18 julho 2025

Tanto por fazer - Theodore Dalrymple

 




Jorge F. Isah

 

 

      Dalrymple é mais conhecido por suas obras de não-ficção, sobre a pós-modernidade, onde aspectos culturais, sociais, educacionais e políticos apontam para um mundo em franca degradação. Ao aprofundar-se nas causas e consequências desse “projeto”, a dissociação da sociedade com a realidade torna-se impressionante, mas não impressionável, ao menos para os “engenheiros” sociais e sua militância histérica e simplória. Tudo precisa ser modificado para se encaixar aos novos tempos, e o começo sempre é com o desmonte da língua e o uso de termos e expressões que, se analisados, demonstrar-se-ão incompatíveis e heteróclitos, para dizer o mínimo.

       Cada vez mais, o homem tem se tornado ambíguo ao entregar-se a ideias vagas e atitudes problemáticas, a expô-lo em permanente risco. Não raro, crimes, brutalidade, ataques e mortes têm ganhado o apoio de tantos, enquanto pensar fora das caixas ideológicas é sinal de ameaça e extremismo. Nunca se viu um amor tão raivoso e hostil; e talvez essa seja a maior de todas as provas do declínio humano, a hipocrisia oficial e oficiosa, onde as palavras negam os fatos e atos, e vice-versa. Em suma, a modernidade se especializou em demolir a moral e a tradição, enquanto subestima a responsabilidade individual, inocenta o mal enquanto “demoniza” o bem. Em tempos em que a razão é tão alardeada, o sentimentalismo é a motivação de uma massa disposta a comprar o discurso de que “o importante é ser feliz”, mesmo que para isso outros tenham de se “matar” para arranhar a casca dos seus infortúnios. 

      O universo de Dalrymple (pseudônimo de Anthony Daniels), como um dos grandes intelectuais modernos, penetra em várias nuances e camadas, e a minha tentativa é resumir, a quem o desconhece, elementos presentes em quase todas as suas obras (li 3, ao todo, além deste); e não há como negar: os seus esforços em colocar no papel tudo aquilo que o establishment quer ocultar, derivam de décadas de trabalho como psiquiatra na África e Inglaterra, onde, inclusive, serviu como médico em penitenciárias. Ele fala do que viu e ouviu; mas, qual o peso disso em nossos dias?  Nada que um joguinho de palavras não possa substituir ou camuflar.

      “Tanto por fazer”, seu primeiro romance, é o monólogo do personagem Graham Underwood, um serial killer, o “Monstro de Eastham”, condenado à prisão perpétua por matar e enterrar no próprio quintal 15 vítimas (zombeteiro, alega serem 22). Criado na pobreza e brutalidade, utiliza-se disso para justificar parcialmente seus crimes; o que não o impediu de, na juventude, ler tanto quanto podia os filósofos gregos, os clássicos, e praticamente tudo sobre os assuntos pelos quais se interessou e descobriu. Em relação à maioria das pessoas, pode-se considerá-lo culto e inteligente; um tipo semelhante, ou alude, ao “Conde Fosco” de Wilkie Collins, “Long John Silver” de Stevenson, e “Juiz Holden” de Cormac McCarthy, todos cruéis e sanguinários a despeito da erudição e intelecto apurado.

      Em princípio, pareceu-me o relato de um criminoso, mas, à medida em que se desenvolvia, o tom “humorístico”, irônico e sarcástico tomou conta da história. Os argumentos de Graham eram “ipsis litteris” as alegações utilizadas por governos e seus gestores, pela mídia e seus propagandistas, pelos políticos, juristas, professores e toda a “intelligentsia”, para anular a realidade e forjar outra segundo o discurso ideológico. A maioria não se apercebe disso, mas Graham notou e, não por acaso, levantou a lebre da contradição e irracionalidade do sistema, capaz de condená-lo pelos mesmos motivos que inocenta outros tantos milhares. Vá lá, nada do que ele diz, ou a maior parte, faz sentido, a não ser para ele mesmo que se considera injustiçado, já que se vê como benfeitor, disposto a fazer o que as vítimas não eram capazes (queriam, mas não podiam, segundo ele), dar-lhes alívio e eliminar um problema social.

“Não, senhoras e senhores, a conclusão é inescapável: pode-se ser um assassino ético. E eu fui um assim” (pg. 41)

      Ao abordar vários aspectos sociais, as relações entre os poderosos e a plebe, tece críticas ao comportamento geral, permeado pelo relativismo moral e a ideologia que tende a minimizar e até mesmo inocentar criminosos confessos. A pós-modernidade criou um mundo impessoal e cínico, irresponsável e injusto, inquisidor e hipócrita. E ao provocar, espera ganhar a compreensão e simpatia da assistência. 

        Em momento algum, Graham se considera culpado ou demonstra arrependimento; ele é orgulhoso e jacta-se da sua inteligência e cultura, dos seus vícios e crimes, da racionalidade, da ausência de sentimentalismo, tem ares superiores, despreza qualquer um com facilidade, faz analogias e compara situações que desnudam o rei, enquanto todos continuam a vê-lo vestido.

“Eu sou moralmente superior a vocês porque, como o médico que pratica a eutanásia, eu não mato ao acaso; eu escolho quem deve morrer pelas minhas próprias mãos, de acordo com critérios racionais e humanos... vocês matam como o louco que entra num supermercado e massacra os clientes até que ele seja subjugado ou mesmo executado.” (pg. 60)

Aqui, médico e assassino se juntam em um mesmo propósito, e se um pode ser justificado socialmente, por que não o outro? No frigir dos ovos, aborto, eutanásia e homicídio são faces da mesma moeda. E tudo isso reafirma o seu ponto: ele é a vítima, ou mais um a vitimizar-se; o algoz, a sociedade. Onde mesmo já lemos e ouvimos isso?

      Dalrymple detalha-o com esmero e cuidado, tal qual se biografa um progressista, um ativista, ou o mero replicador urbano. Graham é vegetariano, ateu e ecologista. Se considera íntegro, consciente, livre, ético, herói, e no direito de matar sem ter de dar satisfação.

“Permanece uma única possibilidade, portanto, para explicar a legitimidade da transformação do cidadão normal em um assassino aprovado: que alguém pode legitimamente se tornar um assassino desse tipo quando, e somente quando, ele julgar que é certo fazer isso.” (pg. 41)

      Ao se utilizar da mesma retórica vigente e comumente alardeada na educação, administração, mídia, artes, academia e tutti quanti, ele tenta em si o antídoto que neutralize o veneno enquanto morre. Seu jogo não é probatório da razão; é tomar do sistema as armas com as quais ele o atacará ou, em última instância, o fará igual a todos, e tornará todos iguais a si. Não existe a verdade, mas quem se apregoa verdadeiro, mesmo na enxurrada de mentiras e falácias.

“Não que eu espere que alguém tome conhecimento de minhas ideias, eu não sou tão ingênuo a ponto de pensar nisso. Um profeta não só não é honrado em sua própria terra, mas em sua própria época.” (pg. 105)

      Graham expõe a estupidez, de maneira hilária, das chamadas lutas pelas minorias. Em dado momento, o “lobby canhoto” exigiu das autoridades o direito de aposentar-se antes dos destros, porque segundo os dados (sempre as tais estatísticas das quais nunca se sabe nada) os canhotos viviam dez anos menos que os destros; o retrotreinamento dos falsos destros em verdadeiros canhotos, a fim de reconquistarem a própria identidade; e, por fim, acabar com a linguagem ofensiva manidestra, “e eliminar do departamento: termos como sinistro e gauche, carregados de conotações depreciativas a respeito dos canhotos e do canhotismo.” (pg. 111). Trocar a expressão “He left his flat” por “He vacated his flat” ou “He leaved his flat”, já que “left” em inglês serve tanto para designar o verbo deixar e o substantivo esquerda, é o teste máximo a sujeitar a maioria.

      O fato de se dirigir aos leitores como “senhoras e senhores” demonstra como está a utilizar de eufemismo, assim como o mainstream insiste em enfiar goela abaixo da sociedade regras e normas descabidas, tudo em nome de uma suposta igualdade e justiça.

O seu desprezo é notório:

“Elas (as pessoas) têm a força de um touro, o cérebro de um frango e a moral de uma hiena” (p. 131)

      Os argumentos se seguem, entre choro e ranger de dentes, e Dalrymple escreve, pelas mãos de um serial killer, a insanidade, o misto de burrice e insolência, com as quais se quer reconstruir este mundo. Nisto, acerta em cheio. Porém, as ideias e teses de Underwood se repetem, repetem (talvez, efeito pretendido pelo autor), e a maluquice “lógica” do bandido parece opiniões saídas de telejornais e dos apologistas do mal: pedagogos, juristas, terapeutas, e tantos outros incapazes de perceber a ferida e o sangue após atirarem nos próprios pés.

      O romance poder-se-ia chamar filosófico; e trata do homem na busca incessante por revoltas e motins, e acaba por se tornar, ao mesmo tempo, vítima e carrasco.

      O Éden pós-queda se repete, repete, e quase não se consegue mais sair dele.

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Avaliação: (***)

Autor: Theodore Dalrymple

Editora: É Realizações

Páginas: 184

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