08 junho 2014

Cristo e a sexualidade - Parte 2

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   Encontrando a razão
   













Por Jorge Fernandes Isah


Se a visão secular do sexo está corrompida e tornou-se em mais uma forma de idolatria e rejeição a Deus, o que a Bíblia nos diz sobre o assunto?

Primeiro, que o sexo sempre esteve no plano de Deus, como parte do seu decreto eterno. Portanto, ele é santo, como já disse. De outra forma, Deus não criaria homem e mulher, macho e fêmea, não os dotaria física e afetivamente das características que permitiriam o envolvimento conjugal. Ele quis unir duas partes boas, mas que não funcionariam completa e perfeitamente se permanecessem separadas. Em nossa imperfeição [mesmo no Éden pré-Queda] o homem e a mulher seriam perfeitos na unidade. Ainda hoje isso é possível, desde que as partes sejam ligadas pelo Senhor das suas vidas: Cristo.

Segundo, porque é a forma mais íntima de relacionamento entre o homem e a mulher [conhecer várias mulheres, do ponto de vista sexual, equivale a não  conhecer nenhuma. Portanto, essa forma de se relacionar é oposta à criada por Deus; é uma aberração, uma violação da santidade e pureza do homem e da mulher, que corrompem seus corpos dispondo-os dissolutamente a serviço do pecado].

O sexo não é um fim em si mesmo. Quando é pensado dessa forma não passará de um ídolo, e os ídolos pouco se importam conosco, pois querem-se satisfeitos primeiramente. E, em sua sanha doentia, ele se apropria de tudo o que é antinatural: bestialidade, masoquismo, pederastia, violência, etc, a fim de ser adorado. Quando se abandona o seu objetivo primaz, ele não mais é do que a falsificação, a forma degenerada daquilo que Deus estabeleceu como santo.

Terceiro, ao criar homem e mulher, e formar um casal, Deus nos ensinou o sentido de unidade, de se ser um só corpo, assim como ele é conosco por intermédio de Cristo.

Quarto, o sexo é uma das formas do homem e da mulher, conjuntamente, atingirem o prazer solidário, companheiro, afetivo. Como uma entrega de si para o outro (a), recebendo dele (a) para si, também.

Quinto, é uma das maneiras de se aplicar o que o Senhor Jesus disse: amar ao próximo como a si mesmo [Mc 12.33], a partir da decisão de assumir que "a mulher não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no o marido; e também da mesma maneira o marido não tem poder sobre o seu próprio corpo, mas tem-no a mulher" [1Co 7.4]. É o caráter de subserviência conjugal que reflete, ainda que minimamente, a sujeição completa de todo o nosso ser a Deus. Por isso o homem resiste tanto a observar os princípios divinos quanto ao casamento. O que levou o Senhor a responder, quando interrogado pelos fariseus, a respeito do fato de Moisés autorizar o divórcio:"Moisés, por causa da dureza dos vossos corações vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas no princípio não foi assim" [Mt 19.8]. Levando-me a deduzir que tanto a promiscuidade ou o "sexo-livre" quanto o divórcio são atitudes de rebeldia contra Deus.

O sexo pode ser, portanto, bênção para o casal, como pode ser maldição. Se realizado dentro dos princípios ordenadores da fé, primeiro por amor a Deus e, segundo, por amor ao próximo [e quem pode ser mais próximo do que o conjuge?], será bendito.

Talvez seja necessária a definição do que seja amor, visto se alegar que há várias formas de amor, mas a Bíblia reconhece apenas uma via em que as várias formas de amor transitam, e nada melhor do que voltarmos a atenção para 1Co 13. Não transcreverei todo o capítulo, creio desnecessário, pois o sabemos de cor e salteado. Ater-me-ei ao verso 7, quando Paulo diz que o amor "Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta".

O amor descrito pelo apóstolo é o amor-testemunho. Não somente o amor a compartilhar, participativo, sensível, consolador, fraterno... É claro que ele tem estes e outros elementos, mas também é o amor pelo qual os outros verão e reconhecerão que somos filhos de Deus. Foi o que o Senhor disse: "Um novo mandamento vos dou: que vos ameis uns aos outros; como eu vos amei a vós... Nisto todos conhcerão que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos outros" [Jo 13.34-35].

Reportando a este exemplo, o sexo, assim como o casamento, realizado fora dos padrões morais e espirituais estabelecidos por Deus somente revelará o quanto estamos distantes dele; revelará o desejo pela autonomia e insubmissão; e de que parecemos ao mundo como nada mais do que o mundo mesmo se parece e é. O amor é o dístico pelo qual seremos reconhecidos que estamos em Cristo e ele em nós. Quando o homem se preocupa unicamente com o seu prazer e a sua satisfação, alheia à vontade divina, ele nem mesmo ama a si mesmo, iludido que está por um amor incapaz de resistir à ofensa [ainda que seja a ofensa a si mesmo através do próprio corpo]; incapaz de crer que o plano de Deus é perfeito, exequível, e não deve ser desprezado em favor da ofensa irresistível; incapaz de esperar nas promessas que Deus nos deu de que todas as nossas necessidades serão supridas; portanto, não se deve inquietar [e a inquietação levará ao sexo fugaz e desordenado]; e incapaz de suportar as exigências do espírito, antes se entregando as facilidades da carne.

O amor que se opõe ao que Paulo descreve nada mais é do que outra falsidade humana, outra forma de se buscar a autonomia, e iludir-se com a ideia de se ser livre de Deus.

Quando cristãos rejeitam o que lhes é exigido por Deus, estão mostrando ao mundo que também o rejeitou. A mensagem é de que nem mesmo nós o amamos, e se não o amamos, por que exigir dos que não o seguem o amor?

Mais do que o prazer e a alegria da comunhão, a troca de emoções, e o se fazer um, o casal torna-se testemunha daquilo que Deus tem feito, de como tem agido no meio deles, até mesmo, o que ele é. E se o individualismo, o egoísmo, a vaidade tomam o seu lugar, o testemunho será a falsidade daquilo que supomos Deus representar para ser a verdade daquilo que representamos para nós mesmos. Ou seja, Deus se tornaria irrelevante, e a relevância estaria em nós. E o testemunho seria de nós mesmos, não de Deus; porque não se suporta, não se crê, não se espera, nem se sofre, já que o amor falhou como verdade, alegrando-se na injustiça, buscando os seus próprios interesses. Mas isto não nos é dito, pelo contrário, "o amor nunca falha" [v.8], porque ele se agrada da verdade.
  
De tal forma que o casamento e o sexo [e o sexo somente é possível, biblicamente, na legitimidade nupcial] sejam administrados para a glória de Deus, assim como tudo o mais.

Infelizmente temos sido intolerantes com o Evangelho e tolerantes por demais com os nossos anseios e perversões. Os comportamentos antibíblicos são admitidos em nome do falso amor, que não corrige, exorta ou disciplina, mas avaliza práticas antinaturais e que afrontam a Deus. Nisso fica visível que não amamos ninguém; ao desobedecer os princípios traçados pelo Criador na Escritura, os quais deveríamos zelar, defender e subscrever; e por buscarmos uma paz impossível com o próximo e conosco mesmo, em que a nossa consciência estará em guerra contra a verdade. A soma disso tudo será o desamor, como a expressão máxima da aquiescência ao pecado.

Quando cristãos vêem o sexo, em suas múltiplas formas, como o objetivo final de seus corpos, esqueceram-se a muito do que é glorificar a Deus, e os seus testemunhos apenas validarão a si próprios na falsidade e hipocrisia.

As conseqüências serão o nome de Cristo blasfemado pelos ímpios e a alegação de que o Cristianismo é igualmente falso, assim como os falsos-testemunhos. Claro que pelo falso-testemunho de falsos-cristãos não podemos ser julgados, até porque o mundo não nos julgará nem o pode julgar, mas essas atitudes somente colaboram para impedir a autenticação do Evangelho entre aqueles que contemplam a inconsistência, incoerência e antagonismo entre o que dizem e praticam os que alegam servir a Cristo, e não o servem.

O amor que lhes sai da boca é tão impuro quanto o que praticam; invalidando com os seus atos o que dizem; ao ponto do Senhor afirmar, certa vez: Hipócritas, bem profetizou Isaías a vosso respeito, dizendo: Este povo se aproxima de mim com a sua boca e me honra com os seus lábios, mas o seu coração está longe de mim. Mas, em vão me adoram, ensinando doutrinas que são preceitos dos homens” [Mt 15.7-9].

Não há outro meio. Se desprezamos os mandamentos de Deus, não o amamos, pois não os temos nem os guardamos [Jo 14.21]. Se induzimos outros a se manterem igualmente desobedientes quanto aos mandamentos do Senhor, não há amor por eles. Se nós mesmos infringimos a Lei do Senhor, também não nos amamos, mas devotamos o amor a outro: o pecado. Qualquer tentativa de se justificar a rebeldia, práticas e comportamentos antibíblicos usando o amor como alegação é mentira. O mesmo serve para o sexo. Se a razão não for bíblica será como um caminhão carregado descendo sem freios a ladeira íngrime... O final, ainda que com elementos diferentes, todos sabemos como será.

Notas: 1 - Texto originalmente publicado aqui mesmo, no Kálamos, em 12 de Abril de 2011

29 maio 2014

Cristo e a sexualidade - Parte 1

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A busca pelo mais-que-imperfeito












Por Jorge Fernandes Isah


       Estive conversando com um irmão sobre vários assuntos e num determinado ponto, lá pela metade do bate-papo, ele me perguntou: Como você acha que seria a sexualidade de Cristo?... E me deu a sua opinião... Mas antes de entrar propriamente no assunto, farei alguns esclarecimentos:

1)      Sei que estarei a mexer em vespeiro, e muitos irmãos considerarão esta reflexão algo despropositada, sensacionalista, e que em nada edificará o Corpo. Dirão que os meus objetivos são a autopromoção, o exibicionismo e a carnalidade. Pois bem, quero ressaltar que ao ser surpreendido pela questão, muitos também podem sê-lo, e acredito que mais grave que a ignorância é a omissão e o querer se manter ignorante.
2)      Não abordei este tema sem antes orar, e buscar o entendimento  pela Escritura e jamais alheio a ela. Não quero inventar a roda, nem procurar chifres em cabeça de cavalo. Tratarei a questão com reverência e temor, sabendo que posso ser mal-interpretado, mas também posso auxiliar irmãos que por ventura estejam buscando uma resposta. 
3)      Verdadeiramente, falar da sexualidade de Cristo é um tabu, e penso que não deveria ser. Nem todos pensam, se interessam ou discutem a questão, mas creio que isso não deve ser o padrão cristão, de haver perguntas “imperguntáveis”. Desde que o debate seja realizado sem escanercimento nem leviandade, até mesmo a “sexualidade” de Cristo pode ser discutida.
4)      Este texto é uma resposta, não é uma tese, um ensaio ou tem qualquer outra pretensão que não seja direcionar o assunto sobre o ponto de vista escriturístico; revelando o que me foi revelado pela Bíblia. Nunca li qualquer livro sobre o assunto, nem mesmo nunca me interessei por ele, e toda a minha reflexão se baseou na pergunta daquele irmão, como formulada ao alto. Este texto será dividido em três partes, provavelmente; não distintas ou isoladas, mas ainda que focando pontos diversos dentro do tema, eles estarão interrelacionados. 
5)      Cristo é 100% Deus e 100% homem. Ainda assim, não o considero “ipsis literis” igual ao homem, visto não lhe ser possível pecar. A Bíblia afirma que Cristo jamais pecou; que ele foi o único homem sem pecado, e, por isso, ele é puro, santo, perfeito e imaculado. Cheguei a analisar esta questão no texto intitulado, “O pecado que Cristo não levou”. À época, e ainda hoje, muitos irmãos teceram críticas à minha posição, dizendo que ela alterava ou invalidava de alguma forma a expiação eficaz do Senhor, por eu sugerir que ele não tivesse a mesma humanidade que nós, em todos os seus múltiplos detalhes. Alguns alegaram que a minha ignorância antropológica levara-me ao erro. Outros, de me opor à ortodoxia cristã. Para mim, o simples fato de Cristo não poder pecar [e sequer cogito a hipótese do pecado ser algo possível na impossibilidade dele pecar] o torna diferente de nós, não em sua natureza humana, mas em sua pessoalidade, na sua natural indisposição e absoluto impedimento de pecar [sua natureza humana supostamente “poderia” pecar, mas como ela está sujeita à Pessoa do Verbo, e a Pessoa é quem determina a vontade, mesmo a humana, é fato que Cristo jamais pecaria].
  
      Feitos os esclarecimentos iniciais, prosseguirei com o que se pode chamar de introdução.
       Deus criou o homem e a mulher, “desde o princípio da criação, Deus os fez macho e fêmea” [Mc 10.6]. Assim, ele os criou com o propósito de se unirem, tornando-se uma só carne [Mc 10.7-8]; pois considerou bom que o homem não estivesse só, mas tivesse uma ajudadora idônea [Gn 2.18]. De certa forma, de uma só carne, Adão, Deus fez também Eva, para que se unissem novamente em uma só carne, não sendo mais duas. O sexo entre as criaturas sempre esteve na mente de Deus, pois ele criou homem e mulher dotados fisicamente de aparelhos reprodutores funcionais e completos, estando habilitados a cumprir a ordem de frutificar, multiplicar e encher a terra [Gn 1.28].
       O fato do sexo ser algo puro e santo, dentro dos limites estabelecidos por Deus [na união do homem e da mulher, no casamento, uma única vez, pois o que Deus ajuntou não o separe o homem (Mt 19.6)], está no fato do casal primevo estar nu e não se envergonhar da sua nudez [Gn 2.25]. Mas isso foi antes da Queda; e, após o pecado, tanto Adão como Eva sentiram-se vexados por sua nudez, revelando a mudança em seus corações, e uma disposição para a corrupção, para o adultério, para a lascívia, para a imoralidade, a perversão e a depravação; levando-os a refugiarem-se entre as árvores do jardim, crendo possível esconder-se de Deus [Gn 3.8].
       O sexo, novamente afirmo, dentro do padrão moral e santo de Deus não tem em si mesmo nenhum mal, o problema é a forma como o homem o vê, a partir da cobiça e do desejo de buscar e querer o que não lhe pertence ou o que não lhe é dado pertencer. 
       Tudo isso passa pelo crivo da Lei de Deus que estabeleceu os princípios norteadores em todos os aspectos da vida, sejam espirituais, físicos ou materiais. A Bíblia nos dá a resposta para todos os dilemas e situações, de tal forma que é o manual de conduta do homem. Ou deveria ser. Quando ele caiu no Éden, caiu juntamente consigo o padrão moral, de tal forma que dali em diante a impiedade chegaria ao ponto em que o homem perderia completamente o discernimento entre o que lhe convém e o que não lhe convém fazer, entre o santo e o profano, entre o moral e o imoral, de maneira que ele acabaria sempre optando pela escolha natural, a inclinação da carne: o pecado. Assim toda a sua natureza se viu corrompida; e o passo seguinte foi apresentar os seus membros por instrumentos de iniquidade.
        Já na primeira geração pós-Éden, Caim invejou, cobiçou, matou e mentiu. Depois, o texto sagrado relata uma sucessão de eventos em que os corpos serviram à imundície e à maldade para a maldade [Rm 6.19]. E o sexo tomou suas formas mais doentias, se transformando em um deus durante os séculos, ao qual os homens se mantiveram aprisionados, feitos escravos, alimentando-o e sendo alimentados por ele, como um tumor maligno alimenta-se do corpo debilitado até destruí-lo. 
      O que muitos não reconhecem é que o padrão humano para quase tudo será sempre aviltante e degradável. A principal característica humana é a de corromper tudo o que toca; como o Rei Mídas transformava em ouro o que tocava, ao ponto de quase enlouquecer e morrer, pois uma simples fatia de pão ou um copo de água se transformavam em ouro, impossível de ser ingerido. Ele percebeu que o seu desejo desenfreado, a ambição material, significaria a sua destruição. Essa história mitológica é uma alegoria à ganância que, como um ídolo, pode decretar a morte física e espiritual; assim como temos o "dom" de estragar o que tocamos, exatamente por causa do pecado. Alguns dirão que é exagero, que minha afirmativa está mais para o maniqueísmo do século III. Na verdade, a Bíblia diz que todos os homens pecaram e destituídos estão da glória de Deus. Não há quem faça o bem, não há nem um só. Não há quem busque a Deus. Todos se extraviaram, e juntamente se fizeram inúteis. Não há temor de Deus diante de seus olhos [Rm 3.23, 10-18]. Porém o Senhor nos deixou o padrão correto de como fazer as coisas, inclusive, o sexo. 
       Durante séculos, acreditou-se em dois extremos: de um lado os gnósticos que viam o corpo como um vaso imundo para o espírito. De tal forma que o espírito somente estaria liberto, definitivamente, com a morte do corpo. O ascetismo e o celibato eram as melhores formas de se garantir alguma pureza, ainda que parcial. Em linhas gerais, o desejo sexual deveria ser sublimado ou abolido para que a luz derrotasse as trevas. Do outro lado, havia a depravação total; onde tudo era permitido, desde as bizarrices ou excentricidades até as aberrações mais perversas e degradantes. Para esse grupo, nada era pecado, nem proibido, ao ponto em que luz e trevas se misturavam sem que uma pudesse sobreviver sem a outra. Como antíteses de uma mesma tese.
      Se de um lado havia uma tentativa de se "parecer" com Deus, ao menos de se aproximar de sua santidade; do outro lado, havia o desejo de se afastar completamente dele, uma forma, ainda que não intencional, de não se parecer com Deus ou o que ele representasse. A questão é que, no primeiro caso, buscava-se alcançá-lo pelo esforço humano, pelo conhecimento, pela busca da pureza, alheia aos ensinos bíblicos, ainda que pudessem crer serem neles firmados. Ainda que toda a "pureza" se baseasse em uma disciplina alimentar rígida e na abstinência sexual, não procedia de Deus, mas era outra invenção humana, um placebo que não resultaria em nenhum efeito positivo, pelo contrário, manteria o homem ainda mais distante de Deus. Entendo como sendo uma forma que encontraram para se  diferenciarem dos pagãos, dados às orgias e bacanais, por isso a necessidade de rejeitarem o sexo como algo sujo e destituído de qualquer valor que pudesse aproximar o homem de Deus. 
       As duas formas continuam a existir ainda hoje com novos rótulos, e em múltiplas versões, ainda mais radicalmente estapafúrdias. O que já era ruim, piorou ainda mais. Não vou entrar em seus detalhes, a esmiuçá-los e apontando-lhes as fragilidades, mas o certo é que erram exatamente por não reconhecer o propósito eterno que Deus sempre teve para o sexo. Se temos de glorificar a Deus em tudo, seja no comer, no beber, ou fazendo qualquer outra coisa [1Co 10.31] também devemos fazê-lo no sexo.
        O problema reside na questão: a nossa sexualidade glorifica a Deus? Ou estamos buscando uma autonomia, em nós mesmos, pela liberdade de pecar? E, por fim, sermos definitivamente presos pelo pecado?
      O fato é que o sexo foi alçado a um grau de importância tão grande, tornando-se em superlativo, que muitos ergueram um altar para adorá-lo; de forma que ao invés do sexo ser normatizado e adequado ao padrão divino pelo qual o comportamento humano na sociedade seria disciplinado, passou a ser o formador do padrão pelo qual o homem viverá socialmente, no subterrâneo da imoralidade. Ao ponto em que tudo é válido, menos restringi-lo. Em outras palavras, seria uma proposta avessa ao ascetismo gnóstico, quase a gritar em nossos ouvidos: o homem não tem alma, logo, não há Deus! Então, comamos e bebamos, pois amanhã morreremos [1Co 15.32]. O sexo tornou-se um meio pelo qual o homem tenta se livrar de Deus.
      Mas como sabemos, isso é impossível; ninguém está livre de Deus, mesmo aquele que não o reconhece; mesmo o que o nega.
     Concluíndo: o sexo, fora dos princípios bíblicos e dos padrões estabelecidos pelo Criador, nada mais é do que a busca pelo mais-que-imperfeito.

Notas: 1- Texto publicado aqui mesmo, no Kálamos, em 05 de Abril de 2011
2- Republicarei, também, as três postagens subsequentes a esta.

31 março 2014

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aulas 68, 69 e 70 - Dons apostólicos: Variedade e interpretação de línguas



Jorge Fernandes Isah


Áudio 1 [A partir do minuto 17:41]:


Áudio 2: 



Áudio 3:



Como são interligados, ainda mais do que os demais dons relacionados por Paulo em 1Co 12, decidi fazer um apanhado geral dos dois últimos dons em um mesmo tópico. Por que? Ora, não há o dom de línguas se não houver a interpretação. Qualquer afirmação de que o dom de línguas prescinde a interpretação extrapola o contexto bíblico, não há referências na palavra, e é uma invenção humana, como o apóstolos alerta: "E, se alguém falar em língua desconhecida, faça-se isso por dois, ou quando muito três, e por sua vez, e haja intérprete" [1Co 14.27]. Logo, o dom de variedade de línguas, sem a sua tradução, simplesmente não existe, e não pode reivindicar qualquer biblicidade. E este foi um cuidado que Deus teve em estabelecer os limites para exercê-lo; por que, de que adiantaria uma pessoa se levantar na assembleia, emitir um pronunciamento em língua estranha, e mais ninguém [provavelmente ele também] entenderia o que foi dito? De que este dom serviria para atingir o objetivo de ser útil para a igreja [1Co 12.7]? Certamente, nenhum. Por isso, Paulo vai mais além, e diz que "se não houver intérprete, esteja calado na igreja, e fale consigo mesmo, e com Deus" [1Co 14.28]. A ordem é límpida como água cristalina; se não houver intérprete que aquele irmão que tem o dom de variedades de línguas cale-se. Novamente, é o apóstolo quem diz: "se eu for ter convosco falando em línguas, que vos aproveitaria, se não vos falasse ou por meio da revelação, ou da ciência, ou da profecia, ou da doutrina?" [14.6]. E é isso o que vemos na maioria das igrejas? Ou o que Paulo predisse, séculos atrás, tornou-se regra à revelia da sua ordenação? Ele instruiu as igrejas para o perigoso de uma disseminação deste dom, de ser, inclusive, entrave para o Evangelho: "Se, pois, toda a igreja se congregar num lugar, e todos falarem em línguas, e entrarem indoutos ou infiéis, não dirão porventura que estais loucos? Mas, se todos profetizarem, e algum indou ou infiel entrar, de todos é convencido, de todos é julgado" [14.23-24]. Note-se que profecia tem o sentido explícito de proclamar a palavra de Deus, como estudamos nas aulas anteriores, e não adivinhação ou previsão do futuro. Com isso, Paulo está dizendo que o falar em línguas estranhas sem que se defina claramente o sentido do que foi dito é inútil, não edifica, e torna-se muito mais um objeto de vaidade humana e, chego a dizer, de desobediência a Deus. O dom de variedade de línguas sem interpretação é o que ele classifica de "falando com o ar": "assim também vós, se com a língua não pronunciardes palavras bem inteligíveis, como se entenderá o que se diz? porque estareis como que falando ao ar" [14.9]. Portanto, não há, em nenhuma hipótese,  por aqueles que creem na contemporaneidade deste dom [os continuístas] , o falar em variedade de línguas sem interpretação e acreditar-se bíblico.

O que acaba por se agravar quando percebemos que Paulo dá um sentido muito estrito ao dom, chamando-o de variedade de línguas e não da maneira simples e comumente tratada nas igrejas, hoje, como dom de línguas. Ora, o dom não é de uma língua, ainda mais uma língua  de anjos, mas de "variedade" de línguas, pressupondo que se fale mais de uma delas e até mesmo várias. O apóstolo, por exemplo, diz falar "mais línguas do que vós todos" [14.18], referindo-se à igreja. Por isso, quando reduzimos o dom a uma única língua estamos também extrapolando a Escritura e inserindo algo que não lhe diz respeito. Novamente, é um conceito para justificar o erro.

Fica evidente que o dom de variedade de línguas é um dom revelacional, que tem por objetivo entregar uma doutrina ou ensinamento à igreja, ainda que possa  ser uma maneira de dar graças a Deus, como Paulo o diz, mas, nesse caso, deve-se fazê-lo interiormente, em silêncio, sem se manifestar à igreja, pois em nada ela será edificada [14.17].

A riqueza dos detalhes e da argumentação de Paulo é impressionante, e torna-se ainda mais, quando percebemos que praticamente todo o seu ensino é desprezado e negligenciado pela maioria das igrejas, o que deveria ser objeto de dúvidas quanto à contemporaneidade deste dom, já que a ideia corrente é oposta à ordenação apostólica.

Outro ponto importante é que o dom de línguas, assim como os demais dons, são sinais, não para os crentes, mas para os incrédulos [14.22]. Como já foi dito nas aulas passadas, os dons apostólicos ou espirituais cumpriram uma missão especial na história, num período em que a revelação ainda não estava completa, e era necessário testificar a procedência da palavra anunciada publicamente como proveniente de Deus. Por isso, os dons estavam atrelados à doutrina, ao ensinamento, à edificação da igreja até que o cânon estivesse escrito. Veja bem, já li algumas refutações a essa idéia dizendo que o cânon não foi concluído antes do século IV, o que é verdade, e se deu por volta de 367 d.c. Acontece, porém, que nem uma só linha foi escrita depois do fim do século I D.C., ou seja, a confirmação da canonicidade ocorreu três séculos depois, mas a Bíblia, como a revelação especial de Deus, já estava concluída, acabada, antes mesmo do final do século I, nada mais foi escrito, nada mais foi divinamente revelado, nada mais pode ser acrescentado ou retirado. Estava tudo pronto, bastando o Espírito Santo reuni-lo, nos séculos seguintes, como a única palavra de Deus, a Bíblia Sagrada.

Novamente, àqueles que defendem a continuidade dos dons espirituais, pergunto: qual a sua eficácia? Qual a sua necessidade? Sendo que o corpo doutrinário está fechado, pronto e acabado? Nada podendo ser acrescido a ele, e nada podendo ser retirado dele? Se tinham a missão de atestar, de comprovar, que o profeta era o emissário direto de Deus a quem foi-lhe revelada a sua palavra, e hoje isso é impossível, qual o seu propósito? Se o próprio Paulo disse que o dom de variedades de língua não é para a igreja, mas para os incrédulos, e de que ele serve mais, quando não interpretado, para a edificação pessoal, e nesse caso, não pode ser proclamado publicamente mas deve ficar restrito a quem tem o dom e Deus, por que se insiste na balbúrdia e algazarra em que muitas igrejas se entregaram? Chego a crer em desordem, e Paulo apela para a ordem no culto, mas também à rebeldia e, porque não, a um apelo carnal. 

Notas:  1 - Aulas realizadas no Tabernáculo Batista Bíblico
 2 - Baixe estas aulas em  Aula 85 - dons xii.mp3
em   Aula 86 - Dons XIII.MP3
em   Aula 87 - dons xiv.mp3

24 março 2014

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 65, 66 e 67: Dons apostólicos - Discernir espíritos


Jorge Fernandes Isah

Áudio 1:



Áudio 2: 



Áudio 3 [Até 17:40 min]:




Interessante que Paulo especifica este dom logo após o dom de profecia, por que? Haverá alguma ligação entre eles? Bem, nada na Escritura é encontrado por acaso, ou sem um propósito objetivo. Mas, primeiro, definamos o significado de discernir que, segundo o dicionário Priberan,  quer dizer: 1. Distinguir. 2.Estabelecer conveniente diferença (entre coisas ou pessoas). 3.Discriminar. 4.Conhecer. 5.Julgar. 6.Apreciar. 7.Medir. 8.Avaliar bem. Em todas elas, o pensamento comum é de emitir um julgamento, uma avaliação. Portanto, discernir os espíritos é julgar se determinada doutrina ou ensinamento provém realmente de Deus ou não. Se atentarmos para o significado de profecia, definido pelo apóstolo, como o dom de falar aos homens para edificação, exortação e consolação [1 Co 14.3], terem a necessidade de alguém discernir se aquele ensinamento ou doutrina provém de Deus ou não. Se é útil para a igreja ou se tem o objetivo de torná-la inútil. É de fundamental importância saber que muito do que tem sido proclamado e defendido nas igrejas atualmente tem-na tornado inútil na guerra contra as hostes diabólicas, exatamente por aqueles que as negam, e, negando-as, negam a eficácia da própria igreja, a qual Cristo disse que as portas do inferno não prevaleceriam contra ela [Mt 16.18].

Por isso, naquela época em que a revelação ainda não estava completa, havia a urgência de homens, escolhidos por Deus, serem os juízes na igreja, aqueles que identificariam se a profecia proclamada era de origem divina ou não.  E, então, fica evidente o porquê Paulo relacionou o dom de discernimento logo após o de profecia, ao meu ver. Já que estão intrinsecamente relacionados, de forma que, sem o segundo torna-se impossível saber a validade do primeiro, naquele tempo em que o cânon ainda não estava concluído. É o que ele diz, um pouco mais à frente, em sua carta: "E falem dois ou três profetas, e os outros julguem" [1Co 14.29]. Os outros referem-se a todos os membros da igreja, mas especificamente àqueles que tinham o dom de discernir, e que confirmaram se aquela mensagem de ensino ou consolo provinha verdadeiramente de Deus. Mostrando, mais uma vez, que, mesmo na igreja, se levantaram falsos profetas e espíritos enganadores com o objetivo de confundir e dispersar o rebanho do Senhor At 20:29-31].

Mas, e hoje? Há necessidade deste dom? Penso que não. Temos a doutrina firmada e estabelecida na igreja, de maneira que é ela que discerne o falso do verdadeiro ensinamento, se o que foi dito está em acordo com a palavra de Deus ou não, se o objetivo é a glória de Deus ou satisfazer a vontade do destruidor. A Bíblia é a regra de fé e, como tal, tem a autoridade investida pelo próprio Deus como a sua palavra fiel para elucidar e distinguir e julgar tudo o que acontece na igreja. E esse é o papel que cabe a todos os crentes, de serem capazes de discernir o que está em conformidade com a revelação especial, a Bíblia Sagrada, firmando-se na palavra e evitando-se o engano.

Hoje, parece que o dom de discernir está mais ligado ao fato de se saber o nome, identidade e as características de demônios [e o falar com demônios é algo despropositado e sem sentido, pois nem Cristo e os apóstolos se preocuparam com isso, mas em livrar o endemoniado da dominação maligna] do que a preocupação em se saber se o corpo de doutrinas e ensinamentos está em concordância com a Bíblia. De certa forma, ele vem mais para confundir e distrair, tirando o foco da verdade e desviando para a mentira. Assim como muitos buscam satisfazer seus desejos de entretenimento, mesmo que sejam assustando-se vendo um filme de terror,  ou dando vazão ao lado ignóbil ao assistir exibições  onde os valores morais e nobres são desprezados [que podem ser resumidos na aversão à santidade cristã], outros se expõem à loucura do "teatro de exibir demônios", em que algumas igrejas andam se especializando: no atrativo da fé sem fé e sem propósito.

Há um exemplo marcante na Bíblia de como tratar essas manifestações, e é o que aconteceu no trecho citado na última aula em Atos 16, verso 16 em diante. Paulo e Silas estavam em Trôade, e saiu-lhes ao encontro "uma jovem, que tinha espírito de adivinhação, a qual, adivinhando, dava grande lucro aos seus senhores" [v. 16].  Alguns pensam que essa jovem tinha apenas "distúrbios" psíquicos, que a faziam acreditar no seu poder sobrenatural. Em outras palavras, querem garantir que não havia nenhuma possessão ou influência maligna, mas apenas uma doença física, que a fazia proferir doidices. Mas temos que, para dar lucro aos seus senhores, era necessário, em algum momento, que ela acertasse algumas das suas adivinhações. Senão, que credibilidade ela teria para continuar suas previsões e gerar renda para seus senhores? Logo, a hipótese de disfunção mental não procede, pois a Escritura não deixa dúvidas quanto ao que fazia aquela jovem prever o futuro.

Por dias, ela os seguiu, dizendo: "Este homens, que nos anunciam o caminho da salvação, são servos do Deus Altíssimo" [v.17]. Em princípio, não havia nada de errado no que ela falava. Ela não dizia nenhuma mentira, nem os caluniava, nem os acusava de falsidade, injustiça ou engano; pelo contrário, afirmava a verdade de que eram servos de Deus, e que anunciavam a salvação. Fato semelhante aconteceu com o Senhor Jesus diante de um espírito imundo que dominava um homem enquanto ele ensinava na sinagoga em Cafarnaum, que disse-lhe:"Ah! que temos contigo, Jesus Nazareno? Vieste destruir-nos? Bem sei quem és: o Santo de Deus" [Mc 1.24]. Cristo, então, ordenou que se calasse e expulsou o espírito do homem. Uma outra vez, um gardareno que era dominado por uma legião de demônios,clamou: "Que tenho eu contigo, Jesus, Filho do Deus Altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes" [Mc 5.7]. Em ambos os casos, parece que os espíritos imundos tentavam dissuadir o Senhor a não expulsá-los, deixando-os em "paz" em seu trabalho de tormento das vidas humanas. Ao afirmarem uma verdade, esperavam que Cristo se condoesse deles, e permitisse que continuassem a assolar as vidas que controlavam.

No caso dos apóstolos é interessante notar que eles permitiram que a jovem os seguissem por muitos dias, o que nos deixa encucados. Paulo poderia, simplesmente, tê-la afastado desde o primeiro momento, ao invés de deixá-la segui-los. Qual seria o seu intento? O momento exato de libertá-la? De testemunhar o poder de Deus? Ou, simplesmente, ele queria que, no tempo exato, todos soubessem que eles não tinham parte com ela, e de que mesmo dizendo a verdade, a sua motivação não era verdadeira pois provinha do inimigo.  Certamente, como nos casos em que os espíritos testificaram a filiação divina de Cristo, o espírito adivinhador queria uma "trégua" ou "a paz" com os apóstolos, de maneira que continuasse a sua dominação na vida da serva. Não sabemos ao certo o porquê de Paulo e Silas permitiram que elas os seguissem, mas o fato é que, no decorrer dos dias, Paulo ficou perturbado. A ideia é de que o seu espírito mudou, saindo da serenidade para a agitação. E tão logo isso aconteceu, ele voltou-se para a jovem e disse ao o espírito: "Em nome de Jesus Cristo, te mando que saias dela. e na mesma hora saiu" [v. 18]. Temos aqui a certeza de que Paulo não estava falando apenas com uma mulher que tinha um distúrbio mental, mas expulsa a um demônio. Não há meio termo ou alegorias na passagem, mas uma ação direta. E o apóstolo não gastou tempo conversando com o espírito, ridicularizando-o ou exibindo-o como um troféu. Fez o que tinha de fazer, objetivamente, para o bem da jovem, e para o bem do evangelho, confirmando a autoridade pela qual foi investido por Deus como mensageiro das boas-novas. Mesmo que a jovem estivesse proclamando uma verdade, o espírito que nela habitava tencionava obter frutos para o seu senhor, mas Paulo teve o discernimento exato de que aquilo não podia continuar, e de que toda aquela encenação demoníaca deveria acabar, como acabou.

Porque de nada serviria à igreja e ao ministério apostólico ter parte nas manifestações do diabo e seus anjos, a não ser revelar que o fim deles será também o fim daqueles que os ouvem e seguem.

Notas: 1 - Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico
2- Baixe os áudios das aulas em   Aula 83 - Dons X.MP3
em   Aula 84 - Dons XI.MP3
e em   Aula 85 - dons xii.mp3

09 março 2014

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aulas 62, 63 e 64 - Dons apostólicos: Profecia

Por Jorge Fernandes Isah

Áudio - Parte 1:  


Áudio - Parte 2:

 

Áudio - Parte 3: 



Para a tristeza da igreja, o dom que muitos dizem hoje ser de profecia nada mais é do que uma forma sincrética ou supersticiosa de adivinhação, como se fosse uma cartomante que não lê cartas, uma quiromante que não lê mãos, um oráculo que não vê o futuro em uma bola de cristal, ou um necromante que não consulta os mortos, podendo ser praticamente qualquer outra forma de adivinhação: búzios, agulhas, horóscopo, tarô, etc. Normalmente, os membros de uma igreja procuram o "profeta" assim como um místico procura qualquer um dos seus "oráculos". E é esse tipo de "profecia" que tem subsistido na igreja, atualmente. Na ânsia de não confiarem o seu futuro a Deus, muitos crentes correm até o "profeta" para saberem o que lhes reservará o futuro, demonstrando um grau não somente de falta de fé, mas de incredulidade e desconhecimento de Deus como o provedor, aquele que por sua providência cuidará dos seus como ninguém é capaz de cuidar. Se isso não é uma forma supersticiosa e pagã de se apoderar e utilizar de um instrumento divino de revelação, não sei o que mais pode ser.

Na verdade, o próprio Deus tem nos alertado sobre os cuidados com falsos profetas e falsas profecias, pois há um volume grande de versículos na Bíblia que nos exortam quanto à essa prática maligna. Mas, sobretudo, o cristão deve se afastar, fugir mesmo, de qualquer tipo de curiosidade em decifrar o seu futuro pessoal, por meio das vaticinações: 

"Quando entrares na terra que o SENHOR teu Deus te der, não aprenderás a fazer conforme as abominações daquelas nações. Entre ti não se achará quem faça passar pelo fogo a seu filho ou a sua filha, nem adivinhador, nem prognosticador, nem agoureiro, nem feiticeiro; nem encantador, nem quem consulte a um espírito adivinhador, nem mágico, nem quem consulte os mortos; pois todo aquele que faz tal coisa é abominação ao SENHOR; e por estas abominações o SENHOR teu Deus os lança fora de diante de ti." [Dt 18:9-12].

Há de se entender que o profeta tinha um papel muito claro, o de proclamar uma mensagem em nome de Deus [no AT, designada pela palavra "nabi"; no NT, por "propheteia"]. Esta função tem uma responsabilidade esmagadora, por isso, muitas vezes, ele era reconhecido como aquele que transmitiria ao povo uma mensagem que  lhe pesaria sobre a alma até que fosse pronunciada. Os pagãos  envolvem a profecia em um mistério e normalmente estão atreladas a métodos humanos, sinais e presságios, que também podem ser cartas, búzios, e outros tantos artefatos, e até mesmo na elaboração de técnicas com o fim de se aperfeiçoá-la, como provam várias formas de ocultismo, onde esse e outros conhecimentos são ensinados e descritos em seus mínimos detalhes a fim de que o processo seja compartilhado entre os adeptos, e até mesmo aperfeiçoado em sua execução.

Ao contrário deles, o verdadeiro profeta recebia a mensagem diretamente de Deus, sem que houvesse uma "escola de profetas", ou a utilização de quaisquer meios humanos para se alcançá-la. Outro detalhe, é que os pronunciamentos não tinham o objetivo de revelar algo individual e que fosse relevante apenas para uma pessoa. Até mesmo aquelas que podem ser chamadas de "particulares" tinham o intento de revelar algo ao coletivo, à nação de Israel ou à igreja, como as que demonstravam o futuro de reis e, por conseguinte, de seu reinado e súditos, sempre estritamente ligadas ao relacionamento divino, positiva ou negativamente, na obediência ou na rebeldia. É claro que jamais podemos esquecer-nos das que anunciavam o "Messias", Cristo, revelando aquele que viria, para cumprir a missão específica de salvar o povo de Deus. As profecias divinas estão intrinsecamente ligadas ao conhecimento de Deus e sua obra, como a realidade do seu senhorio sobre os homens, sejam bons ou maus, e efetivamente o seu reino, soberano e eterno. 

Pedro nos adverte que "sabendo primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo" [2Pe 1:20-21]. O que ele diz? Duas coisas: primeiro, que nenhuma profecia pode vir senão de Deus e inspirada por ele. Qualquer outra forma de profecia, em si mesma, já não o é, pois descumpre este critério que a define como tal. A segunda é que o apóstolo exorta a não interpretar a profecia como algo pessoal e particular, pois é outro equívoco. Usá-las de maneira errada, dando-lhe uma significação individual, que se aplique estritamente ao intérprete é tirá-las do contexto e objetivo primeiro, o qual é a vontade de Deus. Também não se pode entendê-la exclusivamente, como algo a parte do escopo de doutrinas fundamentadas no decorrer da história eclesiástica. É assim que surgem as heresias: pega-se um texto bíblico e força-o a dizer o que ele não diz. Por isso, a importância de todos os santos, em todos os tempos, que dispuseram e formalizaram, guiados pelo Espírito Santo, o que chamamos de doutrina cristã. Desprezar o trabalho e esforço desses irmãos é ignorar e não reconhecer a soberania de Deus na sua igreja, e não tê-la como um corpo que é, cuja cabeça é Cristo. 
 
Outro ponto, que distingue o verdadeiro do falso profeta, é o fato de que a mensagem entregue pelo Espírito de Deus se cumpria, infalivelmente, ao contrário daquele que apenas diz falar em nome de Deus:

"
Eis lhes suscitarei um profeta do meio de seus irmãos, como tu, e porei as minhas palavras na sua boca, e ele lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. E será que qualquer que não ouvir as minhas palavras, que ele falar em meu nome, eu o requererei dele. Porém o profeta que tiver a presunção de falar alguma palavra em meu nome, que eu não lhe tenha mandado falar, ou o que falar em nome de outros deuses, esse profeta morrerá. E, se disseres no teu coração: Como conhecerei a palavra que o SENHOR não falou? Quando o profeta falar em nome do SENHOR, e essa palavra não se cumprir, nem suceder assim; esta é palavra que o SENHOR não falou; com soberba a falou aquele profeta; não tenhas temor dele." [Dt 18:18-22].


Um exemplo de falsas profecias são aquelas realizadas por Joseph Smith, mórmon, Ellen White, adventista, e Charles T. Russel,  testemunha de Jeová, que afirmaram receber de Deus mensagens datando, com exatidão, a segunda vinda do Senhor Jesus, o que não aconteceu, e os fez reverem as datas, postergando-as e, novamente, o Senhor não retornou. Quanto a isso, o próprio Senhor nos mostra a ilegalidade, mas também a ignorância, de tais "homens de Deus": 

"Mas daquele dia e hora ninguém sabe, nem os anjos do céu, mas unicamente meu Pai. E, como foi nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do homem. Porquanto, assim como, nos dias anteriores ao dilúvio, comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao dia em que Noé entrou na arca, E não o perceberam, até que veio o dilúvio, e os levou a todos, assim será também a vinda do Filho do homem. Então, estando dois no campo, será levado um, e deixado o outro; Estando duas moendo no moinho, será levada uma, e deixada outra. Vigiai, pois, porque não sabeis a que hora há de vir o vosso Senhor. Mas considerai isto: se o pai de família soubesse a que vigília da noite havia de vir o ladrão, vigiaria e não deixaria minar a sua casa. Por isso, estai vós apercebidos também; porque o Filho do homem há de vir à hora em que não penseis" [Mt 24:36-44].


A advertência é clara e explícita, mas esses homens e mulheres negligenciaram-na, levando muitos a segui-los e a propagarem seus erros, tornando a fé uma espécie de loteria, só que uma loteria onde ninguém ganha. Não satisfeitos, eles insistiram em vários ensinamentos doutrinários que contradizem e desdizem a Bíblia, como a Trindade, a expiação de Cristo, salvação, e muitas outras coisas que tornam essas igrejas em seitas, e sua doutrina em heresia, que apelam a um tipo de cristianismo anticristão e bíblico.

A Bíblia exorta-nos a ter cuidado e prudência, a examinar tudo e reter o bem, e nos avisa de que muitos falsos profetas surgirão, e, por isso, não devemos crer a todo espírito, mas prová-los, se procedem de Deus [1Jo 4.1]. Mas, e as mensagens que pagãos e certos "cristãos" recebem e se realizam? Como explicá-las? Isso prova que elas são verdadeiramente de Deus?

Entraremos em uma questão bastante delicada, e que pode trazer desconforto para alguns irmãos. Porém, não devemos refugar o estudo da questão, com pena de sermos negligentes naquilo que Deus nos deu a entender e a praticar, como cristãos que não tomam o leite falsificado, mas estão fundamentados na verdade. Alguém pode dizer que estou a chamar de mentirosos os que acreditam em profetas, ao molde escriturístico, para os dias de hoje. Na verdade, este é o lado negativo da afirmação de que eles estão circunscritos aos tempos remotos e históricos em que Deus entregou aos homens a sua revelação especial e, como tal, ela foi concluída. Muitos se especializaram na mentira, no engano, para obterem proveito próprio, seja de forma monetária, em poder, em glória, ou qualquer outra motivação. Há porém aqueles que são enganados e se deixam enganar, e que não podem ser considerados mentirosos, pois acreditam piamente no que dizem, como se fosse a revelação direta de Deus. Esses são ignorantes, desconhecem a verdade, mas nem por isso deixam de ser responsáveis pelo próprio erro.

É o que a Escritura nos mostra, pois, como à época de Paulo, hoje muitos se especializaram em adivinhações, em previsões do futuro, e a isso chamam profecia. Mas, será? Em Atos 16, a partir do verso 16, encontramos uma serva que dava muitos lucros aos seus senhores adivinhando. Certamente ela dava lucro porque, se não todas, ela acertava algumas das suas previsões. E o que fez Paulo? Após muitos dias, perturbado, ele expulsou dela o espírito adivinhador, causando a ira dos senhores que viram o seu lucro evaporar-se. Então, por que crer, agora, que Deus modificou o dom de profecia, tornando-o em uma mera previsão do futuro? E de feições gerais para a utilidade da igreja transformou-a em um caráter estritamente individual?

Já vimos, quanto aos dons de cura, fé e operar maravilhas, que esses homens viveram num período específico, num contexto histórico em que a palavra de Deus escrita ainda não havia sido concluída, e de que esses sinais serviam para testificar que a mensagem entregue por eles era divina. A prova está no fato de não vermos sinais, hoje em dia, como aqueles executados por profetas e apóstolos, sem contar os ainda mais especiais realizados por Cristo. Logo, um dos motivos para a profecia, senão o mais importante, não mais existe, já que o cânon está fechado e qualquer coisa que se acrescente ou se retire dele é maldito.

Vimos também que profecias de cunho pessoal ou particular não existem, ao menos da parte de Deus, e de que os falsos profetas têm por objetivo desconstruir e contradizer a verdade do Evangelho. De certa forma, esse papel coube inicialmente à serpente, no Éden, que "reinterpretou" ou interpretou equivocadamente. Ainda que agisse dolosamente, ela traduziu, ao seu modo, o que Deus teria dito e não disse, a fim de que Adão e Eva caíssem em sua lábia e ardil. O falso profeta é um imitador barato, que aparenta ser verdadeiro, mas que é contrário à verdade, odiando-a.

Mais um ponto, é que os profetas atuais, em sua maioria, são exaltados e populares, ao contrário dos antigos e verdadeiros profetas. Há de se entender que o homem, de forma geral, é avesso à verdade, e uma presa fácil para os enganos produzidos por emoções e sensações. Da mesma forma, o pragmatismo, a ideia de que se determinada coisa funciona e dá certo é verdadeiro, domina o pensamento anti-intelectual dos nossos dias. E com o sucesso deles, com os seus "sinais", uma gama grande de heresias tem subsistido em muitas igrejas e movimentos que se dizem cristãos. E muito disso tudo tem como fruto as falsas profecias, os acréscimos à Palavra que são pregados e defendidos exatamente por aqueles que se autointitulam como milagreiros e homens de poder.

A verdade é que Deus nos ordena a tomar cuidado, e não sermos incautos, com os falsos profetas: "Acautelai-vos, porém dos falsos profetas,que vêm até vós vestidos com ovelhas, mas, interiormente, são lobos devoradores" [Mt 7.15], e ainda, outra vez: "Acautelai-vos, que ninguém vos engane; porque muitos virão em meu nome, dizendo: Eu sou o Cristo; e enganarão a muitos... E surgirão muitos falsos profetas, e enganarão a muitos. E, por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará. Mas aquele que perseverar até ao fim será salvo" [Mt 24:4-5,11-13]. Especialmente devemos ter uma atenção especial com os sinais, porque eles, ao invés de remeterem para Cristo, acabam por apontar para outro caminho, o qual é o de destruição. Foi o que Paulo disse ao jovem Timóteo: "Mas o Espírito Santo expressamente diz que nos últimos tempos apostatarão alguns da fé, dando ouvidos a espíritos enganadores, e a doutrinas de demônios. Pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua própria consciência" [1Tm 4.1-2].

Então, podemos assegurar que muitos deles são servos de satanás, e de que o próprio satanás produziria, pela mão de seus escravos, milagres e prodígios a fim de que confirmassem sua mensagem espúria e maligna. Senão, vejamos: "E então será revelado o iníquo, a quem o Senhor desfará pelo assopro da sua boca, e aniquilará pelo esplendor da sua vinda; A esse cuja vinda é segundo a eficácia de Satanás, com todo o poder, e sinais e prodígios de mentira, E com todo o engano da injustiça para os que perecem, porque não receberam o amor da verdade para se salvarem. E por isso Deus lhes enviará a operação do erro, para que creiam a mentira; Para que sejam julgados todos os que não creram a verdade, antes tiveram prazer na iniquidade." [2Ts 2:8-12].


Em outro trecho, o apóstolo se refere ao fato de muitos obreiros se transfigurarem em apóstolos de Cristo, quando na verdade não o são: "Porque tais falsos apóstolos são obreiros fraudulentos, transfigurando-se em apóstolos de Cristo. E não é maravilha, porque o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz; não é muito, pois, que os seus ministros se transfigurem em ministros da justiça; o fim dos quais será conforme as suas obras" [2Co 11:13-15]. Paulo fala daqueles que, vestindo-se de servos de Cristo são, na verdade, ministros de satanás para, na igreja, corromper a doutrina, a paz, a fé e a verdade, sendo, portanto, inimigos do Senhor e do Evangelho. Eles combatem a verdade e todo aquele que a proclama, assim como faziam na igreja primitiva, além de, invariavelmente buscarem a glória para si, para seus feitos, como convém àquele que é escravo da sua própria corrupção e deixa-se levar à perdição, mas não antes de levarem muitos consigo.

Com isso, estou a dizer que as profecias atuais cumprem propósitos distintos das antigas profecias, as do período em que a revelação especial estava sendo escrita, e que não são trazer algo novo de Deus, mas exatamente se opor àquilo que ele mostrou-nos pelas mãos de homens escolhidos por ele no período em que a Bíblia se formava, cujo trabalho foi concluído. Além do que, Paulo chama-nos à atenção para o objetivo da profecia: ser útil à igreja. Ora, se a palavra de Deus está completa, de que mais a igreja precisa para ser edificada e abençoada? Nada. Portanto, não há novas profecias, nem novos profetas, no sentido neotestamentário, pois não são mais necessários. O verdadeiro profeta, hoje, é aquele que proclama o Evangelho tal qual foi entregue pelo Senhor à igreja: a Bíblia Sagrada. Este é o que fala a palavra de Deus, revelando aos que não a conhecem a sua santa e bendita vontade, bem como quem ele é e o que fez e tem feito por nós, e, também, quem somos.

Quando, pois, Isaías [este, um verdadeiro profeta] diz: "À lei e ao testemunho! Se eles não falarem segundo esta palavra, é porque não há luz neles", é assim que também penso: o verdadeiro profeta é aquele que a proclama, sem acréscimos ou retaliações, e o falso é aquele que diz ter Deus dado-lhe uma nova revelação.


A estes, devemos resistir. E, em última instância, abandoná-los ao seu próprio engano.


Notas: 1) Recentemente, li um pronunciamento desafiador de um irmão que se autointitula profeta, o qual ouviu do próprio Deus a sua predição. Ele afirmou que tudo o que disse [ligado à economia global, que mergulharia o mundo em uma crise sem precedentes] se cumpriria infalivelmente, e de que todos aqueles "incrédulos" calariam-se quando a tal profecia se realizasse. Muito do que ele disse a própria Bíblia diz; e, outro tanto, os economistas, que não arvoram-se em "ouvir" a voz de Deus, também preveem ou previram. Mas o que mais me surpreendeu foi a atitude provocativa e petulante do profeta ao acusar, e quase amaldiçoar, quem não o levasse a sério de não ter parte com Deus. Parece que ele mesmo se autoconsidera bastante, ao ponto de condenar os céticos, não em Deus, mas nele. Como ele não disse nada de novo, apesar de insistir em afirmar o contrário, penso apenas em um "surto", o que em nada glorifica a Deus nem edifica a igreja. E as profecias modernas têm essas características, diferentemente das proferidas pelos verdadeiros profetas vero e neotestamentários. 

2) Aulas realizadas na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico;

3) Baixe o áudio das aulas em Aula 80 - Dons VII - Profecias.MP3

03 março 2014

Estudo da Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 61 - Dons Apostólicos: Operação de Maravilhas



Por Jorge Fernandes Isah 


Muitos entendem esse dom como sendo o mesmo de curar, como várias vezes Cristo e os apóstolos fizeram: dar vista aos cegos, audição aos surdos, a fala aos mudos, e restaurar membros aleijados [pernas e mãos, p.ex.]. Para isso, muitos tradutores substituem o termo "maravilhas" por "milagres", criando uma generalização que o apóstolo não quis dar. Por milagres, podemos entender uma ação imediata de Deus no cosmos, onde se incluiriam todos os dons relacionados em 1Co 12, e, muitos mais. Ainda que se possa tratá-los como sinônimos, penso que o escritor quis estabelecer uma separação, dando um caráter singular ao "operar maravilhas", contudo, estabelecer claramente essa diferenciação  é algo muito difícil. Essa distinção também está presente na dissociação entre ele e o dom de curar [leia o estudo sobre este dom], demonstrado, ao citá-los, na mesma sequência, separadamente, e não como um mesmo sinal indistinto. Assim, ele não queria que um dom fosse considerado análogo ao outro, revelando que eram ações inconfundíveis, diversas, mas realizadas pelo mesmo Espírito. Logo,  operar maravilhas e curar não podem ser tomados como a mesma coisa, como se fossem um mesmo dom, senão, por que Paulo os mencionaria distintamente? Ora, porque são dons diferentes e não idênticos, ainda que possam ser comparados em seu caráter sobrenatural. Sabemos o que é o dom de cura, mas o que vem a ser operação de maravilhas?
 
Primeiro, deve-se definir a palavra maravilha e sua aplicação no texto bíblico. Maravilha, milagres e sinais têm em comum, como já insinuei, o fato de serem ações ou manifestações especiais de Deus no mundo natural, uma interferência contrária, oposta e extraordinária, revelando um poder e uma realidade que estão acima, que são superiores, ao mundo físico ou natural.
 
Como também já vimos, os dons espirituais têm o objetivo de legitimar e autorizar o ministério dos apóstolos como instituído por Deus. Eles nunca estão sozinhos, mas sempre acompanhados da pregação do Evangelho, como confirmação de que eles são testemunhas vivas da palavra de Cristo. Na verdade, os apóstolos falavam ousadamente de Cristo, e ele confirmava a veracidade, "permitindo que por suas mãos se fizessem sinais e prodígios" [At. 14.3]. Muito do que pode ser dito deste dom já foi exposto nas aulas anteriores, não sendo necessário repeti-los.
 
Ao meu ver, o que diferencia o dom de operar maravilhas dos demais dons é a sua manifestação em eventos exteriores ao homem. Pode ser que a minha definição se enquadre numa limitação ou numa espécie de reducionismo do poder divino, mas penso que esse foi o propósito de Paulo ao mantê-lo distinto dos demais dons. 

Eles aconteceram em vários momentos históricos, como, por exemplo:
1) Moisés estendeu a sua mão sobre o Mar, e ele se abriu, e os judeus atravessaram-no: "Então Moisés estendeu a sua mão sobre o mar, e o SENHOR fez retirar o mar por um forte vento oriental toda aquela noite; e o mar tornou-se em seco, e as águas foram partidas. E os filhos de Israel entraram pelo meio do mar em seco; e as águas foram-lhes como muro à sua direita e à sua esquerda! [Ex 14.21-22];

2) Josué orou e o Sol e a Lua pararam: "Então Josué falou ao SENHOR, no dia em que o SENHOR deu os amorreus nas mãos dos filhos de Israel, e disse na presença dos israelitas: Sol, detém-te em Gibeom, e tu, lua, no vale de Ajalom. E o sol se deteve, e a lua parou, até que o povo se vingou de seus inimigos. Isto não está escrito no livro de Jasher? O sol, pois, se deteve no meio do céu, e não se apressou a pôr-se, quase um dia inteiro" [Js 10:12-13];
3) Jesus transformou água em vinho: "E estavam ali postas seis talhas de pedra, para as purificações dos judeus, e em cada uma cabiam dois ou três almudes. Disse-lhes Jesus: Enchei de água essas talhas. E encheram-nas até em cima. E disse-lhes: Tirai agora, e levai ao mestre-sala. E levaram. E, logo que o mestre-sala provou a água feita vinho (não sabendo de onde viera, se bem que o sabiam os serventes que tinham tirado a água), chamou o mestre-sala ao esposo, E disse-lhe: Todo o homem põe primeiro o vinho bom e, quando já têm bebido bem, então o inferior; mas tu guardaste até agora o bom vinho. Jesus principiou assim os seus sinais em Caná da Galiléia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram nele" [Jo 2.6-11];

4) Cristo andou sobre as águas e acalmou a tempestade: "E o barco estava já no meio do mar, açoitado pelas ondas; porque o vento era contrário; Mas, à quarta vigília da noite, dirigiu-se Jesus para eles, andando por cima do mar. E os discípulos, vendo-o andando sobre o mar, assustaram-se, dizendo: É um fantasma. E gritaram com medo. Jesus, porém, lhes falou logo, dizendo: Tende bom ânimo, sou eu, não temais. E respondeu-lhe Pedro, e disse: Senhor, se és tu, manda-me ir ter contigo por cima das águas. E ele disse: Vem. E Pedro, descendo do barco, andou sobre as águas para ir ter com Jesus. Mas, sentindo o vento forte, teve medo; e, começando a ir para o fundo, clamou, dizendo: Senhor, salva-me! E logo Jesus, estendendo a mão, segurou-o, e disse-lhe: Homem de pouca fé, por que duvidaste? E, quando subiram para o barco, acalmou o vento" [Mt 14.24-32];
5) Podemos também citar os apóstolos Pedro e Paulo, por cujas mãos Deus ressuscitou a Dorcas [At 9.40]  e Êutico [At 20.9-12].
O que nos leva à seguinte pergunta: existem pessoas com esses dons hoje? Alguém que possa agir contra a própria natureza e as leis físicas?

Certamente que não. Veja bem, não dizemos que milagres e acontecimentos maravilhosos como os relatados acima não possam acontecer, pois não é isso. Somente não cremos que Deus ainda distribui dons sobrenaturais aos homens, pois, como já foi mostrado, eles não eram apenas feitos em si mesmos, eventos que se autoexplicassem sem a necessidade de um exame acurado. Eles estavam sempre atrelados à revelação escriturística, testificando a autoridade investida por Deus aos apóstolos e àqueles a quem os apóstolos designavam, como testemunhas de Cristo e seu Evangelho. O próprio Senhor realizava-os, primeiramente para revelar ao mundo a autoridade divina do Filho, da segunda pessoa da Trindade Santa, mas também apontando para o Pai, aquele que o enviou. Esses dons eram sinais de testemunho, confirmando que a palavra proferida era a fiel e autêntica palavra de Deus. Assim, também,  o testemunho apostólico comprovava a ressurreição do Senhor, de que com ele comeriam e beberiam após a sua morte [At 10.34-42].

Não nos esqueçamos também de que as Escrituras ainda não estavam concluídas ou fechadas, e foram esses homens que a redigiram, e, para tanto, os dons espirituais eram sinais de que a palavra escrita carregava o selo legítimo da autoridade divina. 

Por fim, o apóstolo reivindica que a salvação, anunciada inicialmente por Cristo, foi confirmada, naquele tempo [e ainda hoje], pelos que a ouviram [apóstolos e discípulos], testificando Deus com eles, por sinais e milagres, e várias maravilhas e dons do Espírito Santo. Então, nada disso é mais necessário hoje, porque temos a certeza de que, pela palavra revelada, a salvação é um dom de Deus pela fé em Cristo.
 
Hoje, mais do que demonstrar o poder de determinado pastor ou missionário, o que não faria sentido, visto a revelação estar completamente explicitada e concluída, e nada poder ser-lhe acrescentada [pois o fazendo, implicaria em maldição ao que acrescentar ou tirar algo da Escritura], os milagres e maravilhas realizados por Cristo e seus apóstolos reportam-nos à certeza, mais do que a esperança, de que Deus governa soberanamente sobre tudo e todos, e de que, no dia do Senhor, a tão desejada redenção universal virá como cumprimento da promessa de Cristo, revelando-nos a sua glória. De forma que o reino das trevas será definitivamente vencido e destruído [Lc 11:20-23], a morte será finalmente aniquilada [1Co 15.26], todo sofrimento expirado, assim como toda lágrima, enxugada [Ap  21.4],  e o caos dará lugar à ordem e paz eternas, nos novos céus e terra [Ap 21.1]. E não mais serão necessários milagres, porque viveremos o eterno milagre: a salvação!

Notas: 1) Aula realizada na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico;
2) Baixe esta aula em Aula 79 - Dons - Operação de Maravilhas.MP3
3) Muitos outros pontos foram abordados no áudio, e que não estão presentes no texto 

21 fevereiro 2014

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 60 - Dons apostólicos: Cura


Por Jorge Fernandes Isah



A primeira coisa a dizer é que cremos no poder divino de curar, ao contrário do que alguns afirmam. Contudo não cremos mais que Deus o faça pelas mãos de homens ou mesmo pelos objetos que eles usavam. A Bíblia nos informa que a sombra de Pedro curava as pessoas [At 5.12-16]. Ele não orava nem as tocava, mas apenas o passar da sombra pelos enfermos curava-os. Igualmente as roupas de Paulo eram instrumentos de Deus para a cura dos doentes [At 19.11-12]. Mas isso poderia acontecer hoje? Podemos afirmar que não, porque essas maravilhas eram realizadas pelos apóstolos como confirmação de que a mensagem de boas-novas, o Evangelho de Cristo, provinha de Deus. E somente os apóstolos podiam transferir esses dons a outros irmãos da igreja, como já vimos em outra aula. Ninguém mais! Portanto, com o fim da era apostólica, esses dons cessaram, pois já não podiam mais serem transmitidos; não havendo nenhuma outra forma de sucessão apostólica além da autoridade que os próprios apóstolos possuíam. O dom de transmitir tal poder pertencia a eles, e somente a eles.

Então é preciso entender que o dom de cura tinha um caráter revelacional e estava diretamente ligado à testificar e ministrar o Evangelho de Cristo. Não tinha por objetivo apenas curar o enfermo, como vemos hoje nas "campanhas de cura", onde o Evangelho não é pregado, Cristo não é pregado, não há arrependimento, conversão, mas apenas uma proposta de cura do corpo enquanto a alma está moribunda e o espírito agonizante. Nada disso tem a ver com o dom dado à igreja primitiva. A cura, assim como os milagres, tinham o propósito de revelar Cristo e sua obra através da pregação do Evangelho, e de que ele provinha de Deus; igualmente testificava que os apóstolos e discípulos não proclamavam nenhuma mensagem meramente humana, mas eram porta-vozes do próprio Deus. Não pensem também que a igreja era um pronto-atendimento, como muitas igrejas defendem e tentam copiar, porém copiam um padrão que não é eclesiástico nem neotestamentário. A cura servia a uma finalidade, como já dissemos, e nem todos eram curados, e muitos não foram, como a própria escritura relata, porque era específico, restrito a certas situações. Os dons não eram como varinhas-de-condão, bastando acioná-las que automaticamente entrariam em ação e proporcionariam os efeitos desejados. Como exemplo, há o caso de Epafrodito, o qual é citado por Paulo como alguém que quase morreu, pois estava muito doente. A ordem sequencial, em Filipenses 2:25-27, é: esteve muito doente, e quase morreu, indicando que o seu estado de saúde agravou-se no decorrer da enfermidade. Deus o curou, e o apóstolo se alegrou de Deus tê-lo feito, mas não há nenhuma indicação de que foi por intermédio do apóstolo que o Senhor o fez, pelo contrário, a evidência é de que não houve sua intervenção direta a não ser pela oração, e nada mais. Ao ponto dele dizer que o Senhor teve misericórdia do seu companheiro de lutas e cooperador, mas também de si mesmo, poupando-o de sofrer tristeza sobre tristeza, com a possibilidade iminente da morte do amigo e irmão. Se Paulo dispunha do dom, no momento e hora em que quisesse usá-lo, por que não o fez? Ou não dependia, simplesmente, da sua vontade acioná-lo? Era necessário cumprir um propósito previamente estabelecido e comunicado por Deus? O que nos mostra que os apóstolos não eram super-homens, nem homens independentes, mas homens comuns poderosamente usados pelo Senhor, sujeitando-se à sua vontade e dependentes exclusivamente dela. Fica claro que Paulo, se ainda tivesse esse dom ou pudesse usá-lo a seu bel-prazer, não se furtaria a curar Epafrodito, um colaborador tão amado. Logo o dom de cura não era algo automático e infalível, e que se podia dispor dele quando bem o quisesse. Ele também diz que deixou Trófimo doente em Mileto, ao despedir-se de Timóteo [2Tm 4.20], e sugeriu ao próprio Timóteo que tomasse um pouco de vinho por conta das frequentes dores no estômago e outras enfermidades [1Tm 5.23].


O próprio fato de Paulo referir-se a um "espinho na carne", que bem podia ser uma doença usada por satanás para esbofeteá-lo [2Co 12.5-10], e ainda de um certo problema de visão que o acometeu durante bastante tempo, quando primeiro anunciou o evangelho aos gálatas, estando em fraqueza da carne [Gl 4.12-15], corrobora o fato de que ele não podia curar-se a si mesmo, utilizando-se do dom de cura em benefício próprio. Isso pode deixar muitos crentes atônitos: mas, para que o dom de cura se não posso curar a mim mesmo? E eu diria que, mais do que satisfazer aos nossos desejos pessoais Deus tem um plano maior, que é a sua glória, e, muitas vezes, não está nesse plano que um crente seja curado, que não sofra um acidente, que não seja perseguido, perca os seus bens e família, seja torturado ou morto [como Lutero proclama no hino 323, do Cantor Cristão, "Castelo Forte":
 
Sim, que a palavra ficará,
Sabemos com certeza,
E nada nos assustará,
Com Cristo por defesa.

Se temos de perder,
Os filhos, bens, mulher,
Embora a vida vá,
Por nós Jesus está,
E dar-nos-á seu Reino
].
 
Portanto, a nossa conclusão é de que o dom de cura era especialmente ministrado em momentos específicos, e de forma bastante restritiva, no sentido de não ser um acontecimento trivial e corriqueiro, como muitos hoje querem fazer parecer. Ao se afirmar que o problema é de fé, de que o homem sem fé não "recebe" a cura, a glória da cura passa a ser do homem, sem o qual não haveria o dom. Mas, sabemos que Deus é sempre glorificado, e ninguém pode tirar-lhe a glória [Is 42.8]. É algo que os cristãos devem pensar: há uma divisão de ações entre Deus e os homens, no sentido de algo que o Senhor quer fazer não acontecerá porque impedimos?... Especialmente, aos calvinistas, gostaria de deixar essa reflexão. E, se Deus divide conosco a decisão da cura, no sentido exposto acima, de que se não quisermos a sua vontade decairá [não se realizará], mas se desejamos e a cura acontece, a glória não deve ser dividida com o homem? Ou seja, podemos impedir Deus de agir, seja por falta de fé [quando se quer, mas não se pode ter o que se quer] ou porque não queremos? Pensem comigo: não é, talvez, por isso, que muitos líderes são exaltados quase à altura de Deus? E muitos os têm como o próprio Deus na Terra? Não é, por isso, que muitos ídolos são construídos, e as pessoas se esmeram em ofender o Todo-Poderoso infringindo o 1o., 2o. e 3o. Mandamentos? [Ex 20.1-3]. É claro que este é um exemplo extravagante, mas que tem se tornado rotineiro entre as muitas comunidades cristãs, por falta de conhecimento e uma boa dose de egoísmo e imediatismo; porque, quem assim o faz, reconhece nesse homem um poder e uma capacidade de semideus. E vou mais além: não haveria um espírito de falsa-modéstia, de dissimulação [consciente ou não], quando não assumimos isso, que o "curador" divide com Deus a glória da cura, e dizemos, da boca para fora, "não, a glória é somente de Deus"? É algo que devemos meditar e verificar, se não incorremos em erro de princípio, pois, do contrário, todas as justificativas para a crença no dom de cura atualmente estão fundamentadas em um mérito pessoal, e claramente a Bíblia nos adverte de que nada pode ser justificado por obras de justiça humanas [Tt 3.5]. Logo, é temerário que incorramos em uma espécie de exaltação e glorificação do homem ao posto de "deus" [exemplos, no decorrer da história, enchem as páginas dos livros e se refletem na vida de milhões de cristãos mundo afora], e em um "rebaixamento" de Deus, o que, sinceramente, é imperdoável em todos os aspectos, seja consciente ou não.

Por estes e vários outros motivos, mas especialmente pelo testemunho da palavra de Deus, não nos curvamos ao modernismo e ao imediatismo de aceitar os dons apostólicos como contemporâneos. Certamente eles veem mais para cegar ou manter cegos os ímpios do que para iluminar os salvos.

Notas: 1) Aula ministrada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico;
2) Uma análise mais profunda está disponível no áudio desta aula, onde são abordadas questões e passagens bíblicas não examinadas no texto, como Mt 9:18-26, 15:29-31 e Atos 3:1-10, inclusive a ligação de Israel e os judeus com a incredulidade em Cristo;
3) Baixe está aula emAula 76 - Dons V.MP3