrasta. Não
falo de design de capas, porque o assunto é sempre o texto, história e
narrativa, mas achei a da José Olympio artisticamente bela e sugestiva. O
designer conseguiu captar a essência do livro e, quase, porque não deixa de ser
uma falácia, pôde garantir: “uma imagem vale mais do que mil palavras”.
Dias depois, comecei a lê-lo. Já no início, me vi capturado
pela introdução; o final do 1º parágrafo diz:
“Levei muito tempo para constatar, e com doloroso
efeito rebote de expectativas, aquilo que todo mundo parece saber desde o
nascimento: que não sou nada além de mim mesmo. Primeiro, porém, eu tive de
descobrir que era um homem invisível”.
A ideia da busca pela identidade e um lugar no mundo parecem óbvias, e vai se confirmando no progresso da leitura. Contudo, vai além.
Pode-se ver que, decorridos 20 anos desde o início da trajetória do personagem (o narrador está na casa dos 40), outros elementos se agregaram.
Negro, nascido em meio ao racismo americano, filho
de pobres, e uma ligação intensa com o avô falecido, que parece uma espécie de
voz interior; ele vai para a faculdade de negros onde experimenta na própria
pele o jogo de poder, e, nesse campo, não existe cor, mas apenas o rigoroso código sem o qual é
impossível progredir social e intelectualmente. O reitor e o conselho, ocupados
por negros, pareciam cumprir à risca as últimas palavras do avô, no leito de
morte:
“Filho, depois de eu partir, quero que continue
nesta luta. Nunca lhe contei, mas nossa vida é uma guerra, e tenho sido um
traidor desde que nasci, um espião no território inimigo, desde que deixei
minha arma, na época da Reconstrução. Viva com a cabeça na boca do leão. Quero
que você os derrote de tanto dizer sim, que os solape com sorrisos
escancarados, concorde com eles até a morte e a destruição, deixe-os engolirem
você até vomitarem ou explodirem” (pg. 50).
Parece o delírio de um velho moribundo, mas, depois
de andar algumas páginas, refleti que, no final das contas, o que o ancião
queria dizer era: “Não ligue para o que pensam de você, engane-os, iluda-os,
mas saiba no íntimo quem você é!”. O narrador estava convicto de já ser
assim:
“Na cidade, eu era elogiado pelos homens mais
brancos do que lírios. Era considerado um exemplo de conduta desejável,
exatamente como meu avô fora” (pg. 51).
A morte do velho causou-lhe um impacto profundo,
porém, mais do que ela, as suas últimas palavras “causaram tanta ansiedade
que foi como se ele não tivesse morrido” (pg. 51).
Em meio às dúvidas, havia a certeza de não se deixar
vencer tão facilmente.
Em uma sequência desastrosa, ao ciceronear o
principal filantropo da instituição, Sr. Norton (branco), se vê expulso pelo
reitor, dr. Bledsoe (negro), preocupado em resguardar a sua posição e
confirmar, diante de negros e brancos, a sua capacidade diretiva. Com isso,
parte para Nova York com várias cartas assinadas pelo reitor e endereçadas a
contatos, onde o jovem proscrito será apresentado como candidato a alguma vaga.
Na verdade, todo o arranjo do reitor é uma farsa, e somente depois de
perambular por salas de espera, secretárias impessoais e respostas mecânicas, à
espera de resultado, descobre que fora enganado. Veio-lhe então a imagem quase
onipresente da estátua de bronze do fundador da faculdade, “o símbolo de um
Pai frio, as mãos esticadas no espantoso gesto de levantar um véu que tremula
em rígidas dobras metálicas acima do rosto de um escravo ajoelhado; e me vejo
desorientado, incapaz de decidir se o véu está realmente sendo levantado ou
abaixado mais firmemente para o lugar onde se achava, se presencio uma
revelação ou uma cegueira mais eficiente.” (pg. 73).
A saga errática do nosso herói continua em situações
bizarras, engraçadas e absurdas. Contra elas, por mais que tente reagir, é
sempre capturado, subjugado; mas o orgulho e o ardor ingênuo encarregaram-se de
ocultar ou, ao menos, não deixar evidente o descontrole que tinha sobre a
própria vida. Estivesse incógnito ou evidente, ele era uma peça de uma
engrenagem gigante, cuja função, ação e propósito desconhecia e, nem mesmo o
tempo foi capaz de elucidar. O sistema dava a cada um ares de importância,
enquanto os mantinham em cabrestos; e por mais que se grite, mova e queira
vislumbrar o panorama, consegue-se ver tão somente o que as viseiras permitem,
os arreios indiquem, e o chicote não reprima.
No fundo, toda essa movimentação social na busca do Éden, ou da Babel, é fruto da cegueira e arrogância. Ninguém pode salvar quem não se considera perdido ou condenado; resta que, primeiro, o faça a si mesmo. De alguma forma, a busca do protagonista é essa: ao descobrir o seu lugar no mundo, constata que não é definitivo, e antes mesmo de ocupá-lo, já preparam o seu substituto. A chama de vida é possível, e ele a encontra na pessoa da velha Mary mas, seduzido pela notoriedade e a promessa de mais disso e daquilo, abandona-a, e o que poderia ser uma fogueira acolhedora e aprazível se apaga em quase um piscar de olhos... A ilusão está por toda parte, e quase sempre o que os olhos veem o coração não sente ou compreende. A verdade é que o mundo, tal qual o conhecemos, é por demais inóspito se estivermos a olhar apenas o que podemos e queremos. Assim, não é difícil ser amealhado e enganado por ideologias, falsos ídolos, apóstatas e messias de araque, que engabelam com a promessa doidivana de um paraíso na terra, ao alcance das mãos, mesmo sem ninguém o ter alcançado.
Num pulo, se vê envolvido em uma teia, aliciado por
um grupo de ideólogos, a “Irmandade”, cujos objetivos não têm nada a ver com a
aparente causa negra, mas se utiliza dela para alcançá-los. Jack passa a ser o
seu mentor e com ele tem acesso a tudo o que é mais apetecível à alma:
imoralidade, aética, conforto e algum poder. Antes é preciso transformá-lo à
imagem do movimento, e até mesmo um codinome (um pseudônimo) o obriga a
rejeitar o próprio nome, a abandonar e não ter contato com a família, amigos e
nada que o remeta ao passado; resta apenas o futuro e o presente a construí-lo.
Em busca da identidade, precisa negar a pessoalidade. Na construção do novo
homem, o antigo deve ser destruído. Não há lugar para sentimentos,
arrependimento ou hesitação. A Irmandade precede o indivíduo; e ele não pode
sobreviver, para que ela não morra. Enquanto houver resquícios do velho homem,
não se pode construir o novo e forjar uma nova identidade. Ela é coletiva, e o
nosso homem “pré-invisível” está disposto ao sacrifício, a fim de trabalhar
pela causa do seu povo. Com o tempo, nota no irmão Jack (o líder do movimento)
os mesmos sintomas que tornam Bledsoe um homem temido. Se a Irmandade é um
grupo de racionais-materialistas, os inimigos mais ferrenhos, Ras e seu clã,
são anarquistas. Em ambos, é perceptível o desprezo a qualquer valor
minimamente humano; nada além do poder, e estamos conversados.
Existem momentos, mais do que o normal, em que ele
se faz de pobre-coitado, e começa um chororô repetitivo e monótono. Não é algo
que comprometa a história, mas que poderia ter menos visibilidade. Contudo,
entendo a intenção, como um primeiro estágio do homem impotente e infantil diante
da loucura ou injustiça do mundo; mas são notas que o excesso faz destoar.
Em suas quase 600 páginas, Ellison narra as
desventuras e frustrações do nosso herói, ou anti-herói se preferir, até o
ponto em que, em mais um descuido, se viu lançado na mais plena escuridão, e
dela não quis mais sair. Quem se importa com um homem invisível? Mas, do seu bunker, ele ouve e sabe o que se
passa com outros tantos homens como ele, que, se pudessem escolher, não o
seguiriam em sua jornada, afinal, não se segue a quem não se enxerga.
A conclusão final de Ralph Ellison, a última frase,
nos conclama à reflexão: “Quem sabe se, nas frequências mais baixas, eu falo
também por você?”.
Pretensioso?!... Esta é, contudo, a vantagem de ser
invisível.
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Classificação: (****)
Título: Homem Invisível
Autor: Ralph Ellison
Editora: José Olympio
Páginas: 574
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