Jorge F. Isah
Havia tempos queria ler esse livro de Dickens. Como a minha lista de leituras sofre constantes mudanças, “Um Conto...” teve a frente furada por outros tantos e, somente agora, pude concluí-lo. Dickens está na relação dos meus cinco ou seis escritores prediletos. Às vezes, vai para os primeiros lugares do topo, em outras, desce. Mas sempre está lá, desde que li pela primeira vez “David Copperfield, o amor pela escrita do inglês só aumentou.
Para muitos, “Um Conto...” é um livro político, a falar da Revolução Francesa. Certamente, no contexto histórico da Revolução Francesa, o autor penetra o emaranhado de casuísmos e desastres enovelados no evento, um dos mais importantes. Mas, assim como “Os Demônios” de Dostoievski, não está a falar apenas de um fato macabro e sinistro, do ponto de vista meramente político. Mais do que análises acerca de governos e seus sistemas, seja denunciar o totalitarismo revolucionário (no caso de ambos os livros), ele está a tratar da humanidade, em especial o homem e as circunstâncias a mover o seu íntimo em uma direção ou outra. Com isso, não estou a defender a tese de que as pessoas são aquilo que a sociedade quer, que o sistema quer. Quando se está em dúvida ou em um dilema, alguém sempre propõe: o que veio primeiro, o ovo ou a galinha? E aqui é possível utilizar a mesma analogia para se referir a esta circunstância: é o homem quem molda a sociedade ou a sociedade quem o molda?
Parece uma proposição tola, mas não se pode deixar de reconhecer que, seja qual for a resposta, o indivíduo é, em última instância, o responsável por suas decisões, sejam de foro íntimo ou “forçadas” exteriormente. Em qualquer dos casos é possível decidir fazer ou não fazer. A resposta estará sempre, e para sempre, com o indivíduo.
Dickens, sem atender ao maniqueísmo usual dos nossos dias, descreve a opressão dos pobres diante da tirania aristocrática, mas que, quando assume o controle, os mesmos oprimidos espalham terror não somente aos aristocratas, mas a todos aqueles que não veem a execução e morte como únicas respostas. Se havia arbitrariedade de cima para baixo, ela se transformou em algo ainda mais despótica, e abusava não apenas os de cima, mas também os pares embaixo. Inimizades, desavenças e vinganças tornaram-se motivos para denunciar e enviar inocentes à guilhotina. Se pudessem, muitos ergueriam um altar para ela, não somente no coração, mas um monumento à posteridade, como o “deus” de uma época.
Em detalhes, vemos a barbárie, a indiferença e de como o homem pode se endurecer a ponto de se habituar com o mal sem considerá-lo mal mas bem, e o faça rotineiramente a ponto de ansiar e desejar mais e mais do seu veneno. O povo sublevado desconhece os limites até o sangue e a sua exposição pública. Cortar cabeças e exibi-las é tão comum como tricotar, beber uma taça de vinho, mastigar fumo ou acender um cachimbo. Até se embriagar ou intoxicar e repetir o mesmo no dia seguinte. Afinal, o que são 50, 60, 70 mortes? As ruas clamam por 100, se possível muito mais.
Esse é o pano de fundo, onde a vida dos personagens principais se misturam entre a Inglaterra e a França, entre a vida e a morte, a liberdade e a escravidão.
Contudo, Dickens não criou um tratado político ou social, mas escreveu sobre algo que conhece como ninguém: a alma. E, no final, é isso o que importa. Ele trata de arrependimento, perdão e martírio. Os acontecimentos são o mote para analisar e revelar o quão humano ou não se pode ser, ainda que santos tenham os seus pecados, e até mesmo em um demônio ou outro pode-se encontrar resquícios de compaixão; afinal, existe no pior dos homens a imagem de Deus, distorcida, embaçada, é verdade, mas está lá, debaixo de toneladas de lama e escombros, à espera de ser arrancada do abismo e trevas para a luz pelo Espírito.
Diferente do martírio que não se quer, daquele imposto e do qual não se pode fugir, por não haver outra opção, e resta submeter-se sem anuência, várias das personagens estão dispostas ao sacrifício, por escolha, vontade, decisão, em suprimir a si mesmas em prol do outro, o próximo. O mundo é feito de decisões, tanto para o bem quanto o mal, e a depender de quem as examina, o resultado pode ser reconhecido ou não. Existem várias formas de se encarar certas situações que, porém, estarão contaminadas por esse ou aquele preconceito, por essa ou aquela fraqueza. Independente de qual seja a sua avaliação, sem um princípio fundamental e verdadeiro, até mesmo a atitude mais benevolente e desinteressada se tornará ridícula. E a verdade, muito mais do que uma opinião, é construída em base objetiva e não subjetiva.
Você já ouviu isso alguma vez?
Via de regra, movido por estímulos egoístas e hedonistas, o homem moderno pouco se interessa pelo próximo além daquilo que pode extrair dele e do qual se beneficia, infelizmente. Não se satisfazer, ou melhor, desagradar-se, é algo quase inconcebível, se não a própria loucura. Quem não disse ou já ouviu: “importa eu ser feliz”?
Dickens reflete o evangelho, de que é possível haver paz no sofrimento, desde que seja o eflúvio a beneficiar quem se ama. Lembra-lhe Cristo e seu sacrifício?
A revolução francesa foi uma como tantas outras espalhadas na história. Trágica, cruel, hedionda, e a própria frase dos revolucionários: “Liberdade, igualdade e fraternidade, ou morte”(Sim, com o passar do tempo, o lema foi “dourado” a fim de não revelar toda a sua infâmia), demonstra o quão abjeto pode-se tornar um princípio, quando a vingança e reparação é o seu motriz. Por isso, se deve sempre ter cuidado com exigências e garantias de direitos, especialmente históricas, onde a injustiça, violência e criminalização fatalmente trocará apenas de lado.
Dickens está a nos revelar o homem tal como ele é, com seus medos, dúvidas, inseguranças e desejos. Nunca é fácil, ainda que algumas decisões pareçam ser, outras nem tanto, e haver aquelas quase impossíveis. Tomá-las mecanicamente, sem dilemas, é algo brutal e odioso, pois sempre tenderá ao caminho mais fácil, nem sempre o correto e moralmente desejável. A resposta é: tenho paz? E a paz não significa necessariamente tranquilidade e conforto. Não. Significa encarar o problema e até mesmo sofrer. No final, não somente vale a pena, mas é o retrato da verdade, definido na frase: “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos.”(Jo 15:13); pois, “o amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal; não folga com a injustiça, mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor nunca falha.” (1º Coríntios 13: 4-8).
No cenário de caos, violência e morticínio, Carton experimentou a paz, mesmo com salpicos escarlate:
“Isto que faço, aqui e agora, é a melhor coisa que jamais fiz na vida. E o repouso para onde vou, bem melhor que qualquer repouso que eu tivesse algum dia conhecido neste mundo”.
Nem mesmo o homem mais impiedoso e cruel resiste ao amor de Deus.
Nota: Talvez você não entenda o que
escrevi, já que não fiz uma sinopse ou resumo do romance. Raramente o faço. Mas
bastará lê-lo para confirmar o que digo.
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Avaliação: (****)
Título: Um Conto de Duas Cidades
Autor: Charles Dickens
Editora: Nova Fronteira
Páginas: 502
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