Jorge F. Isah
Dalrymple é mais conhecido por suas obras
de não-ficção, sobre a pós-modernidade, onde aspectos culturais, sociais,
educacionais e políticos apontam para um mundo em franca degradação. Ao
aprofundar-se nas causas e consequências desse “projeto”, a dissociação da
sociedade com a realidade torna-se impressionante, mas não impressionável, ao
menos para os “engenheiros” sociais e sua militância histérica e
simplória. Tudo precisa ser modificado para se encaixar aos novos tempos, e o
começo sempre é com o desmonte da língua e o uso de termos e expressões que, se
analisados, demonstrar-se-ão incompatíveis e heteróclitos, para dizer o mínimo.
Cada vez mais, o
homem tem se tornado ambíguo ao entregar-se a ideias vagas e atitudes
problemáticas, a expô-lo em permanente risco. Não raro, crimes, brutalidade,
ataques e mortes têm ganhado o apoio de tantos, enquanto pensar fora das caixas
ideológicas é sinal de ameaça e extremismo. Nunca se viu um amor tão raivoso e
hostil; e talvez essa seja a maior de todas as provas do declínio humano, a
hipocrisia oficial e oficiosa, onde as palavras negam os fatos e atos, e
vice-versa. Em suma, a modernidade se especializou em demolir a moral e a
tradição, enquanto subestima a responsabilidade individual, inocenta o mal
enquanto “demoniza” o bem. Em tempos em que a razão é tão alardeada, o
sentimentalismo é a motivação de uma massa disposta a comprar o discurso de que
“o importante é ser feliz”, mesmo que para isso outros tenham de se “matar”
para arranhar a casca dos seus infortúnios.
O universo de Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels), como um dos grandes
intelectuais modernos, penetra em várias nuances e camadas, e a minha tentativa
é resumir, a quem o desconhece, elementos presentes em quase todas as suas
obras (li 3, ao todo, além deste); e não há como negar: os seus esforços em
colocar no papel tudo aquilo que o establishment quer ocultar, derivam de
décadas de trabalho como psiquiatra na África e Inglaterra, onde, inclusive,
serviu como médico em penitenciárias. Ele fala do que viu e ouviu; mas, qual o
peso disso em nossos dias? Nada que um joguinho de palavras não possa
substituir ou camuflar.
“Tanto por fazer”, seu primeiro romance, é o monólogo do personagem Graham
Underwood, um serial killer, o “Monstro de Eastham”, condenado à prisão
perpétua por matar e enterrar no próprio quintal 15 vítimas (zombeteiro, alega
serem 22). Criado na pobreza e brutalidade, utiliza-se disso para justificar
parcialmente seus crimes; o que não o impediu de, na juventude, ler tanto
quanto podia os filósofos gregos, os clássicos, e praticamente tudo sobre os
assuntos pelos quais se interessou e descobriu. Em relação à maioria das
pessoas, pode-se considerá-lo culto e inteligente; um tipo semelhante, ou
alude, ao “Conde Fosco” de Wilkie Collins, “Long John Silver” de Stevenson, e
“Juiz Holden” de Cormac McCarthy, todos cruéis e sanguinários a despeito da
erudição e intelecto apurado.
Em princípio, pareceu-me o relato de um criminoso, mas, à medida em que se
desenvolvia, o tom “humorístico”, irônico e sarcástico tomou conta da história.
Os argumentos de Graham eram “ipsis litteris” as alegações utilizadas por
governos e seus gestores, pela mídia e seus propagandistas, pelos políticos,
juristas, professores e toda a “intelligentsia”, para anular a realidade e
forjar outra segundo o discurso ideológico. A maioria não se apercebe disso,
mas Graham notou e, não por acaso, levantou a lebre da contradição e
irracionalidade do sistema, capaz de condená-lo pelos mesmos motivos que
inocenta outros tantos milhares. Vá lá, nada do que ele diz, ou a maior parte,
faz sentido, a não ser para ele mesmo que se considera injustiçado, já que se
vê como benfeitor, disposto a fazer o que as vítimas não eram capazes (queriam,
mas não podiam, segundo ele), dar-lhes alívio e eliminar um problema social.
“Não,
senhoras e senhores, a conclusão é inescapável: pode-se ser um assassino ético.
E eu fui um assim” (pg. 41)
Ao abordar vários aspectos sociais, as relações entre os poderosos e a plebe,
tece críticas ao comportamento geral, permeado pelo relativismo moral e a
ideologia que tende a minimizar e até mesmo inocentar criminosos confessos. A
pós-modernidade criou um mundo impessoal e cínico, irresponsável e injusto,
inquisidor e hipócrita. E ao provocar, espera ganhar a compreensão e
simpatia da assistência.
Em momento
algum, Graham se considera culpado ou demonstra arrependimento; ele é orgulhoso
e jacta-se da sua inteligência e cultura, dos seus vícios e crimes, da
racionalidade, da ausência de sentimentalismo, tem ares superiores, despreza
qualquer um com facilidade, faz analogias e compara situações que desnudam o
rei, enquanto todos continuam a vê-lo vestido.
“Eu
sou moralmente superior a vocês porque, como o médico que pratica a eutanásia,
eu não mato ao acaso; eu escolho quem deve morrer pelas minhas próprias mãos,
de acordo com critérios racionais e humanos... vocês matam como o louco que
entra num supermercado e massacra os clientes até que ele seja subjugado ou
mesmo executado.” (pg. 60)
Aqui, médico e
assassino se juntam em um mesmo propósito, e se um pode ser justificado
socialmente, por que não o outro? No frigir dos ovos, aborto, eutanásia e
homicídio são faces da mesma moeda. E tudo isso reafirma o seu ponto: ele é a
vítima, ou mais um a vitimizar-se; o algoz, a sociedade. Onde mesmo já lemos e
ouvimos isso?
Dalrymple detalha-o com esmero e cuidado, tal qual se biografa um progressista,
um ativista, ou o mero replicador urbano. Graham é vegetariano, ateu e
ecologista. Se considera íntegro, consciente, livre, ético, herói, e no direito
de matar sem ter de dar satisfação.
“Permanece
uma única possibilidade, portanto, para explicar a legitimidade da
transformação do cidadão normal em um assassino aprovado: que alguém pode
legitimamente se tornar um assassino desse tipo quando, e somente quando, ele
julgar que é certo fazer isso.” (pg. 41)
Ao se utilizar da mesma retórica vigente e comumente alardeada na educação,
administração, mídia, artes, academia e tutti quanti, ele tenta em si o
antídoto que neutralize o veneno enquanto morre. Seu jogo não é probatório da
razão; é tomar do sistema as armas com as quais ele o atacará ou, em última
instância, o fará igual a todos, e tornará todos iguais a si. Não existe a
verdade, mas quem se apregoa verdadeiro, mesmo na enxurrada de mentiras e
falácias.
“Não
que eu espere que alguém tome conhecimento de minhas ideias, eu não sou tão
ingênuo a ponto de pensar nisso. Um profeta não só não é honrado em sua própria
terra, mas em sua própria época.” (pg. 105)
Graham expõe a estupidez, de maneira hilária, das chamadas lutas pelas
minorias. Em dado momento, o “lobby canhoto” exigiu das autoridades o direito
de aposentar-se antes dos destros, porque segundo os dados (sempre as tais
estatísticas das quais nunca se sabe nada) os canhotos viviam dez anos menos
que os destros; o retrotreinamento dos falsos destros em verdadeiros canhotos,
a fim de reconquistarem a própria identidade; e, por fim, acabar com a
linguagem ofensiva manidestra, “e eliminar
do departamento: termos como sinistro e gauche, carregados de conotações
depreciativas a respeito dos canhotos e do canhotismo.” (pg. 111).
Trocar a expressão “He left his flat” por “He vacated his flat” ou “He leaved
his flat”, já que “left” em inglês serve tanto para designar o verbo deixar e o
substantivo esquerda, é o teste máximo a sujeitar a maioria.
O fato de se dirigir aos leitores como “senhoras e senhores” demonstra como
está a utilizar de eufemismo, assim como o mainstream insiste em enfiar goela
abaixo da sociedade regras e normas descabidas, tudo em nome de uma suposta
igualdade e justiça.
O seu desprezo é
notório:
“Elas
(as pessoas) têm a força de um touro, o cérebro de um frango e a moral de uma
hiena” (p. 131)
Os argumentos se seguem, entre choro e ranger de dentes, e Dalrymple escreve,
pelas mãos de um serial killer, a insanidade, o misto de burrice e insolência,
com as quais se quer reconstruir este mundo. Nisto, acerta em cheio. Porém, as
ideias e teses de Underwood se repetem, repetem (talvez, efeito pretendido pelo
autor), e a maluquice “lógica” do bandido parece opiniões saídas de telejornais
e dos apologistas do mal: pedagogos, juristas, terapeutas, e tantos outros
incapazes de perceber a ferida e o sangue após atirarem nos próprios pés.
O romance poder-se-ia chamar filosófico; e trata do homem na busca incessante
por revoltas e motins, e acaba por se tornar, ao mesmo tempo, vítima e
carrasco.
O Éden pós-queda se repete, repete, e quase não se consegue mais sair dele.
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Avaliação:
(***)
Autor:
Theodore Dalrymple
Editora:
É Realizações
Páginas:
184
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