12 janeiro 2013

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 41: É pecado jurar?



Por Jorge Fernandes Isah



O irmão Bruno fez um questionamento, após a aula passada, ao qual julguei procedente considerar um esclarecimento aqui. Durante a nossa aula, foi dito que o membro da nossa igreja deveria jurar a Deus que aceitaria, cumpriria e defenderia a declaração de fé da igreja. Então, ele me perguntou:

- Mas a Bíblia não diz que o crente não pode jurar? - Certamente se lembrando do Sermão do Monte.

Eu disse-lhe que não, que não há a proibição, mas sem muita convicção, naquele momento. Decidi estudar um pouco, ontem, sobre o assunto e cheguei à conclusão de que a minha resposta estava correta, ainda que proferida sem a base bíblica claramente definida. Portanto, começaremos lendo o trecho de Ex. 20.7, cujo texto é repetido em Dt 5.11: “Não tomarás o nome do Senhor teu Deus em vão; porque o Senhor não terá por inocente o que tomar o seu nome em vão”.

Agora leiamos o Sermão do Monte, onde o Senhor Jesus diz: “Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. Eu, porém, vos digo que de maneira nenhuma jureis; nem pelo céu, porque é o trono de Deus; Nem pela terra, porque é o escabelo de seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do grande Rei; Nem jurarás pela tua cabeça, porque não podes tornar um cabelo branco ou preto. Seja, porém, o vosso falar: Sim, sim; Não, não; porque o que passa disto é de procedência maligna” [Mt 5.33-37, consonante com Tg 5.12].

O que temos aqui? Uma expressa proibição do Senhor para que não juremos? Ele está a ordenar-nos que qualquer jura é pecado ou se refere a um tipo específico de juramento? É o que veremos a seguir. Mas primeiro, definamos o termo, segundo o Michaelis:

Juramento: "1 Ato de jurar. 2 Afirmação ou negação explícita de alguma coisa, tomando a Deus por testemunha ou invocando coisa sagrada". 

Temos, no Antigo Testamento, a afirmação clara de que o homem não deve jurar em vão, ou seja, ele não pode jurar sobre algo que não pode cumprir, e se jurar, deve fazê-lo, certo de que tem de cumpri-lo, do contrário ele profanará o nome de Deus. Veja que o juramente é sempre em nome de Deus, e não em nome de alguma outra coisa. Não podemos jurar em nome de nós mesmos, pois somos inconstantes e seres caídos, sem autoridade. Nem podemos jurar em nome de outro elemento da natureza, seja o céu, a terra, as árvores, etc., porque, ao fazê-lo, colocamos o nosso juramento sobre algo criado, que em si mesmo não é fonte de nenhuma autoridade, e acabamos por invocar implicitamente o nome de Deus, que é a origem de tudo o mais, o criador de todas as coisas, e é por ele que elas vieram a existência e têm a glória e o poder que ele as deu. Ao fazê-lo, acabamos por jurar implicitamente, de uma forma ou de outra, em nome de Deus, que o princípio de todas as coisas e a causa primeira da criação.

O Senhor Jesus ordena que não se jure por nada criado, visto que os judeus, com o decorrer do tempo, usaram o artifício de jurar em nome do céu, da terra, do templo, em substituição ao juramento em nome de Deus; já que se recusavam e proibiam a pronúncia do nome sagrado, o tetragrama YHVH [Javé]. Com o tempo adotaram a fórmula de jurar em nome das coisas criadas, como um subterfúgio, um estratagema, para resolver o dilema de não se pronunciar o nome divino, considerado impronunciável por qualquer dos homens.

Cristo nos diz que não se deve proceder assim, e que assim o fazendo, cometemos pecado. Entre os judeus, especialmente fariseus, acreditou-se que o juramento, sendo em nome das coisas criadas, possibilitava o seu não cumprimento, de sorte que a autoridade para que determinado juramento fosse considerado válido ou invalido cabia exclusivamente às autoridades do templo. Com isso o homem se tornou, em última instância, a autoridade, aquele que controlava o que se devia cumprir ou não, à revelia do texto bíblico que exortava ao cumprimento de tudo o que se prometia, pois sempre era realizado em o nome do Senhor. Não há juramento que não seja em nome de Deus, pois nele está contido o poder supremo e absoluto, a autoridade absoluta e suprema. Por isso, até hoje, em muitos tribunais, os envolvidos no julgamento são obrigados a jurar dizer a verdade somente a verdade em nome de Deus, com a mão direita estendida e a mão esquerda sobre a Bíblia, implicando que aquela pessoa o está fazendo diante de Deus, em seu próprio nome. O que os judeus fizeram foi uma exceção, uma excrecência à ordem divina, e, agindo dessa forma, estavam em flagrante pecado e desobediência.

Contudo, o próprio Senhor jurou por si mesmo: “Então o anjo do Senhor bradou a Abraão pela segunda vez desde os céus, E disse: Por mim mesmo jurei, diz o Senhor: Porquanto fizeste esta ação, e não me negaste o teu filho, o teu único filho, Que deveras te abençoarei, e grandissimamente multiplicarei a tua descendência como as estrelas dos céus, e como a areia que está na praia do mar; e a tua descendência possuirá a porta dos seus inimigos; E em tua descendência serão benditas todas as nações da terra; porquanto obedeceste à minha voz. Então Abraão tornou aos seus moços, e levantaram-se, e foram juntos para Berseba; e Abraão habitou em Berseba. [Gn 22.15-19].
E,
“Porque, quando Deus fez a promessa a Abraão, como não tinha outro maior por quem jurasse, jurou por si mesmo” [HB 6.13- ver até o verso 17].

Claramente, o juramento nos remete a Deus, o Criador e Senhor de todas as coisas, ao qual devemos honrar e do qual somos porta-vozes. O profeta antigo, que recebia as palavras diretamente de Deus, e o atual, que as recebe das Escrituras, falam em nome de Deus. E é o nosso dever falar em nome do Senhor; algo que devemos ter sempre em mente, e, assim, pelo nosso falar, somos testemunhas não somente do que Deus diz, mas também daquilo que ele fez em nós. Usar e falar em nome do Senhor, logo, não é pecado, pelo contrário.

Há a ordem explícita para que o homem jure“O Senhor teu Deus temerás e a ele servirás, e pelo seu nome jurarás... Ao Senhor teu Deus temerás; a ele servirás, e a ele te chegarás, e pelo seu nome jurarás” [Dt 6.13, 10.20].

Não podemos é usar o nome de Deus em vão, pois quem o faz comete perjúrio [Sl 24.4], a profanação do sagrado, do nome santo de Deus, que é o próprio Deus. 

Em 2 Co 1.23, Paulo invoca a Deus como testemunha de que ele não podia ir a Corinto.

Não devia ser necessário o juramento. O nosso testemunho deveria falar por nós mesmos, de forma que sempre que dissermos sim ou não, a verdade esteja evidente e patente. De que as nossas promessas serão cumpridas e não negligenciadas; de que tudo o que falamos é verdadeiro e de que não mentimos. O juramento é uma forma de confirmar o que está sendo dito, e invocamos a Deus por testemunha daquilo que dizemos ou prometemos. O fato do homem ser mentiroso nos leva a jurar em nome daquele que nunca mente [Rm 3.4]; e por ele, devemos nos guardar da mentira, sendo verdadeiros.  

Notas: 1 - Estudo realizado na EBD do Tabernáculo Batista Bíblico
2- Baixe o áudio desta aula em  Aula 41.MP3onde alguns outros pontos e versos bíblicos, não abarcados neste texto, são abordados. 

01 janeiro 2013

Evita longas discussões ou como fugir de um debate



Por Jorge Fernandes Isah

Desde o dia 24 último que ando adoentado, mais na cama do que fora dela. Sem saber ao certo o que tenho, dada a escassez e, porque não dizer, recesso da maioria dos médicos no fim-de-ano, fui preliminarmente diagnosticado como tendo cólica renal decorrente de cálculos ou as famosas "pedras" nos rins. Dores terríveis e constantes no abdome e costas me levaram ao atendimento de urgência. Medicado, de volta para casa, após o dia 26 as dores retornaram ainda mais fortes. Novamente achar um médico foi uma dificuldade. Felizmente, havia uma clínica funcionando através do meu convênio, e a médica confirmou o diagnóstico inicial do outro clínico. Pediu-me uma ultrassonografia total do abdome. Com muito custo, depois de horas tentando encontrar um local para realizar o exame [parece que todos estão de recesso até o dia 06 de Janeiro], consegui, não pelo convênio mas pagando como particular, agendá-lo para o dia 28, sexta-feira, no Hospital Felice Rosso, em BH.

Exame realizado, as suspeitas de letíase renal foram afastadas, e direcionadas para possível problema de coluna. Como tenho três hérnias de disco, a médica encaminhou-me para um ortopedista que, possivelmente, terei acesso apenas na próxima semana, a fim de realizar exames mais complexos, ressonância magnética ou tomografia.

Mas o que isto tem a ver com o título desta postagem? Aparentemente nada, é verdade. Acontece que um texto meu, "A Incoerência do livre-arbítrio" publicado em 2009 e reproduzido por alguns blogs na semana passada, suscitou a indignação de alguns irmãos arminianos, especialmente, ou exclusivamente, os envolvidos no site Arminianismo.com, o que me fez sair da "tumba", tirar-me da reclusão forçada. Sei que alguns dos meus textos são divulgados por lá, e só não me alcunham de "santo" [sei disso por conta de visitas que chegam aqui oriundas de lá e que são possíveis de se detectar pelo blogger], o que nunca me causou incômodo algum. Então, eles se aventuraram por aqui, e publiquei todos os comentários a exceção do último, enviado após eu afirmar que não publicaria mais nenhum se eles não se concentrassem no foco do meu texto: a ilusão do livre-arbítrio. 

Na verdade, há muito tempo que fujo dos debates, especialmente os teológicos, e foi, pela providência divina, que fui chamado para ministrar as aulas de EBD da minha igreja, e passei a postar o resumo delas por aqui, desde então. Com isso, a audiência do Kálamos caiu quase pela metade e o número de comentários chegou praticamente a zero, o que em momento algum me aborreceu ou desanimou; pois entendi que esta era a vontade de Deus, que eu primeiramente me instruísse mais, pesquisasse e estudasse mais antes de entrar em "polêmicas" como a do livre-arbítrio. Mas, sobretudo, que eu aprendesse a me dominar e não ver as críticas como ataques ou ofensivas necessitadas de respostas rápidas, de contra-ataques. Descobri, a duras penas, que nessas horas o que mais fala alto é o nosso orgulho e vaidade intelectual, que nos impede de "ficar por baixo" ou "para trás". Com isso, ofendemos, difamamos e nos fazemos mais e mais belicosos. 

Não digo que não se deva responder, e a resposta é necessária, mas nunca como uma questão de "sobrevivência própria", mas por amor a Deus e à verdade, como fruto da bondade divina que me diz ser impossível amá-lo se primeiro não amo ao meu irmão. Devemos seguir os exemplos bíblicos de que ela se professe com mansidão e prudência, o que parece ser cada vez mais difícil encontrar entre debatedores, especialmente os profissionais. É o que eu chamo de estágio daquele que "se alegra com o som da própria voz", e somente nela se deleita. Como o meu blog é um quase desconhecido na web, e a maioria das pessoas que se manifestam são amigas, o clima, mesmo discordante, sempre se manteve no âmbito da decência e prudência. Recusei-me a responder aos arminianos em seus termos, e disse, por fim, que a nossa conversa estava encerrada. Especialmente por conta do meu estado atual de saúde, em que qualquer desgosto em nada me ajudaria. Preciso me concentrar em coisas mais elevadas; e a minha saúde, no momento, é o que posso reconhecer como de mais necessário. 


Então, hoje, li a seguinte citação do grande prof. e filósofo Mário Ferreira dos Santos a qual  transcreverei, no desejo de que meditemos em sua mensagem, e que não seja vista como mais uma simples provocação ou resposta a quem quer que seja. Ela me falou muito, especialmente no sentido de que devemos ter, cada vez mais, o cuidado, diligência e estudo naquilo que dizemos ou afirmamos. Mesmo o Kálamos sendo um blog pessoal, escrito como um hobby, sem intenção de ser o "norte" de ninguém, entendo que tenho responsabilidade diante do leitor, naquilo em que escrevo. Contudo, não quero e jamais quis formar um "séquito" ou discipulado, mas muito mais chamar os irmãos e amigos à reflexão, ao estudo e à meditação. Por várias vezes assumi a minha condição de ignorante, e ainda que a minha linguagem seja um pouco dura [principalmente nos escritos de alguns anos atrás], jamais quis me colocar como infalível, inquestionável ou inerrante. Falo com convicção, o que muitos confundem com truculência, um pouco excessiva, reconheço, mas nada tem a ver com a atitude de superioridade ou de desprezo em relação ao pensamento discordante.  

Penso que estar certo ou melhor, seguir e proclamar a verdade é fundamental, mas mais importante que isto é fazê-lo com humildade e amor fraternal. O desprezo e o discurso infalível de quem quer que seja apenas assevera que o conhecimento sem entendimento é acumulo de informações, de dados, o que qualquer computador pode fazer muito melhor do que o homem. O que nos diferencia é a capacidade de ligar os pontos soltos e concluir a partir deles. Mas o trabalho racional perde a sua importância se, especialmente entre os cristãos, ele é apenas objeto de disputas onde os contendedores querem exaltar-se, o que os levará a querer vencer na marra, de qualquer jeito, e muitas vezes passar como "rolo compressor" sobre o oponente.

Por essa razão, já fui convidado a participar de vários fóruns de debates, inclusive como mediador, e recusei-os agradecido. Parece que tenho verdadeiramente um estômago fraco para a coisa... Mas, sobretudo, sei das minhas limitações e de que para ser útil preciso caminhar muito e muito mais, estudar e pesquisar ainda mais para, se for possível, um dia chegar à condição de entender alguma coisa e poder transmiti-la. Ao contrário da geração atual que, dispondo de um conhecimento mínimo se arvora a entendedora, professoral, mestre, e esforçada proclamadora da verdade. Ao ponto de, um deles, ter escrito no blog de um amigo e irmão:

"Agente do [...]  já ta cansado de ensinar a vocês calvinistas, o que é o arminianismo. Mas vocês parece estarem viciados em uma visão distorcida.
Sendo assim, irei passar um artigo pra ver se vocês aprendem alguma coisa".

É a esta arrogância e desprezo que me referi várias vezes, e tanto pode ser de cristãos, não-cristãos, arminianos, calvinistas, etc. 

Sei que há coisas muito mais importantes em minha vida: família, igreja e trabalho, por exemplo, aos quais dedico muito mais tempo do que aqui, que até anda meio abandonado, exatamente por falta de tempo; então, não compreendo a comoção que gerou em algumas pessoas um texto pessoal, como reflexão pessoal, ao ponto de não o lerem corretamente e buscarem questões que sequer são o alvo da matéria. Percebi que o intuito era de embate, de disputa, e de prevalecer, ao estilo deles, uma forma improdutiva e mal-direcionada de discussão. E, definitivamente, se eu já estava descrente com os debates já há algum tempo, não seria agora que me veria seduzido por um. Por isto, encerrei-o antes que começasse, com pena de me arrepender se não o fizesse.

Bem, as costas começaram a doer novamente, vou-me para a cama, mas deixo as palavras de quem, muito mais sábio do que eu, pode realmente nos ensinar algo:

"Evita as longas discussões, sobretudo com pessoas dispersas, que juntam argumentos sobre argumentos, sem ordem e sem disciplina, misturando juízos apenas de gosto com algumas pseudo-idéias mal-formadas e mal-assimiladas. Evita essas discussões que não são em nada benéficas. 
Se não for possível conduzir o colóquio com alguém em boa ordem, segundo boa lógica, cuidadosa e organizada, é preferível que te cales. Sempre sê disciplinado no trabalho mental. Essa é a regra importante, e nunca ceder às vagabundagens do pensamento em conversas diluídas, dispersas, em que se fala de tudo e não se fala de nada.” [Mário Ferreira dos Santos citado no "Conservadorismo Brasil"].

Com isto quero concluir que todo debate é possível, mas nem todo debate é necessário, e muitos são completamente dispensáveis. 

Que todos os irmãos e amigos tenham um ótimo 2013, debaixo da graça maravilhosa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo!

Abraços fraternos!

22 dezembro 2012

Neocalvinismo: breve análise a partir do texto de Pronk




Por Jorge Fernandes Isah

Primeiro, quero dizer que o livro, “Neocalvinismo: uma avaliação crítica”, está disponível em ebook gratuitamente na página da Editora Os Puritanos, e também há uma boa gama de blogs e sites que o disponibilizam para download, não sendo necessário comprá-lo pela Amazon.

Sobre a obra de Cornelis Pronk, ela é de se ler em uma sentada, ainda que não seja aconselhável que o faça. Mas como um "panfleto", no sentido original da palavra de ser um texto em que se expõe uma ideia de maneira breve, concisa e não exautiva, ao invés do sentido atual de um texto breve mas agressivo, difamatório ou sarcástico; faltam-lhe mais dados e esclarecimentos sobre o neocalvinismo, um estudo mais detalhado, aprofundado, um raio x do movimento, como ele merece ser realizado e, penso, está-se por fazer [ao menos pelas informações de que disponho].

Entendo que o autor quis se ater ao caráter mais "vísivel" do neocalvinismo, ou seja, o de defender uma redenção cultural através da igreja, significando que a obra de Cristo na cruz não se resumiu à expiação para e pelo seu povo ou igreja, mas de maneira ampla englobava uma redenção "cósmica" por assim dizer.

Sempre tive o pé meio atrás com relação ao neocalvinismo, por conta da sua proximidade perigosa com a cultura e o mundo, e com outros movimentos cristãos, como o carismático. E ela, de certa forma, trás em si algo de realmente danoso que é a possibilidade de contaminação do Evangelho por elementos seculares; uma diluição da mensagem bíblica que, ao invés de ser ela o facho de luz a se lançar em meio às trevas, ainda que de maneira inconsciente se vê disputando espaço com ela, como se ambas sentassem no mesmo banquinho e dissessem uma à outra: “chega um pouquinho pra lá!”. Acaba-se que a igreja está muito mais sujeita a se deixar influenciar pelo mundo do que ser influenciada para ele.

Perigosamente se busca uma justificativa, uma quase necessidade de aceitação do Cristianismo pelo mundo, como se a igreja estivesse submetida a um estado de inferioridade que somente se poderia “curar” utilizando-se as armas que o mundo considera adequadas, e que na verdade são para ele, mas que não podem responder nem aos seus próprios anseios quanto mais aos nossos. Parte da igreja, seja maioria ou não, parece querer a equiparação, a se igualar ao mundo, e assim revelar-se tão superior quanto ele. Sofremos da “síndrome do subsolo”, e o ar parece existir apenas na superfície. O argumento é a necessidade de se alcançar todos os grupos e segmentos da sociedade, e para isso é justificável utilizar qualquer meio que esteja à disposição para se fazer o evangelismo. Maquiavel soltaria um sorriso sarcástico se nos visse hoje em dia. Esse mesmo utilitarismo que busca como finalidade o bem-estar destes grupos, a redenção individual a partir do coletivo, em que a intenção ou motivação é muito mais importante do que a obediência aos princípios cristãos. Em linhas gerais, se determinada ação pode resultar na conversão de alguém, ela é meritória e certa, ainda que inobservando, em oposição aos preceitos divinos. O que me leva a meditar sobre a real intenção dos atuais proponentes do neocalvinismo: o cuidado verdadeiro com as almas perdidas ou a autoexaltação através das suas habilidades?

O fato é que, com as armas mundanas, sempre estaremos na "rabeira", e muitas vezes desprezamos o que de fundamental há na fé cristã: o chamado para realizar a obra que Cristo nos deu a fazer, não somente isso, mas como deveria ser realizada.

Há pastores cada vez mais empenhados em levar para as suas igrejas aspectos culturais da sociedade como danças modernas, música moderna, esportes modernos, literatura moderna, e etc, com o argumento de que se pode adequar a pregação, especialmente, com outros meios para alcançar grupos e pessoas que não se enquadrariam ao padrão histórico ou formal da igreja. “Diversão também é cultura, e a cultura leva a Cristo”, dizem enfáticos. Quanto a isto, penso que é a mais pura bobagem, tolice mesmo. A Bíblia nos diz que a salvação vem pelo ouvir a palavra de Deus, e muitos se esquecem de que o eleito a ouvirá sempre, sem chance de não ouvir; exatamente por ele ser eleito a mensagem do Evangelho estará à sua disposição em algum momento da vida, pois não há eleitos inelegíveis nem não-eleitos elegíveis.

Outro dado que me vem à memória é de que, à época do profetas, Cristo e dos apóstolos, já havia o teatro, a música, danças, e muitas outras formas de expressão que existem hoje, e nem por isso os vemos utilizando-as na igreja ou em missões.

Pode-se discutir se eles são aplicáveis ou não na igreja ou fora dela, mas o empenho com que se realizam "produções artísticas" hoje, como forma de evangelismo, está muito distante do padrão bíblico. Alguém pode dizer que o fato dos profetas e apóstolos serem perseguidos os impediam de realizar os eventos como os realizados atualmente. Mesmo não vivendo na clandestinidade, já que pregavam em praças públicas, ruas, sinagogas, no templo e até mesmo no sinédrio e diante dos governantes, eles tinham de ser breves e aterem-se exclusivamente à mensagem pela pregação. Hoje, esta urgência não é mais necessária, concluiria o neocalvinista. Ao que pergunto: É mesmo, cara-pálida?

Alguém ainda pode insinuar que os relatos mais antigos não se preocuparam em descrever as várias formas de evangelismo à época. Com a profusão de detalhes a respeito da igreja, do culto, e do trabalho missionário que a Bíblia nos deixou, é-me impossível acreditar que se esse fosse o padrão usual ou mesmo extemporâneo da igreja, haveria ao menos uma citação sobre ele.

Pronk aponta a ideia recente da "Graça Comum" como um dos culpados por esse estado de coisas, como o ponto de partida para que Abraham Kuyper idealizasse o movimento. Ainda que ele diga haver em Calvino a formatação embrionária da ideia de ‘Graça Comum”, ela foi delineada, ao menos como a maioria dos crentes a imagina, pela pena do pastor e estadista holandês. Por mais que eu me esforce ainda não consegui entender essa graça geral e irrestrita, talvez por burrice ou obstinação, ou ambos, sei lá! Estou a precisar estudar a questão com mais empenho, mas o tempo não me tem sido favorável. De qualquer forma, nutro uma "repulsa" pela ideia, ao menos nos moldes em que me foi exposta por alguns irmãos, e o pouco que li. Pode ser que o foco inicial não seja o mesmo, mas... bem, isto é outra história, para outra hora, talvez no mesmo lugar...

Resumindo, penso que o livro, "Neocalvinismo: uma avaliação crítica", nos dá uma amostragem geral do movimento, faltando-lhe explicá-lo melhor, inclusive em relação as consequências práticas da sua atuação, seja para o bem ou mal.

Recentemente, a revista "Times" divulgou uma lista com as 10 ideias mais influentes nos EUA, e o neocalvinismo estava em quinto lugar, se não me engano. A questão é: quais as implicações práticas do movimento? Tem havido uma mudança, ou ao menos uma tendência a mudança, na sociedade a partir da influência do neocalvinismo? Em quê e de que forma tem influenciado positivamente a sociedade com a mensagem do Evangelho? Temo-nos voltado ao padrão bíblico? Ou ele se encontra dissolvido, inserido, quase camuflado, à cultura anticristã dos nossos dias? E, o meu maior temor: ele não tem se "intoxicado" do ideário marxista, de uma subposição do Evangelho à agenda social militante e dominante? De forma que o Evangelho seja suficientemente moldado, domesticado, e se torne irreconhecível? Assim como o movimento da "Missão Integral" se imbuiu desde o início em fazer, e o fez tão bem que um cortejo de cristãos o segue como se ele fosse a própria essência da palavra de Deus? Uma espécie de redenção do homem através da arte, política e ações que visem a redimi-lo de sua miséria cultural e social? Temo ser este o maior problema, o qual muitos não se aperceberam, e que pode já ser tarde para corrigir.

E assim nos tornarmos em crentes superiores, integrados ao ambiente intelectual mais sofisticados, mas muito abaixo do mais humilde pregador que, fiel ao mandamento e não ao mandato cultural, é realmente luz e sal num mundo caído.

15 dezembro 2012

Estudo sobre a Confissão de Fé Batista de 1689 - Aula 40: A Trindade e o amor trinitário




Por Jorge Fernandes Isah



Há muitos textos na Escritura que revelam o amor de Deus por seu povo. O apóstolo diz que ele nos amou tanto que deu o seu próprio Filho em nosso favor, revelando que, como nos diz o mesmo apóstolo, ele nos amou primeiro. Se somos capazes de amá-lo é porque ele nos amou antes, e temos essa capacidade porque o Imago Dei, ainda que distorcido, quase um reflexo tênue do ser divino, foi-nos dado por ele. Amamos, porque ele nos amou antes da fundação do mundo; amamos, porque ele nos deu o seu amor e colocou em nós o seu maravilhoso atributo; amamos, porque sem ele não haveria o amor; amamos, porque Deus é amor, e traz eternamente em si mesmo a relação de amor entre as pessoas da Trindade. 

Ora, o amor não pode existir sem que haja o outro; qualquer ideia de um amor solitário é impossível. Para que haja amor é necessário, ao menos, duas pessoas, de onde o sentimento parte do sujeito ao objeto, ainda que o objeto não ame o sujeito. Ao amor não é necessário reciprocidade, alguém pode amar outrem e este outrem não nutrir nenhum sentimento pelo alguém. Em nossas relações há vários tipos de "amores", todos asseguradamente garantidos pela imperfeição e limitação humana. Há quem diga amar a natureza, o seu animal de estimação, uma obra de arte, um time de futebol, e coisas do gênero. Podemos refletir sobre eles se são mesmo amor ou não, porém, interessa-nos não estabelecer o que seja o amor da criatura, mas compreender o amor divino e relacioná-lo com o seu ser. 

Fato é que Deus, se sendo uma única pessoa, não teria a quem amar antes da criação. Mas se até mesmo a criação é um ato amoroso, ele, como o texto sagrado revela, nos amou sempre, eternamente. Alguém dirá que esse amor é possível; sendo Deus perfeito e imutável pode amar mesmo o que ainda não existiu e que para ele sempre existiu, pois sua mente é eterna assim como a sua vontade e atributos. Acontece que nenhum atributo divino surgiu por um processo de "evolução", mas todos são inerentes ao seu ser. Contudo, fica a pergunta: mesmo assim seria possível haver amor sem objeto a que se amar? 

Penso que em Deus o amor se dá exatamente porque em seu ser subsistem três pessoas; de forma que o amor eterno somente existe por causa das pessoas eternas que se amam mutuamente; sem as quais o significado da palavra "amor" não teria qualquer sentido, e a afirmação bíblica seria uma mera figuração, um símbolo desconectado com a natureza divina. Quando dizemos que "Deus é amor" não podemos jamais afirmá-lo com base apenas na criação, como se o atributo fosse contingente ao tempo e momento da criação. Ele existe eternamente e somente porque há uma interrelação entre as pessoas da Trindade, e pelo amor que há nelas, manifestando-se umas às outras. Negar o amor como fruto necessário da interrelação entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo é desprezar as evidências bíblicas, que mostram serem verdadeiras. E o amor somente é possível porque Deus é trino, e cada uma das pessoas tem em si a unidade absoluta do amor. 

Além desta questão crucial e fundamental para a fé cristã e bíblica, há outras provas de que o ser divino não é unipessoal mas tripessoal, onde as pessos se relacionam eterna e intrinsecamente, sendo, contudo, distintas entre si. Senão, vejamos:

a) Relacionamento pessoal
Nas relações pessoais que a Trindade têm entre si é evidenciado que são Pessoas diferentes. As suas designações Pai, Filho e Espírito Santo testificam isso:



1) Usam mutuamente os pronomes Eu, Tu, Ele quando falam um do outro, ou entre si [Mt 17.5; Jo 17.1; 16.28; 16.13];

2) O Pai ama o Filho, e o Filho ama o Pai. O Espírito Santo glorifica o Filho [Jo 3.35; 15.10; 16.14];

3) O Filho ora ao Pai [Jo 17.5; 14.16].

4) O Pai envia o Filho, e o Filho e o Pai enviam o Espírito Santo que atua como Seu Agente [Mt 10.40; Jo 17.18; 14,26; 16.7];

Porquanto, pelo fato de usar pronomes Eu, Tu, entre Si é evidenciado que há um só Deus em Três Pessoas Distintas.

B) São apresentadas separadamente

Três pessoas distintas são apresentadas em 2Sm 23.2,3; Is 48.16; 63.7-10. Igualmente, à vista do fato da criação ser atribuída a cada pessoa da divindade separadamente, como também a Eloim com as palavras “Também disse Deus [Eloim]: Façamos o homem ‘a nossa’ imagem” [Gn 1.26]. 

Esta convicção é confirmada como verdadeira pelo plural de Eclesiastes 12.1 que diz: “Lembra-te do(s) teu(s) criador(es) nos dias da tua mocidade”, e Is 54.5, que diz: “Porque o(s) teu(s) criador(es) é(são) teu marido”.

Este texto é um pequeno complemento às aulas passadas. Não tem por objetivo convencer os antitrinitários, os quais se desdobrarão em apresentar refutações ao que se apresenta, mas de levá-los a meditar na verdade, a qual a Bíblia insistente e claramente revela, e sem o quê o Cristianismo seria uma religião incoerente e sem nexo, especialmente diante daquilo mesmo que se revela. Há uma tão grande profusão de passagens que expressam a trinunidade de Deus que é o mesmo que chover no molhado, como a minha avó sabiamente dizia. E para que ninguém se molhe além do necessário, pararei por aqui, orando para que a verdade escriturística seja também verdade no coração rebelde do homem caído. 

Notas: 1 - Alguns pontos não abordados neste texto encontram-se expostos no áudio.
2- Aula realizada na E.B.D. do Tabernáculo Batista Bíblico
3- Baixe esta aula em Aula 40.MP3

23 novembro 2012

Materialismo: um salto de fé














Por Jorge Fernandes Isah

Sempre entendi que um darwinista baseia todas as suas convicções e conceitos não na ciência, muito menos na comprovação científica ou empirismo, mas na falsa premissa da não existência de Deus.

O que os move não é o conhecimento científico, nem as descobertas que "poderiam" apontar para a não existência de Deus, mas o contrário, eles direcionam e acomodam a ciência para dentro do seu escopo filosófico, o qual se evidencia metodologicamente corrompido pela forma como se manipulam, burlam, gerenciam as informações a fim de se ratificar o pressuposto filosófico da não existência de Deus.

A ciência torna-se apenas o veículo para a corroboração da crença na descrença; o meio pelo qual eles dão vazão aos seus pressupostos através da falsa idéia de que estão à procura da razão e da verdade; quando a ciência transforma-se no meio de propagação doutrinária, a despeito do seu apelo pseudo-racional querer excluir a fé, quando, na verdade, ela está arraigada na fé. É o discurso panfletário idealizando-se anti-panfletário, como se fosse possível condenar o proselitismo religioso usando-se do proselitismo para difundir o materialismo, uma nova religião tão ou mais radical como nenhuma outra já foi.

No fundo, o cético faz da ciência e de si mesmo os seus "deuses"; esses são os elementos forjadores da cosmovisão materialista, e ao rejeitarem o Criador simplesmente o substituem por Suas criaturas [sim, a ciência não é criação humana, mas parte da criação divina, assim como o homem]. É o que Paulo alerta: "Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos... Pois mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram mais a criatura do que o Criador, que é bendito eternamente. Amém" [Rm 1.22, 25]. Na verdade, esse trecho da Escritura explica muito bem o que acontece atualmente: o homem se entregando à pregação, ao discurso, em favor do autonomismo, e assim excluí-se o teocentrismo para, em seu lugar, erguer altares antropocêntricos.

Em suas argumentações e sofismas, os crédulos ateus utilizam-se do fato da ciência não ser neutra para contaminá-la com sua filosofia naturalista, e assim dizer que agem em neutralidade. Parecendo racionais são levianos, e forçam até a exaustão o rótulo de inconsistentes, místicos e preconceituosos aos outros crédulos [em especial, os cristãos] quando suas concepções estão viciadas exatamente pela inconsistência, pelo misticismo, preconceitos e uma metodologia completamente corrompida. Verdadeiramente os naturalistas não estão a serviço da ciência, mas servem-se dela para atingir seus objetivos; usam-na como "ambiente" para disseminar e estabelecer seus dogmas. Em sua maioria são tão fundamentalistas como os fundamentalistas que atacam e execram, pois não estão dispostos ao diálogo, mas à doutrinação mais agressiva que se possa estabelecer e exercitar, e ela começa pelo pressuposto de desqualificar e rejeitar qualquer premissa que não seja igual a "Deus não existe" [não que haja algum benefício em dialogar com eles, pois se encontram de tal maneira presos em seu círculo vicioso que a menor hipótese de liberdade intelectual parecem-lhes pior do que o ferrolho a prender-lhes pés e mãos].

Afinal, quem é mais crédulo? O crente ou o ateu?

É interessante que o "novo ateísmo"[1] proclama a liberdade do homem de todas as formas de opressão religiosa, e o faça direcionando-o explicitamente ao materialismo filosófico, como única e última opção. Ou seja, prega-se uma "libertação", mas essa libertação somente existirá se o liberto tornar-se ateu. Não é interessante? Quer dizer que para se ser livre o homem somente o será se a liberdade o levar ao âmago do sistema ateísta? E até onde será possível ir em defesa dessa liberdade? Como reagirão diante daqueles que se recusarem  a aceitá-la? Os neo-ateístas não estarão revivendo tudo aquilo que dizem combater, mas que é bem possível repetir em nome da sua fé? Ao final, o que teremos serão homens enjaulados, sem sequer uma réstia de luz.


Esse método se assemelha, ou melhor, é idêntico ao discurso marxista. Ao livrar o homem do capitalismo, fatalmente a única opção passa a ser o comunismo. O homem é livre para escolher o comunismo, e tão somente ele; e, chegando lá, estará invariavelmente aprisionado ao sistema, sem nenhuma chance de volta ou outra opção de escolha. A menos que se auto-imploda por ineficiência ou fragilidade, por sua própria inexiquilidade. Em nada é diferente da liberdade que bois e porcos têm no "corredor da morte" em direção ao matadouro. Não há escolha nem salvação. Essa é a liberdade do ateísmo e do marxismo... Mais uma mentira vergonhosa, em que o homem está preso pela suposta liberdade de querer se manter preso.


Por exemplo, Richard Dawkins[2] propõe a mesma libertação comunista: a de aprisionar o homem no ateísmo, no materialismo. E somente estando-se ali ele será, no seu conceito esdrúxulo, livre. Mas livre de quê? De algum tipo de fé? De algum tipo de sistema autoritário e despótico? De algum tipo de jogo onde as cartas estejam marcadas? E depois nos chamam de burros, de cegos. Ou querem enganar a quem além de si mesmos? Como esses homens podem conviver com tanta incoerência e ilogicidade? Somente a desonestidade intelectual como resposta. Ou seria uma fé equivocada? Ao ponto em que o "neo-ateísmo" esforça-se em excluir a história da própria História?


O modelo que desejam para a sociedade é, basicamente, o modelo marxista implementado na extinta URSS por Lenin e Stalin, na China por Mao, em Cuba por Fidel, no Camboja por Pol Pot, e em tantos outros lugares; é o mesmo projetado pelo ateísmo moderno: para aniquilar a idéia de Deus é preciso exterminar o homem, ao não permitir que ele pense, racionalize, mas tenha seus pensamentos reduzidos a um padrão de indiferença, onde todos estarão confinados a um modelo unificado de comportamento e expressão: a submissão cega. Milhões de pessoas sentiram na pele a ideologia marxista, o controle do Estado sobre a sociedade e o indivíduo; a impossibilidade de se "escapar" com vida desse sistema a não ser rendendo-se incondicionalmente; ser controlado completamente pelas forças de "libertação", ou seja, fazer do homem uma simples máquina a serviço da vontade burocrática. Isso é fruto de um irracionalismo voluntário, da falta de discernimento analítico, o aniquilamento do senso crítico, da razão, tornando homens em manadas de idiotas.


O Estado não serve, precisa ser servido em sua voracidade perversa; o Estado não admite Deus, mas quer se fazer um; o Estado não pretende ter cidadãos, mas escravos; não aceita nada menos do que o seu ideal maníaco de onipotência e onipresença. Da mesma forma, o gene egoísta é a nova desculpa para que o Estado controle, domine e subjugue o homem. E a desculpa é sempre a mesma escandalosa mentira: assim é melhor!... Mas para quem?


A loucura doentia do neo-ateísmo, que simplesmente revive conceitos experimentados e fracassados à exaustão, como se fossem novidade, é ser essencialmente aquilo que diz combater. Será que os novos ateus pretendem reescrever a História, ou ficarão apenas na idade média, em especial no período negro da inquisição? Se o falso cristianismo existe e é injusto, há contudo o verdadeiro cristianismo, o qual é justo. Mas o que dizer do marxismo? Que nada mais é do que o materialismo levado às últimas consequências? O naturalismo em sua expressão mais virulenta e odiosa? Em qual lugar houve justiça? Ele apenas promoveu e ainda promove a injustiça em sua sanha destrutiva, em sua descrença em Deus e nos valores cristãos. Ateísmo e marxismo são irmãos siameses a serviço do mesmo senhor: o diabo!


E como tal, não prescinde a fé, mas vive por ela... equivocadamente, diga-se de passagem, posta num ídolo de barro.


Nota: [1] Novo ateísmo ou antiteísmo é a oposição ativa ao teísmo, ao ponto em que não basta rejeitar a Deus, mas lutar para o extermínio de qualquer crença divina, pois, assim o mundo seria muito melhor. Ou seja, eles crêem que não crendo tudo caminhará para a perfeição, mas, além da crença em si mesmo e em suas idéias, o que têm de concreto?
[2] Clinton Richard Dawkins é o maior expoente do neo-ateísmo na atualidade. Ele conclama os ateus a "sairem do armário" e ir à luta contra as religiões e seus deuses, e militarem por um mundo melhor, onde não há espaço para as religiões. 
[3] Este texto tem como ponto de partida o "Bate-Papo com André Venâncio" e os vários comentários à postagem, e a leitura do ótimo livro "Cartas para Dawkins", da Editora Monergismo.
[4] Para o título, utilizei-me de uma expressão do filósofo e teólogo dinamarquês, considerado o pai do existencialismo, Soren Kierkegaard, "o salto da fé", o qual para ele a fé é uma aposta, uma aventura arrojada, um mergulho no desconhecido, um salto arriscado, em que a fé se opõe à razão, de tal forma que são mutuamente exclusivas. Acredito que o darwinismo é mais ou menos isso: uma fé-cega a lançar o homem na treva mais densa que a mente humana pode conceber. 
[5] Texto originalmente publicado aqui mesmo, no Kálamos, em 27/09/2010

17 novembro 2012

O pecado que Cristo não levou*

















Por Jorge Fernandes Isah


Defendi AQUI e AQUI a eternidade da natureza humana de Cristo; e a imutabilidade da natureza humana de Cristo, e do próprio homem, AQUI. Serei excomungado de vez, agora, por voltar ao tema. Antes, definirei alguns pressupostos da ortodoxia cristã quanto ao Redentor, para situar-nos:

1)Cristo é 100% Deus e 100% homem;
2)Cristo é uma única pessoa, não havendo duas mentes nem duas personalidades, mas apenas uma, o Verbo eterno.
3)As duas naturezas de Cristo não se misturam, ainda que se comuniquem.
4)Os atributos de uma natureza não são passados para outra natureza, fazendo com que Cristo se tornasse em um terceiro ser a partir da misturas de suas naturezas.
5)Cristo é eterno em sua divindade, e temporal em sua humanidade.
6)Cristo foi gerado em Maria, virgem, pelo Espírito Santo.
7)Cristo é descendente de Adão, assim como o é de Abraão e Davi.
8)Cristo não tem pecados, jamais pecou.

Posto o que a ortodoxia cristã advoga para o Redentor, pergunto: Sendo o Senhor descendente de Maria, Davi, Abraão e Adão, por que não herdou o pecado, nem participou da corrupção da raça humana? [1]

Alguns dirão que o fato de Maria não ser fecundada por um homem, mas pelo Espírito Santo, fez com que Cristo não recebesse a imputação do pecado original. Contudo, Maria também não é descendente de Adão? Ao que replicarão: o pecado está na semente do homem, não na semente da mulher, como parece indicar Gn 3.15. Em outras palavras, esse argumento afirma que a semente da mulher, isoladamente, não tem o pecado, o qual está presente na semente do homem. Como são necessárias as duas sementes, o óvulo, feminino, e o sêmen, masculino, para se ter o ovo ou zigoto [2], Cristo não herdou o pecado por não ser gerado natural mas sobrenaturalmente. Porém, fica a questão: o fato de Cristo ser gerado pelo Espírito, por si só não o tornaria essencialmente diferente do homem?

Não consigo entender porque Cristo teria de ser Ipsis litteris como homem para que sua obra na cruz fosse eficaz. Ele tinha de ser igual a nós em tudo para ser real? Mas real em qual aspecto? No aspecto imperfeito herdado de Adão? Ou na perfeição existente em Si mesmo? O fato de não ser imperfeito o torna em um homem irreal? Ou a sua humanidade perfeita faz dele o homem perfeito?

O fato de não ter pecado, nem ter a possibilidade de pecar, o torna essencialmente diferente do restante da humanidade. E dizer que, em algum aspecto, Cristo pudesse pecar ou sujeitar-se ao pecado [hipoteticamente falando], implicaria na possibilidade de Deus pecar, o que é absurdo, e se opõe frontalmente à Escritura. Entender os textos que dizem que Ele em tudo foi tentado como nós, como uma possibilidade de pecar, significa que poderia, a qualquer momento, ceder à tentação, e por si só lançaria por terra o princípio de que Cristo é o santo de Deus [Mc 1.24;Lc 4.34]. É como se quiséssemos, meio à forceps, deter uma mínima, irrisória, participação na salvação. Chamar a atenção para nós mesmos, como se algo de bom em nós existisse em Cristo. Como a dizer: "se não houvesse a parcela humana em Cristo, não haveria salvação". De certa forma, esperamos exaltar-nos, ainda que inconscientemente, na salvação que é completamente divina, e procede somente de Deus. É o que diz o profeta: "Do Senhor vem a salvação" [Jn 2.9] Como disse Arthur Pink:

"The humanity of Christ was unique. History supplies no analogy, nor can His humanity be illustrated by anything in nature. It is incomparable, not only to our fallen human nature, but also to unfallen Adam’s. The Lord Jesus was born into circumstances totally different from those in which Adam first found himself, but the sins and griefs of His people were on Him from the first. His humanity was produced neither by natural generation (as is ours), nor by special creation, as was Adam’s. The humanity of Christ was, under the immediate agency of the Holy Spirit, supernaturally "conceived" (Isa. 7:14) of the virgin. It was "prepared" of God (Heb. 10:5); yet "made of a woman" (Gal. 4:4.) [3]

Porém, o pecado de Maria persiste, a menos que se faça como os católicos e se defenda a sua não-pecabilidade. Mas a Bíblia não afirma isso, pelo contrário, diz que todos pecaram, sem distinção [Rm 3.23], e de que apenas Cristo jamais pecou [Hb 4.15]. Então, do ponto de vista bíblico, como seria possível Cristo, sendo homem, não herdar o pecado original?

Há a necessidade de se definir o pecado original, e de que forma, biblicamente, é transmitido. “Pecado original significa o pecado derivado de nossa origem, não é uma expressão bíblica (foi Agostinho quem a cunhou), mas é uma expressão que traz a uma proveitosa focalização a realidade do pecado em nosso sistema espiritual” [4]; ou ainda: "o estado e condição de pecado em que os homens nascem" [5], em outras palavras, o pecado original é algo que não somente nos distingue de Cristo, mas algo que vai muito além, impossibilitando-o de ser igual a nós. Assim, entendo que o pecado não é algo passado de pai para filho, na fusão dos elementos reprodutores do homem e da mulher. Por isso a distinção acima sobre semente não procede como argumento para Cristo não herdar o pecado. Adão, ao cair, representou a raça humana no Éden, de tal forma que todos os homens, sem exceção, caíram juntamente com ele. Todos os homens estavam em Adão [e também as mulheres, claro], o qual foi o cabeça da raça humana, de tal forma que toda a humanidade estava nele, participando do seu pecado, e assumindo a culpa advinda dele. Por isso todos caíram, e morreram juntamente com Adão: “Portanto, como por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram” [Rm 5.12]. Deus nos considera tão responsáveis por esse pecado quanto Adão, de tal forma que nascemos “mortos em ofensas e pecados” [Ef 2.1], mesmo quando ainda não cometemos efetivamente nenhum delito. Ele está em nosso coração como uma disposição natural, como algo intrínseco à natureza humana, apenas à espera para manifestar-se; algo latente que acontecerá a seu tempo, sem chance de não ocorrer, a menos que não haja tempo [como na morte de bebês prematuros].

A pergunta inicial está a reclamar uma resposta: Por que Cristo não herdou o pecado?

Há quem diga que o fato de Cristo ser Deus, anulou a herança do pecado. Como Deus não pode pecar, sendo santo e perfeito, a humanidade do Redentor tornou-se imune pela impecabilidade divina. Porém... Se as suas duas naturezas não se misturam, como é que a divina “anulou” na humana o pecado federal? Se elas não se misturam, como o pecado original não foi transmitido a Cristo? Há duas hipóteses, ao meu ver:

1) Cristo não herdou sua humanidade de Maria. Desta forma, o Espírito Santo foi quem gerou o homem Cristo, apossando-se apenas da carne, do físico doado por Maria. É o que parece dizer o anjo: “José, filho de Davi, não temas receber a Maria, tua mulher, porque o que nela está gerado é do Espírito Santo” [Mt 1.20]. E a resposta que ela recebeu ao questionar o anjo: “Como se fará isto, visto que não conheço homem algum? E, respondendo o anjo, disse-lhe: Descerá sobre ti o Espírito Santo, e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra; por isso também o Santo, que de ti há de nascer, será chamado Filho de Deus” [Lc 1.34-35].

2) Cristo sempre teve a natureza humana, como essência. O que foi gerado em Maria foi o corpo, a parte material do Senhor.

Sendo essa a minha opção predileta, primeiro, definirei o que entendo por essência, conforme o dicionário Michaelis:

Essência: sf (lat essentiaNatureza íntima das coisas; aquilo que faz que uma coisa seja o que é, ou que lhe dá a aparência dominante; aquilo que constitui a natureza de um objeto.

Compreendo que o homem é um ser completo, carne e alma [6]. Porém, entendo que a humanidade está presente na alma, usando o corpo como dispensário ou habitáculo. Desta forma, o pecado age na alma, e é ela que precisa de regeneração. Quando Adão pecou, a morte veio como conseqüência da transgressão da Lei divina, da ordem expressa de Deus: “De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente, morrerás” [Gn 2.17]. Na desobediência do homem, encontramos dois tipos de morte: a física e a espiritual. A física, fez do corpo corruptível, o qual voltará à terra, como está escrito: "No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás” [Gn 3.19]. A espiritual, causou a separação do homem de Deus; ele perdeu a comunhão com o Criador, de tal forma que foi necessário reabilitá-lo através do sacrifício de Cristo na cruz, o qual pagou os pecados do seu povo, expiando-o, justificando-o diante de Deus [Hb 2.17]. Por sermos descendentes de Adão, automaticamente fomos representados por ele no Éden, e recebemos a maldição do pecado: as duas mortes.

Cristo, ao receber os pecados do seu povo, por imputação, morreu fisicamente, pois é-lhe impossível morrer espiritualmente, visto ser Deus. Para Cristo, não há morte espiritual, apenas física. Da mesma forma, os eleitos, aqueles que foram ligados eternamente a Deus na temporalidade, pela obra de Cristo, também não morrem mais espiritualmente, mas apenas em sua corporeidade. Porque “estando nós ainda mortos em nossas ofensas, nos vivificou juntamente com Cristo (pela graça sois salvos), e nos ressuscitou juntamente com ele e nos fez assentar nos lugares celestiais, em Cristo Jesus” [Ef  2.5-6]. Ora, alguém que estava morto e foi vivificado pode morrer novamente? Especialmente se foi vivificado em Cristo? Se foi ressuscitado nEle? Se está assentado nos lugares celestiais com Ele? O que nos impede de desfrutar completamente desta obra de Deus são exatamente duas coisas: a temporalidade, estarmos no tempo, e o corpo, que precisa cumprir o castigo de morrer em sua corruptibilidade.

Alguém poderá pensar: "mas esse seu argumento não se parece com o gnosticismo dos primórdios da igreja? Quando o corpo era visto como mau?". Responderei, enfático: Não! Porque, como disse, o pecado afetou o homem por completo, mas ele age na parte imaterial primeiramente, e o corpo é tão somente o veículo pelo qual ela se manifestará. O corpo, por si só, não decide pecar. A alma é que impulsionará o corpo, controlando-o, ordenando-o para o pecado. A alma é que precisa de regeneração, de ser vivificada; é ela que se encontra morta, separada de Deus. O corpo, enquanto suas funções biológicas não cessarem, permanecerá vivo, ainda que a alma esteja morta. O inverso acontece quando a alma é vivificada por Cristo; ela permanece viva mesmo com o corpo morto. O Senhor, por algum momento, após a encarnação, permaneceu sem corpo. Do instante em que a vida expirou-se na cruz até a ressurreição, por três dias, Cristo permaneceu Deus-homem, mesmo não tendo um corpo. Se a natureza humana fosse dependente em sua existência do corpo, como essência, Cristo teria deixado de ser homem, permanecendo apenas Deus. Para, depois da ressurreição, voltar a ser Deus-homem. Porém, isso é possível? Teria Ele novamente sido gerado?

Um trecho que me chama a atenção é: “O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante. Mas não é o primeiro o espiritual, senão o natural; depois o espiritual. O primeiro homem, da terra, é terreno; o segundo homem, o Senhor, é do céu. Qual o terreno, tais são também os terrestres; e, qual o celestial, tais também os celestiais” [1Co 15.45-48]. Há clara e nitidamente uma diferença entre Adão e Cristo, o primeiro e o segundo homens. Mas, o que Paulo quer dizer com terreno e terra, celestial e céu? Os lugares de onde saíram? Ou há também uma transposição de características que são evidenciadas pelos termos? Por exemplo, o fato de Adão ser da terra revela a sua condição temporal, imperfeita, pecaminosa e finita, enquanto o fato de Cristo ser do céu representa que é santo, perfeito, eterno e infinito, mesmo em sua humanidade, do contrário, se a humanidade de Cristo for terrena, como será perfeita? Por isso, o apóstolo não se refere a Cristo como terreno, ainda que o seu corpo o fosse. 

O que me leva à conclusão de que, para que o pecado não fosse herdado por Cristo, era necessário que a sua humanidade também não fosse herança do primeiro Adão, de tal forma que o corpo permanecesse incontaminado. E a prova de que não foi contaminado é que o seu corpo não viu a corrupção. Contudo, fica a pergunta: se o corpo de Cristo não foi contaminado nem viu a corrupção, por que morreu? Não é essa a conseqüência natural do pecado? Sim. Mas o pecado que levou à morte física de Cristo não foi dEle, mas nosso; por causa dos pecados do seu povo que lhe foram imputados, sobreveio-lhe como punição a morte, sem que houvesse a corrupção da carne. Ele teve de cumprir toda a condenação que nos era devida, para nos livrar da pena que nos seria imposta, caso não se sacrificasse em nosso lugar.

Ao assumi-la, a corporeidade, fez-se como nós, sem necessariamente ser como nós. Não era preciso. Nem possível. Porque se assim fosse, não seria o Cristo, mas o Adão, a Eva, a Maria ou o Jorge. E nenhum de nós pode ser o Redentor, assim como Ele não pode ser nenhum de nós.

Nota: * O título "O Pecado que Cristo não levou" não faz referência a algum pecado que Cristo tenha praticado, mas ao objetivo do texto, explicar porque Ele não herdou em sua natureza humana o pecado.
[1] A genealogia de Cristo, segundo Lucas, vai até Adão [Lc 3.38].
[2] Zigoto é denominado ovo e resulta da união de dois gametas: óvulo e espermatozóide. É uma célula totipotente, ou seja, é capaz de guardar as características genéticas dos progenitores, podendo gerar todas as linhagens celulares do organismo adulto [Fonte: Wikipédia]
[3] Gleanings in the Godhead - 29.The Humanity of Christ de Arthur Pink. Recebi este texto de um querido irmão e amigo, que coincidentemente enviou-o quando estava revisando o meu post, a tempo de incluí-lo. Uma tradução livre e parcial seria: "A humanidade de Cristo foi singular, a história não fornece analogias e nem tampouco sua humanidade pode ser ilustrada por nada na natureza. É incomparável, não somente à nossa natureza caída como também à natureza caída de Adão. A humanidade dEle esteve sob a imediata agência do Espírito Santo".
[4] Teologia Concisa, J. I. Packer, Ed. Cultura Cristã, pg 78-80. Texto disponível no Monergismo.
[5] Teologia Sistemática, Louis Berkhof, Ed. Cultura Cristã, pg 227.
[6] A minha definição de "Alma" compreende sempre a mente e o espírito, como suas partes integrantes.
[7] Texto publicado originalmente aqui mesmo, no Kálamos, em 30/08/2010, sem que houvesse qualquer revisão ao texto original, inclusive em relação à ortografia.
[8] Para quem não ler os "registros", transcrevo o que João Calvino disse em suas Institutas, em um dos últimos comentários que escrevi nesta postagem:
"Pois se temos fé nas Escrituras que eloqüentemente proclamam que por fim em Cristo se revelou plenamente a graça e a humanidade do Senhor [Tt 2.13], derramada a opulência de sua misericórdia [2Tm 1.9; Tt 3.4], consumada a reconciliação de Deus e dos homens [2Co 5.18], não nutramos dúvida de que muito mais benigna se exibe diante de nós a clemência do Pai celestial, a qual não foi cortadanem apoucada".

07 novembro 2012

O dia em que Cristo me fez













Por Jorge Fernandes Isah  

 Hoje comemoro a data mais importante da minha vida. Não foi o meu nascimento na maternidade, nem o meu casamento, nem a vinda dos meus filhos, formatura ou qualquer outro evento que marcou a vida. Não que essas coisas sejam sem importância, não é isso. Elas são fundamentais, e devemos comemorá-las na proporção da felicidade e alegria com a qual Deus nos presenteou-as, como dádivas, como prova da sua bondade para conosco. Mas a prova maior do seu amor está em que "Cristo morreu por nós, sendo nós ainda pecadores" [Rm 5.8]

E foi, exatos seis anos, no dia 12.10.2004, que Cristo me resgatou no tempo, convertendo-me a si. Sei que a minha salvação é eterna, determinada por Deus antes da fundação do mundo, escolhido por ele para sempre, mas apenas tornou-se minha conhecida naquela data. Parte de como era a minha vida e os meus pensamentos estão registrados no texto entitulado "A Morte da Morte", o qual pode ser lido aqui mesmo no Kálamos. 

Não vou entrar nos detalhes de como eu era, e nem é preciso. A Bíblia claramente assevera que, como todos os homens, eu não era justo, não entendia e nem buscava a Deus. Estava extraviado, e me fazia inútil; não fazia o bem. Minha garganta era um sepulcro aberto. Minha língua tratava enganosamente; peçonha de áspides estava debaixo dos meus lábios. A boca cheia de maldição e amargura. Os pés caminhando ligeiros para derramar sangue. Em meus caminhos havia destruição e miséria; e não conhecia o caminho da paz; nem havia temor de Deus diante dos meus olhos [Rm 3.10-18] 

Mesmo não realizando alguns desses males, aos quais o apóstolo Paulo se referiu e os profetas também relataram, todos os pecados estavam possíveis diante de mim, e somente não foram concretizados porque Deus não me deixou ser tudo o que eu poderia ser como pecador. Ele me poupou de levar à cabo toda a loucura e impiedade que estavam dispostas em meu coração, latentes, a esperar o momento adequado para se manifestarem; e não ser ainda pior do que já era.  Como o pecado nos cega, eu estava cego, e me considerava o único dos homens que valia alguma coisa; e desprezava todos, sem exceção, e aqui posso incluir até mesmo a minha família. Basta alguns minutos de bate-papo com a minha esposa para se perceber o nível de corrupção em que minha alma se encontrava. Eu era um tolo considerando-me sábio. Apelava para uma sanidade impregnada de loucura. Para uma saúde doentia. Uma perfeição mergulhada na imperfeição; atolada na corrupção mais que possível. E eu não queria ver. Não podia ver. O pecado me impedia de olhar para mim mesmo e encarar a realidade. Por isso, ele criava ondas de ilusão e delirio que me mantinham preso a uma imagem desconstruída e mal-formada, a manter preservada a impiedade naturalmente disforme, e a formar cada vez mais o espectro do homem caído, cheio de si mesmo, em minha própria insuficiência. Alguém poderá dizer: "mas que exagero! Ninguém é assim tão estúpido e tão mal". Mas pode acreditar, até o momento em que Senhor me restaurou, não há palavras suficiente para descrever o estado de corrupção, inaptidão e loucura da minha alma. 

Havia passado a noite em claro e, por alguns dias, esta foi a minha rotina. Dormia duas, três horas por noite, intermitentes e atormentadas. Sem saber ao certo o que estava acontecendo, colocará-me contra tudo e todos. Havia apenas eu, e mais ninguém. Interessante que não havia problemas na minha vida, nada que justificasse o estado angustiante em que me encontrava. Não tinha problemas financeiros além do normal: pequenas dívidas a serem pagas parceladamente. Não havia problemas de saúde na família. Ou algo de grave e insustentável. O problema era eu e somente meu. Nutria uma paranóia que colocava todos contra mim, e me defendia de nenhum ataque, odiando-os e jurando vingança. Até que, naquela noite, uma idéia desesperadora foi-se formando e, passadas algumas horas, já estava decidido; havia encontrado a solução final. E qual era? Abandonar tudo e todos, fugir, sem deixar rastros e ir longe o suficiente para me livrar da dor que me consumia. Se eles eram o problema, nada mais natural do que afastá-los. 

À medida que o tempo passava, e o silêncio era entrecortado por um veículo ou outro cruzando a rua, por uma voz ou outra solitária, eu estava cada vez mais decidido de que aquela era a solução. Estava na sala, a tv ligada, as cores de um filme se misturando à escuridão da mente. Foi quando vi aquela pequena Bíblia católica[1]. Dez anos antes, minha esposa me presenteara com aquele exemplar, o qual abri e li apenas a dedicatória. Fechei-a novamente; e, em Fevereiro ou Março de 2004, o meu desespero e a falta de opções levou-me a abri-la. Comecei pelos Evangelhos de Mateus e João. Não lia diariamente, as vezes passava até semanas sem ler. Nos piores dias, lia quase incessante. De alguma forma, eu sabia que ali estava a solução, mas não queria aceitá-la. De alguma forma, Deus me levou a ler a sua palavra, mesmo contra a minha vontade. A última coisa que eu poderia imaginar seria a volta ao evangelicalismo, do qual fiz parte na adolescência, por dois anos. Durante mais de vinte, eu nutria um ódio e uma aversão por crentes tão grande que nada mais suplantava esse desprezo por eles, suas igrejas e seus cultos escandalosos. Se alguém vinha falar de Jesus, eu o repelia imediatamente. Se queriam me entregar um folheto, eu recusava com cara de poucos amigos. Era grosseiro, desaforado e rude ao extremo no trato com qualquer que se aproximasse com o intuito de apresentar-me o Evangelho. Fugia de qualquer contato, e tinha-os como inimigos declarados. 

Aprouve a Deus, portanto, utilizar a sua palavra, apenas a sua palavra, através daquela pequena Bíblia, para operar em mim o novo-nascimento. E foi o que aconteceu. Durante meses, ela foi a única ligação que tive com Deus. E a única que admiti ter. Naquela madrugada, ao vê-la, peguei-a, e abri aleatoriamente. Em Gálatas 2. Não me lembro ao certo, mas acho que comecei a ler no verso 16. E quando estava no verso 20, aconteceu algo que não consigo explicar. Foi como se uma força poderosa me lançasse ao chão, me pusesse de joelhos, a cabeça curvada ao peito, e um choro convulsivo a derramar lágrimas no rosto. Em minha mente havia apenas arrependimento por toda uma vida que desagradara a Deus. Por uma vida jogada fora, de inimizade, de rebeldia. Em que pequei, e pequei somente contra Ti; e meus pecados estavam diante de mim [Sl 51.3]. Eu dizia ao meu Senhor: Perdoa-me! Perdoa-me! Por todos os meus pecados; por tê-lo desprezado e rejeitado. Perdoa-me! Reconhecendo-o como Senhor e Salvador da minha vida. 

Chorava, por mais ou menos meia-hora [foi o que me pareceu], não parei de chorar e de clamar o seu perdão. Subitamente, assim como a primeira lágrima, veio-me uma paz que não sabia explicar. Senti-me aliviado, e toda aquela dor passou e nem me lembrava mais dela. Havia uma segurança, uma certeza de que minha vida estava mudada, e de que seria outro homem. Como disse, não me veio nada claramente explicado, mas eu sabia, estava acontecendo. Cristo me convertera, se apiedara de mim, e mesmo na minha completa ignorância, mesmo que eu não lhe tivesse pedido nada, ele fez; e, naquele exato momento, pude sentir o seu amor. 

Enquanto isso, lá fora, uma profusão de foguetes explodiam em homenagem à santa, uma imagem de barro, feita por mãos humanas, mas eu sabia que mais do que isso, aqueles foguetes revelavam a alegria nos céus por um pecador que se arrependia [Lc 15.7]. E, por incrível que pareça, eu tinha certeza de que todo aquele barulho, uma overdose sonora, era para que me fosse distinguido, impregnado aos tímpanos, entranhado na mente, que Cristo havia morrido por mim, e de que agora e para sempre, eu seria seu e de mais ninguém. Levantei-me. Sentei-me. Olhei o relógio. Seis e vinte. Peguei a pequena Bíblia, e recomecei a ler Gálatas. Desde o princípio. Quando novamente li o verso 2.20, não pude conter as lágrimas e, chorando convulsivamente, orei ao Senhor, fazendo o meu primeiro pedido de que, assim como Paulo, um dia pudesse dizer: "já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim; e a vida que agora vivo na carne, vivo-a pela fé do Filho de Deus, o qual me amou, e se entregou a si mesmo por mim". E aquela afirmação do apóstolo eu sabia verdadeira e possível para Deus, que a tornaria verdadeira e possível na minha vida, ainda que não entendesse como; mas estava impregnado da certeza de que, um dia, eu seria assim como ele é. 

Dias depois, minha filha, então adolescente, conversava com minha esposa e meu filho, e disse: "dormi com um pai e acordei com outro". Tive confirmado o que já sabia, que a promessa em Gálatas estava se cumprindo, se cumpriria, pois Deus predestinou-nos a ser conforme a imagem do seu Filho, "a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos" [Rm 8.29]. Não para a nossa glória. Mas para a glória de Deus, que nos gerou como a filhos amados. Neste momento, em que termino este texto, ouve-se ainda o foguetório; a espocar insensatos pelos homens que detém a verdade em injustiça. Então, esqueço-os, para agradecê-lo por ser-lhe servo e tê-lo por Senhor; para louvor da glória de sua graça, pela qual me fez agradável a si no Amado [Ef 1.6]. 

"Em louvor, e honra, e glória, na revelação de Jesus Cristo" [1Pe 1.7].

Nota: [1] Quando digo Bíblia católica, refiro-me ao exemplar impresso e publicado pela Edições Loyola; que à exceção dos livros e acréscimos apócrifos, é a mesma santa palavra de Deus.
[2] Publicado originalmente em 12/10/2010, aqui mesmo no Kálamos