14 maio 2011

Reprovação, Vontade e Hipercalvinismo
















Por Jorge Fernandes Isah

Postarei outra conversa por aqui. Aconteceu com o Tiago Knox, do Internautas Cristãos, na qual abordamos vários assuntos. Especificamente, pincei este trecho que trata, como o título diz, de pontos complexos e polêmicos da doutrina cristã. Tudo começou com uma questão levantada pelo Fernando Frezza, do Barrabás Livre, sobre versículos  em Ezequiel: "Jorge eu estava lendo Ez 18:23-24 e queria saber sua opinião sobre 'Deus não querer a morte do ímpio' e como assimilar isso à dupla predestinação...". Depois de pensar um pouco, conversando com o Tiago, transferi-lhe a pergunta. Daí em diante, outros conceitos foram se formando enquanto o diálogo progredia.

Sei que muitos acharão que estamos caçando "pêlo em ovo"; e, especialmente, a minha posição contrária à doutrina da "dupla vontade de Deus" exporá o meu telhado de vidro às pedras. Ainda assim, acredito que valerá a pena, como proposta de reflexão, mesmo que eu saia em pedaços.

Agradeço ao Tiago com o qual tenho sempre bons papos. Nem sempre concordamos, mas a paz reina entre nós, por Cristo que nos une e fortalece. A ele, meu agradecimento por permitir a reprodução da nossa conversa.

Vamos a ela!

BATE-PAPO COM TIAGO KNOX

Eu: Deixe-me fazer uma pergunta teológica: como você vê a questão da dupla reprovação com o verso de Ez 18.23?

Tiago Knox: Dupla reprovação? Nunca ouvi esse termo rsrs... É jorgianismo?... Ez 18.23: "Desejaria eu, de qualquer maneira, a morte do ímpio? Diz o Senhor JEOVÁ; não desejo, antes, que se converta dos seus caminhos e viva?"... Aí está falando da vontade preceptiva [1].

Eu: Humm... Foi mal... Eu quis dizer dupla predestinação...

Tiago Knox: E mesmo na vontade decretiva [2], não penso que Deus tenha prazer na condenação dos ímpios. Os eleitos também são ímpios, pode estar se referindo a eles.

Eu: É uma das coisas que pensei...

Tiago Knox: Mas acho meio forçado interpretar esses textos como se referindo só aos eleitos.

Eu: Ímpio necessariamente não é o réprobo... O reprovado eternamente, quero dizer. Mas ele está a falar com a nação de Israel.

Tiago Knox: É o mesmo caso em 1 Timoteo 2:4; que deseja que todos os homens sejam salvos e cheguem ao pleno conhecimento da verdade.

Eu: Se não for nesse sentido a eleição e predestinação ficam desconectadas de Deus. Como se ele quisesse algo e não quisesse ao mesmo tempo.

Tiago Knox: Há muita oposição entre as vontades decretiva e preceptiva de Deus.

Eu: Aí acho mais fácil, porque a carta é dirigida à igreja, ainda que seja na pessoa de Timóteo... Deus não é esquizofrênico. Ele é imutável em sua vontade.

Tiago Knox: Por exemplo, Deus proíbe o casamento misto, mas Ele fez Sansão casar com uma filistéia... A vontade preceptiva proibe, mas a decretiva desejou... Juízes 14:4: "Mas seu pai e sua mãe não sabiam que isto vinha do SENHOR, pois este procurava ocasião contra os filisteus; porquanto, naquele tempo, os filistes dominavam sobre Israel".

Eu: Humm... Tenho dificuldade com essa visão. Ainda que ela explique, não me parece lógica. Sei que Pink e outros reformados gostavam muito de usar esse argumento de duas vontades, mas sei não... Acontece que a vontade preceptiva é proclamada para o homem, aquela que podemos conhecer, enquanto a decretiva, tirando as profecias, somente saberemos com o fato se desenrolando no tempo... Parece-me que a preceptiva está na dependência da decretiva; portanto Deus não tem duas vontades, mas uma vontade, e a vontade preceptiva faz parte dela, da decretiva.

Tiago Knox: Mas como tu explicas quando Deus decreta algo que fere Sua Lei?

Eu: Bem, seria a mesma pergunta quanto ao mal ou ao pecado. Eles ferem a Lei de Deus mas foram decretados. Fazem parte da sua vontade.

Tiago Knox: Então... É como se, por um lado, Deus desejasse que o pecado não ocorresse, e por outro, Ele deseja que ocorra... Ele deseja que todos pecadores se arrependam e creiam.... Mas também deseja que os réprobos não se arrependam, e também não lhes concede fé; isso faria de Deus um esquizofrênico?... Um arminiano diria que sim.

Eu: Entendo assim: a vontade de Deus é que o seu povo seja reunido em torno do seu Filho Amado, e o restante são meios pelos quais isso acontecerá no decorrer da história... Inclusive o mal, o pecado, as transgressões, etc.

Tiago Knox: A gente falando em Bíblia... Acabei de lembrar que hoje é meu dia de postar no Leitores da Bíblia...

Eu: Deus estabelece um princípio para o seu povo; que o seu povo terá na eternidade através do sacrifício de Cristo; os demais eventos revelarão que todos os outros estão fora desse plano. Assim Deus revelará o seu amor para com o seu povo, separando-o e usando todo o restante para que o seu amor fique evidente, não pelo mundo, mas pelos eleitos... Vai lá, e posta!

Tiago Knox: Já estou postando... Isso aí é do ponto de vista do decreto eterno e secreto de Deus, mas o Evangelho é anunciado a todos os homens e Deus quer e ordena que todos se arrependam.

Eu: Não. Está revelado na Bíblia que esse é o seu objetivo. Mas apenas os capacitados por Deus se arrependerão.

Tiago Knox: Sim, revelado o plano, mas não a forma como isso se processa.

Eu: Logo, Deus não quer que os demais se arrependam... Sim, o decreto se desenrola no tempo e na história. Somente tomamos conhecimento dele quando está em execução.

Tiago Knox: Veja: Atos 17:30: "Ora, não levou Deus em conta os tempos da ignorância; agora, porém, notifica aos homens que todos, em toda parte, se arrependam"... Textos como esse podem ser lidos como se tratassem somente dos eleitos?

Eu: É a instrumentalidade humana. Não há como ser de outro jeito. Não há chance do não-eleito se arrepender.

Tiago Knox: Isso sabemos.

Eu: Pedro prega assim porque não sabe quem é ou não eleito.

Tiago Knox: Mas o ponto é: somente aos eleitos é ordenado o arrependimento?

Eu: Precisa incluir todos no chamado ao arrependimento... Não. O chamado é para todos, mas apenas os eleitos ouvirão e responderão positivamente. Pedro não poderia dizer: "os eleitos que estão aqui, se arrependam; e os demais, podem ir embora...".

Tiago Knox: Se ele fosse hipercalvinista, ele diria... rsrs...

Eu: Muitos que ouviram aquela mensagem se converteram no momento, e muitos outros ouviram-na e se arrependeram depois; e ainda hoje Deus usa a mesma pregação de Pedro para converter a muitos... É, se ele fosse... [rsrs].

Tiago Knox: Responde: Deus queria ou não queria que Sansão casasse com uma filistéia?

Eu: Já imaginou se a coisa é colocada da forma de eleito e não eleito? Haveria uma exclusividade no próprio chamado, que já é exclusivo de certa forma, pois apenas os que se arrependerem estarão entre o povo de Deus. Mas quando se diz todos, mesmo quem não for eleito está sendo convidado, e recusará, ficando inescusável diante de Deus... Já imaginou o evangelista na caça por eleitos? Seria algo neurótico demais... Um caçador de eleitos [rsrs]... Quanto à sua pergunta, sim. Deus queria que Sansão se casasse com a filistéia, senão ele não se casaria com ela. A ordem de Deus para Sansão ou para Adão foi a mesma: não faça! Mas eles fizeram, cumprindo o decreto divino. E Deus quis que assim fosse. Que eles desobedecessem.

Tiago Knox: Mas a Lei de Deus proibindo o casamento misto não é Sua vontade, também?

Eu: A lei e ordem vêm para revelar a desobediência e a desordem. Humm... Acho que faz parte da vontade... Como uma sub-vontade... Uma vontade inferior, sujeita à vontade superior. O mesmo caso seria Deus ordenar que o homem não matasse, pois se matar, pagaria com a própria vida; mas, contudo, ele ordenou a morte de milhares, como no caso dos Cananeus.

Tiago Knox: Mas quando Deus ordena, Sua vontade preceptiva está mudando também.

Eu: O homem deve fazer isso como norma, e a norma é dada como critério de obediência, mas também de desobediência. Para, no final, todos, sem exceção, serem achados desobedientes... Apenas Cristo cumpriu a lei e obedeceu. Para que ficasse revelada a sua natureza perfeita, em contraste com a nossa natureza imperfeita... Não. A ordem ou preceito faz parte do decreto. É apenas mais um elemento dentro dele.

Tiago Knox: A vontade preceptiva de Deus se altera em situações e com pessoas diversas... Por padrão, matar é pecado, mas em alguns casos ele ordena matar.

Eu: Ela é parte do decreto. Está sujeita a ele. Deus ordena que os homens se arrependam, mas nem todos se arrependerão, porque Deus não os capacitou para tal; assim a vontade final de Deus é que eles não se arrependessem, e desobedecessem sua ordem. Tanto a ordem como a desobediência à ordem fazem parte do decreto, da sua vontade soberana.

Tiago Knox: Sim... Mas a ordem para que se arrependam não pode ser chamada de vontade de Deus?

Eu: O único problema nesse esquema é que algumas vezes Deus estará sujeito ao seu próprio decreto. No que não concordo. Discordando de mim mesmo [rsrs].

Tiago Knox: Qual esquema? O seu?

Eu: É.

Tiago Knox: Humm... É errado dizer que Deus DESEJA que todos os homens sejam salvos?

Eu: Não, do ponto de vista da proclamação do Evangelho. Mas é errado ACHAR que ele quer que todos se arrependam. Pois ele não quer, tanto não quer, que endurece muitos a não querer o arrependimento e a manterem-se rebeldes.

Tiago Knox: Eu acho que o seu erro é não diferenciar a vontade preceptiva [revelada] da vontade decretiva [oculta].

Eu: Não sei. Estou pensando tudo isso enquanto converso com você... Nunca havia pensado nessa coisa desse jeito, ou mesmo de outro jeito.

Tiago Knox: A morte de Cristo...

Eu: E é muita coisa para se pensar...

Tiago Knox: ... Cada ofensa que Ele sofreu era da vontade de Deus ou não?... A minha resposta é sim e não.

Eu: Sim. Pedro diz isso em Atos 4.27-28: "Porque verdadeiramente contra o teu Santo Filho Jesus, que tu ungiste, se ajuntaram, não só Herodes, mas Pôncio Pilatos, com os gentios e os povos de Israel; para fazerem tudo o que a tua mão [a mão de Deus] e o teu conselho [o conselho de Deus] tinham anteriormente determinado que se havia de fazer". E o profeta diz o mesmo  em Isaías 53.10: "Todavia, ao Senhor agradou moê-lo [Jesus Cristo], fazendo-o enfermar; quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua posteridade, prolongará os seus dias; e o bom prazer do Senhor prosperará na sua mão".

Tiago Knox: Mas isso do ponto de vista do decreto, dentro do plano da salvação.

Eu: Não há outra vontade soberana a não ser a decretiva.

Tiago Knox: Porém, não podemos achar que Deus tenha prazer na injustiça.

Eu: Olha, ele não tem prazer na injustiça... E o fato dele querer, decretá-la, não quer dizer que tem prazer. No seu plano perfeito era o que se devia fazer perfeitamente. Não havia outra opção mais perfeita, nem mesmo opções menos perfeitas; para que a perfeição do Filho fosse proclamada, ficasse evidente, e o Pai fosse glorificado.

Tiago Knox: Sim; dentro do decreto, Deus desejou a injustiça; mas a injustiça é contra a Sua lei, portanto, Ele não quer a injustiça... Parece uma contradição, mas de fato não é.

Eu: "Desejou" é forte. Não digo que seja isso. Ele apenas decretou. O decreto tem coisas boas e más, mas ele, em si mesmo, é santo e perfeito, pois glorifica ao Deus santo e perfeito.

Tiago Knox: Podemos dizer que, muitas vezes, dentro do decreto, Ele deseja que façam o contrário do que Ele deseja... Compreende?... São duas vontades. Ele decreta que violem a Sua lei.

Eu: Compreendo. Acho apenas que o termo "desejo" não deve ser empregado. Ainda que Deus queira. É como o Pai que não deseja punir o filho, mas tem de puni-lo para o próprio bem do filho. Ele o ama e não quer que ele se perca, por isso o castiga, mesmo não querendo castigá-lo; ele o faz pela necessidade insuperável... No caso dos eventos maus, Deus os decreta, mas não os deseja, porém eles cumprem o propósito maior de revelá-lo e a sua vontade primeira: separar um povo para si por meio de Cristo... Por desejo quero dizer ter prazer, se deleitar, etc. Mas se desejo é querer, isso ele quer.

Tiago Knox: Não entendo assim. Entendo que, no caso das más atitudes das criaturas Ele está desejando [decretando] que elas façam o contrário do que Ele deseja [ordena em Sua lei]. No caso do anúncio do Evangelho aos réprobos a lógica é a mesma, mas ao contrário, Deus deseja [ordena em Sua Lei] que eles obedeçam, mas eles rejeitam, porque Ele deseja [decreta] a rejeição deles... Muito confuso?! 
Eu: É, um pouco [rsrs]... Assim Deus tem duas vontades?

Tiago Knox: Sim.

Eu: Mas isso não faria de Deus alguém inconstante, logo, mutável? Pois qual vontade veio primeiro? E se veio, por que veio a outra?

Tiago Knox: O decreto veio primeiro, e o decreto é imutável.

Eu: Só consigo entender como a vontade preceptiva submissa em tudo à decretiva, de tal forma que a decretiva é a vontade de Deus, a preceptiva é "componente' daquela... Uma ordem para que as coisas sejam separadas... Então, o decreto é a vontade divina.

Tiago Knox: Mas a Lei também é.

Eu: A Lei é parte do decreto, também.

Tiago Knox: Mas a Lei é uma vontade ou não?

Eu: É claro que é, mas é também um componente na relação do Criador com a criação. Porém, Deus não quer que todos sigam a Lei, pois do contrário ninguém a desobedeceria; logo Deus quer que nem todos a sigam; uns sim, outros não. Mas a ordem é geral, para todos os homens.

Tiago Knox: Novamente não está diferenciando a Lei do Decreto? Se Ele ordena que todos obedeçam, Ele deseja que todos obedeçam.

Eu: A Lei está no Decreto... É componente dele.

Tiago Knox: O fato dEle desejar [ordenar] que todos obedeçam não resulta em todos obedecerem, pois o que determinará quem vai ou não obedecer é o Decreto.

Eu: Desejar é querer. É diferente de ordenar. Eu ordeno que você não toque no meu sanduíche, mas enquanto dou as costas, você vai lá e come. Eu poderia tê-lo trazido comigo, ou prendido você no banheiro enquanto estivesse longe do sanduíche. Poderia haver meios de eu evitar que você desobedecesse, mas eu o deixei lá, sozinho; o sanduíche olhando para você e vice-versa, e você não resistiu, e comeu. Eu não quis que comesse, mas você comeu... É claro que estou falando de uma relação homem x homem, muito diferente de Deus x homem.

Tiago Knox: se você ordena que eu não toque no sanduiche, significa que você não quer que eu toque, né!

Eu: No caso de Deus, ele quis que houvesse desobediência. Ao decretá-la. Ele não pode querer que eu obedeça e desobedeça ao mesmo tempo.

Tiago Knox: Pode sim.. rsrs... Pois não é no mesmo sentido.

Eu: Então você há de convir que os arminianos estão corretos, Deus pode ser resistido pelo homem contra a vontade dele.

Tiago Knox: Sim, contra a Sua vontade preceptiva sim, mas não contra a Sua vontade decretiva.

Eu: Sabe, o meu problema é fazer essa diferenciação, pois se Deus tem duas vontades, qual delas prevalece como vontade? Se eu quero algo e não quero, o que quero? Ou o que não quero?

Tiago Knox: Vamos simplificar... Lei: o que pode e o que não pode. Decreto: vai obedecer ou não vai... Deus ordenou que Adão não comesse do fruto da árvore do bem e do mal; mas Deus decretou que Adão comesse. Suas duas vontades em oposição uma a outra.

Eu: A ordem não pode ser vontade. Pois Deus quis que Adão desobedecesse. A ordem é um componente do decreto sem o qual Adão não poderia desobedecer...

Tiago Knox: Bom, pra mim a ordem é vontade.

Eu: ... E assim não curmprir a vontade de Deus.

Tiago Knox: É da vontade de Deus que os homens não mintam, mas Ele decreta que eles mintam.

Eu: Penso o seguinte: Deus decretou como Lei que o homem não minta. Mas Deus decretou que alguns homens não mintam e outros mintam. E decretou que apenas um homem jamais mentiria, Cristo. No fundo, tudo é para a glória de Deus em Cristo, o homem perfeito, aquele pelo qual Deus seria conhecido, louvado, bendito, exaltado... A vontade de Deus é que homens mintam e outros não mintam. E que Cristo jamais mentiria. Se ele não quisesse que nenhum homem mentisse, nenhum mentiria.

Tiago Knox: É, a nossa dificuldade está em definir o que é vontade. Eu chamo a Lei de vontade, uma vontade diferente do Decreto.

Eu: Qual T.S. trata desse assunto? Não me lembro de ter lido nada disso no Berkhof... ou no Cheung... Bem, não lembro de muita coisa que li mesmo...

Tiago Knox: O Cheung fala muito disso.

Eu: Vou pegar a T.S. dele e dar uma lida... Não me lembro... realmente.

Tiago Knox: Sansão e sua fé, eu acho que é um bom livro sobre o assunto... Eu acho, pois não lembro em quais livros ele trata das duas vontades. Mas sei que é em mais de um... Tem alguns textos no Monergismo que tratam do assunto:

Eu: Vou ler, e nos falamos... Estou lendo o texto do Sam Storms e parece que a vontade preceptiva é uma ordem mesmo... Que a vontade divina é a decretiva.

Tiago Knox: Sim, mas é uma vontade... rsrs. Por isso se chama "vontade" preceptiva.

Eu: O termo me parece inadequado. Ele usa a expressão "vontade de preceito ou ordem"... Ordenar não é desejar. Posso ordenar que se cumpra algo que eu não quero, mas é necessário. Seja por força do cargo, missão ou para o bem próprio ou da outra pessoa.

Tiago Knox: Mas quando Deus ordena, é porque Ele quer

Eu: Sim. Veja bem, a ordem em si não é o seu querer, pois ele quererá que uns obedeçam e outros não. Ela cumpre um plano maior que é o decreto. Ele é a vontade de Deus plena!... Mas vou ruminar em tudo isso, e depois continuamos o papo.

Tiago Knox: A palavra "vontade" está sendo a tua pedra de tropeço... rsrs. No fundo, nós concordamos quanto ao conceito, só diferimos em relação aos termos.

Eu: Pode ser. Não gosto do termo vontade para designar uma ordem, necessariamente... Isso faria de Deus bipolar...

Tiago Knox: O "problema" é que a própria Bíblia usa o termo vontade [ou desejo] para as duas vontades.

Eu: ... Ou com duas personalidades. Uma que quer, e a outra que não quer... Chego a dar razão aos arminianos [rsrs].

Tiago Knox: huahuahua!... Daqui a pouco você abandona as fileiras calvinistas... rsrs.

Eu: Ou pulo para as hiper...

Tiago Knox: Pois é; no fundo é o mesmo erro do arminianismo, só que ao contrário.

Eu: Mas a nossa discussão já está acirrada demais para pôr mais lenha na fogueira [rsrs].

Tiago Knox: Hehe... É o mesmo erro lógico. O arminiano pensa assim: Se Deus ordena que evangelizemos todos, então todos podem ser salvos.

Eu: Não sei... O compatibilismo tem um erro lógico imenso, e não é hiper.

Tiago Knox: O hiper pensa do mesmo jeito: Se Deus só vai salvar os eleitos, só precisamos pregar para eles.

Eu: Eles só esqueceram um detalhe: como saber quem é ou não!... Coisa pequena, de somenos importância.

Tiago Knox: Tanto os arminianos quanto os hiper não entendem a diferença e a simultaneidade das duas vontades de Deus... Os hiper devem ter um tipo de eleitômetro... rsrs.

Eu: Opa! Quer dizer que quem não aceita as duas vontades de Deus é arminiano ou hipercalvinista?... Cruz-credo!... Quanto à pregar o Evangelho somente para quem "aparenta" ser eleito, isso é coisa de tonto! Nesse aspecto, não conheço nenhum cristão que seja um caçador-de-eleitos [rsrs]... por mais hiper que ele "pareça" ser.

Tiago Knox: O hipercalvinismo acabou faz tempo. Desconheço alguma denominação que ainda tenha o hipercalvinismo como doutrina oficial.

Eu: Vou restaurar o movimento, sem a exclusividade do evangelismo para eleitos... seria o "neohiper"... [rsrs].

Tiago Knox: Meu irmão, preciso ir agora.

Eu: Também vou. Passou da hora. Obrigado pelo papo.

Tiago Knox: Abraço.

Notas: [1] Vontade Preceptiva - Representada pelas suas prescrições, determinações e mandamentos. Ou seja, são os padrões de conduta e encaminhamentos de vida, revelados por Deus em sua palavra.
[2] Vontade decretiva - Representada pelos seus decretos. A providência divina é a aplicação dessa vontade no desenrolar da história e de nossas vidas. 

03 maio 2011

A alegoria da razão

Ouça este artigo:




TEÍSMO-EVOLUCIONISTA: A AUTOCONTRADIÇÃO










Por Jorge Fernandes Isah*

De todos os absurdos que muitos "cristãos" acreditam e cometem um deles, sem dúvida, tem uma pretensa áurea intelectual mas que na verdade é repugnante à razão, algo que vai além do disparate, como uma psicopatia. Para explicar melhor o que estou a dizer, precisamos entender alguns termos, ainda que todos os saibam, e eu os descreva resumidamente, nos aspectos em que informam o suficiente para o desenrolar deste texto:

1) Evolucionismo ou Darwinismo - termo usado para definir o surgimento da vida através de causas aleatórias, despropositadas e a partir de matéria pré-existente. Alega ser científica mas tem seus fundamentos no materialismo filosófico. Basicamente se contrapõe ao Criacionismo.

2) Criacionismo - Teoria que afirma ser a vida criada por Deus a partir do nada, ex-nihilo, com propósito definido [interessa-me apenas o relato bíblico].

3) Teísmo-Evolucionista - Afirma ser a vida criada por Deus mas através de processos evolucionistas.

O problema aqui resume-se a solucionar a seguinte equação: como o teísta-evolucionista consegue conciliar a criação a partir de um Deus inteligente, sábio, pessoal, proposional e que não utilizou matéria pré-existente com o evolucionismo que afirma ser tudo obra do simples acaso?

Primeiro, há de se entender que o evolucionista pressupõe a cosmologia, visto seus pressupostos partirem da idéia de que havia material pré-existente do qual se originou todo o processo evolutivo, visto não ser possível evoluir do nada, já que do nada não provém coisa alguma. É necessário que os elementos primordiais para desencadear todo o processo existissem [interessante que a palavra processo indica mudanças sistemáticas numa direção definida, visando determinado resultado, o que os evolucionistas se recusam a crer, apelando sempre para a indeterminação], do contrário, a vida evoluiria do quê?

Desta forma a teoria da evolução pressupõe a cosmologia, e ambas pressupõem a epistemologia, ou o conhecimento. Logo a epistemologia é anterior a ambas, derivando ou originando-as.

Tanto a biologia como a cosmologia não podem existir num vácuo, pois é impossível concordar com a idéia de que o universo existe pura e simplesmente para então discutir biologia. Primeiro é preciso o conhecimento para se formular uma teoria cosmológica ou biológica. Se não há conhecimento de como surgiu o universo, é impossível que a biologia seja verdadeira, pois "todo raciocínio científico é formalmente falacioso e não pode alcançar a certeza dedutiva" [1].

Como a ciência não tem esse conhecimento, a sua base é falsa, e nem mesmo se deve discutir sobre uma base falsa, pois tornará todo o debate em algo que não se pode suportar ou sustentar-se além do seu próprio mundo imaginário, tornando a teoria da evolução uma fantasia tanto quanto o seu universo.

Como a epistemologia cristã nos dá respostas claras de que o universo foi criado por Deus a partir do nada, então, de posse do conhecimento verdadeiro, é-se possível construir uma cosmologia e uma biologia cristãs igualmente verdadeiras e justificáveis.

Mas o dilema do teísmo-evolucionista, ainda que tente resolver a questão colocando Deus como o Criador, mesmo que ele seja incompetente e preguiçoso, pois deixou a cargo de forças naturais e do acaso concluir a sua obra, não será suficiente para afastá-lo do local aparentemente seguro mas violado pela flagrante contradição. 
O texto bíblico é claro em afirmar que Deus criou o homem, não através de um processo evolutivo, mas do pó da terra, ao qual deu vida pelo seu sopro, tornando-o em alma vivente [Gn 2.7]. Se ele não for capaz de acreditar na criação direta, conforme o relato de Gênesis, estará a afirmar que a Bíblia não é verdadeira, pois se um só detalhe em suas páginas for falso, toda ela será falsa. Como a palavra de Deus, inspirada, inerrante e infalível, se for possível rejeitar um ponto que seja, estar-se-á a rejeitá-la completamente, e sua autoridade não é válida. Os cristãos que se aliam ao teísmo-evolucionista, nada mais estão a dizer do que: "não creio na Bíblia como revelação direta de Deus"; colocando-os em maus-lençóis diante da fé cristã, pois ao se rejeitar uma proposição bíblica não se pode ao mesmo tempo "apelar à autoridade divina para sustentar suas outras crenças" [2].
Não consigo compreender nem entender essa união perigosa, pois o crente, para abarcar em sua cosmovisão o evolucionismo, terá de abrir mão de boa parte da Escritura. Por isso há uma crescente alegorização de Gênesis 1 a 11, de tal forma que eles têm um cunho moral [e uma moral forjada à revelia da revelação] e não histórico. Mas se levar em conta que toda a doutrina cristã se baseia no relato de Gênesis como real e histórico, e que Cristo, Paulo e Pedro, entre outros, confirmaram o que está escrito em suas páginas como acontecimentos reais, fica cada vez mais provada a inconsistência dos argumentos dos teístas-evolucionistas; eles não podem crer nas palavras do Senhor e dos apóstolos sem crer no relato bíblico da criação.
Toda a cosmovisão cai por terra, a revelação cai por terra, Cristo cai por terra, sua obra na cruz também, ou seja, o cerne do Cristianismo e da Bíblia são colocados em descrédito, e toda a sua unidade e coesão perdem o sentido. Se a morte já existia antes do homem vir a existência [como o evolucionismo proclama, é necessário mortes e mais mortes em milhões de anos para que as espécies se aperfeiçoem pela seleção natural], o pecado então surgiu muito depois que a morte viesse a subsistir, não sendo portando a sua causa. E se o pecado não gerou consequências diretas e práticas na vida humana, em seu sentido corpóreo, metafísico e real, a Queda e a Redenção não passariam de contos-da-carochinha, histórias para boi-dormir; Deus estaria a nos enganar e a fazer da expiação através da crucificação de Cristo no Gólgota, um espetáculo megalomaníaco e sádico. O que nos levaria a concluir que estamos nas mãos de um "Deus" cínico e sarcástico. Mas nenhum deles admite essa possibilidade, porém há proponentes do teísmo-evolucionista que enquadraram o seu pensamento em outros tipos de ceticismo. A conclusão lógica desse labirinto é forçar uma saída; rejeitando o único caminho verdadeiro e possível: o Cristianismo bíblico.
Logo, o que o cristão-evolucionista proclama? Uma redenção apenas espiritual? [a soteriologia deles é uma colcha de retalhos; o sustentáculo da doutrina da salvação passa inevitavelmente pelo Éden como realidade, não como ficção] Mas, e o que dizer da redenção física que também é prometida por toda Escritura? De que a criação geme com dores de parto juntamente com nós esperando a redenção do nosso corpo? [Rm 8.19-23]. E por que Cristo haveria de morrer? E ressuscitar? Para vencer a morte? Mas qual morte? 
Como ficaria a questão do pecado? Qual a justificativa para que Deus ordenasse a morte, visto que ela faz parte do processo evolutivo? E a moral? Como um Deus pode exigir moralidade se a sua criação está incompleta? E ela é a punição sem motivos aparentes; nada além de uma forma para a vida, ou a vida como um estágio da morte?... O pecado foi o desestabilizador. A partir dele, tanto o homem como o mundo se corromperam, e nasceu o caos, e veio a morte. Mas os teístas-evolucionistas alegam que todo o relato da criação é alegórico, que o pecado é alegórico e a morte não é literal, não conforme nos foi entregue pelo próprio Deus. Isso faz com que todo o restante seja corrompido pela falsidade do princípio. Se o início não é verdadeiro, a sequência também não é. E alegorizar outras passagens, doutrinas e fatos não seria difícil. Ao ponto em que qualquer um poderá, ao seu bel-prazer, desqualificar determinado trecho ou o todo com o mesmo argumento que se viola a inerrância e infalibilidade da Escritura; o mesmo argumento que torna Deus indigno e desonrado.

Assim os cristãos-evolucionistas estão em uma sinuca-de-bico, numa situação em que defenderão um ponto racionalmente e rejeitarão o outro ou ficarão sem nada ao defenderem ambos. E ao defenderem, me parece, já estão com as mãos vazias e amarradas.

Nota: *Escrito e narrado por mim... mas o áudio pode chegar um pouco depois da publicação do texto.
[1] Introdução à Teologia Sistemática, Vincent Cheung, Arte Editorial, pg. 160
[2] Idem. Pg 158.
[3] Música ao fundo da narração: "Réquiem", de Brahms

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27 abril 2011

Cristo: a negação do pecado


OU A IMPOSSIBILIDADE DE PECAR


Por Jorge Fernandes Isah*

Retornarei a um tema do qual me afastei por algum tempo, que causou alguma polêmica por aqui e exortações públicas de alguns irmãos para que eu voltasse à verdade. As postagens as quais me refiro são, entre outras:

A questão é que no conjunto do meu pensamento, sempre afirmei ser Cristo 100% Deus e 100% homem, em acordo com o que a Bíblia define claramente e que a ortodoxia ou a tradição da Igreja confirmou por séculos. Não tenho dúvida alguma de que a doutrina da divindade e humanidade de Cristo é bíblica e verdadeira. Portanto, não há o que se discutir quanto ao fato de que eu, eventualmente, esteja comprometendo esse princípio bíblico basilar da fé cristã, pois não estou, visto crer plenamente nele.

A Escritura está recheada de referências tanto à humanidade como à divindade de Cristo, de tal forma que não há como não reconhecê-la, a menos que se seja  movido pelo sentimento de querer destruir a verdade e corromper a revelação especial de Deus para os homens. Apenas mentes acostumadas à mentira e formadas nela podem conceber que o Senhor não seja homem e Deus ao mesmo tempo, de que ele não possua as duas naturezas. Não entrarei nos pormenores de como se deu a união hipostática do Senhor[1], visto não ser esse o objetivo deste texto. Se Deus quiser, no futuro, poderei abordar o tema.

Nos artigos citados, a questão que aventei e que gerou algum mal-estar foi o fato de fazer duas declarações e distinções não tanto ortodoxas [2]:

1) De que a natureza humana do Senhor Jesus era eterna [a essência; a mesma que nos foi dada por Deus e nos tornou à sua imagem e semelhança];
2) De que ele era diferente do homem, ou seja, não completamente igual ao homem por não possuir o pecado nem a possibilidade de pecar.

Em relação ao ponto 1, talvez eu faça uma nova abordagem mais à frente; talvez, não sei. Focarei agora o ponto 2, a nítida distinção que há entre Cristo e nós por causa do pecado que ele não tem e nós temos. Como sempre, farei a pergunta inicial: Não seria o pecado um diferencial fundamental a nos distinguir de Cristo?

Primeiro, a definição de pecado, o qual "é tudo o que é contrário ao caráter de Deus. Como a glória de Deus é a revelação do seu caráter, o pecado é uma insuficiência do homem em relação à glória ou ao caráter de Deus (Rm 3.23)" [3].

Considero uma ótima definição pois ela estabelece que o pecado é algo completamente exterior a Deus, e cuja natureza não se opõe meramente a ele, mas anula-o completamente. O pecado poderia ser entendido como uma reação radical à Deus, à santidade, autoridade, essência e natureza, bondade e perfeição, justiça e graça, numa tentativa pífia de tomar o seu lugar, substituindo-o por elementos antagônicos, díspares e viciados, como se a falsificação pudesse, em algum momento, revestir-se da autenticidade do Autor Supremo; onde a imitação assumisse o caráter próprio do original. Pois, onde há ordem, é impossível a desordem. Onde há o bem, é impossível o mal. Onde há santidade, não há pecado. Onde há justiça, não há injustiça. Onde há vida, não há morte. Na origem, não existe incerteza. Na unidade, não há dispersão. No eterno, não há efêmero. Por isso o pecado é a resistência ou a obstinação do homem em reconhecer a glória do Altíssimo.

É possível que alguém avente a hipótese de eu estar me entregando ao dualismo, o que não é o caso. A Bíblia afirma que todas as coisas foram criadas por Deus, estabelecidas eternamente em seu Decreto, de tal forma que nada, absolutamente nada, surgiu à sua revelia; pois toda a criação, seja espiritual ou material, veio a existir do nada; não havia substância pré-existente a qual Deus utilizou para formar o universo. O que vale dizer que tanto o mal como o pecado não são autocriados ou originários de outra "força", mas vieram à existência pela vontade decretiva de Deus. Portanto, tudo, em seus mínimos e irrelevantes detalhes, está sujeito ao Criador, sem que pudesse existir alheio à sua deliberação; e aqui, como já disse, inclui-se o pecado, o mal, a Queda, etc.

Mas o que isso tem a ver com Cristo?

Tudo!

Visto ser Deus, e por ele todas as coisas virem a ser, pois se assim não fosse não se realizariam; e por todas elas serem sustentadas pelo poder da sua palavra; reconhecemos o seu poder, autoridade e perfeição. Mais especificamente, o fato é que por suas naturezas e atributos perfeitos, Cristo jamais pecou. Mesmo em sua humanidade, ele não poderia pecar. O pecado é-lhe algo completamente exterior e estranho, assim como é para Deus, de tal forma que, em Cristo, o pecado não teria qualquer oportunidade de se manifestar, como não teve nem terá. Por isso é-me inconcebível a idéia da "possibilidade de Cristo pecar", como uma blasfêmia, uma afronta à sua santidade e perfeição. A humanidade de Cristo não é perfeita porque ele não pecou, mas ele não pecou porque ela é perfeita. Há uma diferença brutal nisso. A mera possibilidade de Cristo vir a pecar, ainda que como hipótese remota, afetaria a sua perfeição. Se não cogitamos o mesmo de Deus, porque o cogitaríamos para Cristo, sendo ele Deus? Ou seria Cristo duas pessoas em uma? Ou a combinação das duas naturezas gerando uma terceira? E assim teríamos uma personalidade esquizofrênica e conflituosa? A disputar, na confusão, um sentido incompreensível e não declarado na Escritura? Se na sua humanidade fosse possível, metafisicamente falando, o pecado, isso afetaria a sua perfeição e divinidade, pois ainda que as suas naturezas não se comuniquem, elas fazem parte da mesma pessoa, o Verbo. Não há dualidade em Cristo, mas unidade. Não é possível a imperfeição no perfeito. Nem o transitório no perpétuo. A singularidade de Cristo está em sua divindade-humanidade, mas também no fato de sua humanidade ser exclusiva. Nem mesmo o Adão pré-queda era como Cristo, visto ter pecado, e não ter podido não pecar [4].

Sabemos que o pecado traz consigo uma série de anomalias, e seus efeitos noéticos tornam o homem em inimigo de Deus; de maneira que ele sempre se oporá ao Criador, rebelando-se em sua pretensa autonomia, rejeitando-o, e agradando-se de não obedecer à sua vontade. O homem, se Cristo não o resgatar, estará irremediavelmente perdido, condenado. Este é o maior e definitivo dano provocado pelo pecado: a eterna separação de Deus. Seria a obra completa de sua realização: a morte eterna. Então, como é possível imaginar que Cristo poderia se enquadrar nessa condição, ainda que como uma probabilidade impossível? O próprio decreto eterno estabeleceu que Cristo encarnaria, assumiria a forma humana, e não pecaria. E ele é inexorável; não se movendo em sua irredutibilidade. Porém, a perfeição e santidade do Redentor vai muito além do decreto eterno, pois são atributos da sua natureza, mesmo em relação à sua natureza humana, que não estava sujeita à influência ou coerção do pecado.

Isso, por si só, já seria argumento suficiente para distinguir Cristo dos demais homens. Mas ao se dizer que a natureza de Cristo não é idêntica à do restante da humanidade, toma-se uma proporção desproporcional, ao ponto de se concluir que assim a sua obra expiatória não seria possível. Mas onde mesmo a Bíblia afirma que Cristo é idêntico, em todos os detalhes, ao homem? Esta não seria uma acertiva na qual se está mais preocupado em preservar a nossa condição de semelhantes a ele do que em reverenciá-lo por sua obra consumada? Ou mesmo revelar a sua singularidade na normalidade do homem? Ou sua pessoalidade na nossa incapacidade pessoal de ser como ele é? E poder glorificá-lo naquilo em que ele é, mesmo diferente de nós?

Veja bem, não nego ou relativizo nenhum ponto da ortodoxia cristã, mas acho um exagero e mesmo um despropósito, afirmar que Cristo é 'ipsis litteris" como nós, à parte de sua divindade. Com isso, não estou questionando a sua humanidade, nem que seja homem, mas questiono o fato de como nós, seres imperfeitos, iníquos, rebeldes e inconstantes em nossa irregularidade poderíamos ser comparados a ele, perfeito, santo, obediente, um com o Pai em sua absoluta unidade. Cristo é "sui generis", único, peculiar, fora do comum em sua Pessoa, ainda que tenha a mesma humanidade que nós... à exceção da disposição adâmica ao pecado.

Contudo, o pecado não é um mero detalhe... Assim como a disposição ao pecado também não é. E se todos, sem exceção, temos essa disposição, ao ponto em que o pecado se tornou inevitável em nossas vidas, Cristo não a tem, por isso, não pecou. A sua natureza humana, ainda que semelhante à nossa, é impecável. E isso faz uma enorme, grandiosa diferença, tanto nele, como na boa obra operada em nós, e que nos levará, infalivelmente a não mais pecar, pois, naquele glorioso dia, seremos feitura sua, de tal forma que em nós a sua glória imaculada consumar-se-á, e adquiriremos, por sua graça, a  sua perfeição que anulará o pecado, tornando-o extinto e ineficaz em sua inocuidade.

E essa é a mais viva esperança que o cristão pode desejar, quando, face a face com o Senhor e Salvador, seremos finalmente como ele é. E teremos enfim a sua natureza humana, em todos os seus detalhes, capacitando-nos à santidade e à impossibilidade de ceder ao pecado. Quando toda a obra planejada e posta em execução por Deus no tempo, na história, se consumará definitivamente. E somente ali os eleitos reconhecerão que nunca foram como ele, mas agora, eternamente, serão! Pois Cristo é a negação do pecado!

Notas: * Escrito e narrado por mim... mas o áudio chega sempre algumas horas ou dias depois.
[1] União Hipostática: é a união das duas naturezas, divina e humana, em uma Pessoa; o que faz de Cristo uma Pessoa Teoantrópica, ou seja, ele é ao mesmo tempo Deus e homem. 
[2] O fato da minha declaração não ser considerada "ortodoxa" não a inviabiliza como biblica. Muito da ortodoxia, e tem-se de definir o que seja ortodoxia primeiramente, é discutível inclusive por ortodoxos. E o que vale, necessariamente, é o princípio estabelecido na Escritura, mesmo que ele não seja considerado ortodoxo. Especificamente no meu caso, eu nego a heterodoxia do que disse, e afirmo que os meus postulados são bíblicos. 
[3] Dicionário Bíblico Wycliffe - pg. 1.485 - Editora CPAD.
[4] Sobre não concordar com a posição de Agostinho quanto à idéia de que o Adão pré-queda poderia "não pecar e pecar", ler o meu texto: "Todos esses anos... e nunca fica fácil"


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19 abril 2011

Livro do Mês: A Soberania Banida

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A RUÍNA DO LIVRE-ARBÍTRIO

                                 Escrito e narrado por Jorge Fernandes Isah

Fiz uma primeira leitura do livro em 2008, quando já era calvinista... bem, um calvinista ainda inconsistente, mas posso garantir que a partir das refutações de Wright ao arminianismo, paganismo e ao humanismo, não ficaram dúvidas, nem pedra sobre pedra. Então, vi-me seduzido a novamente ler o livro. Não sem antes fazer a pergunta: "Por que reler 'A Soberania Banida'?"... Não foi difícil relacionar alguns motivos:

1- Grandes livros devem ser lidos e relidos.
2- A Soberania Banida é um grande livro, cujo tema é pouco divulgado e cujo material é escasso em português [Há de se ressaltar o esforço da Editora Monergismo em publicar obras sobre o assunto, em especial, as de Gordon Clark e Vincent Cheung].
3- Quando da primeira leitura, ainda caminhava meio que titubeante pelo Calvinismo, pois até pouco tempo antes era um amyraldiano sem saber, crendo ser calvinista. Então, provavelmente, muito do que li ficou perdido ou sequer foi visto por meus olhos limitados quanto à doutrina da graça.
4- Queria, e quero, avaliar o pensamento do Wright com o de Clark e Cheung, e ver até que ponto eles são semelhantes ou conflitantes.
5- A oportunidade de detalhar melhor aqui no blog o livro, o que não pude fazer na primeira leitura [o livro estava fora de catálogo, e peguei-o emprestado; fiz uma leitura rápida, para não "prender" muito o exemplar em minhas mãos]. 
6- Acho que este título merece ser mais conhecido e divulgado, e oro para que Deus me capacite a analisá-lo em alguns dos seus detalhes, sem tirar o desejo de quem porventura queira lê-lo. Ou seja, não ser explícito por demais e acabar por revelar mais da leitura do que deveria.

Entrando propriamente no cerne do livro, ele combate a falsa idéia de que o homem tem alguma influência em sua salvação, de tal forma que ela se tornaria uma obra humanamente meritória. E sua relevância está exatamente em não deixar que o homem, em momento algum, pense que isso possa ser possível; usurpando de Deus a honra, glória e louvor por toda a obra de salvação, desde quando a decretou na eternidade até a sua realização e consumação no tempo. Wright ressalta a impossibilidade de haver cooperação entre Deus e o homem, de maneira que somente um ou outro é o autor da salvação... Como o homem não pode salvar a si mesmo, e acredito que nem queira fazê-lo, a conclusão é de que todo o planejamento, execução e resultado podem ser creditados exclusivamente a Deus.

Em relação ao arminianismo, há de se dizer que, além de sua posição nitidamente antibíblica, ele foi uma espécie de irmão "univitelino" tanto do Iluminismo como do Racionalismo, gerando dessa depravação doutrinária/ideológica o liberalismo cristão e um sem número de apostasias e heresias; os seus filhos bastardos, a partir da formação do que se pode chamar a "tríade do Mal". Historicamente nenhum movimento esteve ligado a tantas distorções e corrupções do Evangelho quanto o arminianismo, e o que se pode perceber é sua influência autônoma em todas as formas de degeneração do Cristianismo bíblico criadas pelo homem natural. Entre várias  delas podemos citar como descendência direta o Universalismo, o Unitarismo [ao pender vergonhosamente para o Arianismo], o Reavivalismo de Finney e seu abominável evangelismo de resultados, pragmático, sentimentalóide, e avesso à doutrina e a razão. Muitas seitas têm em comum com o arminianismo o mesmo princípio: a suposta liberdade e poder da criatura de frustrar os desígnios do Criador.

Wright demole, ponto a ponto, os argumentos arminianos, os quais são provados inconsistentes e falsos, cujos princípios servem apenas à vontade autônoma do homem [o desejo em tê-la independente de Deus], capaz de se sobrepor e se impor até mesmo sobre a vontade divina. Para eles, é possível Deus ser Todo-Poderoso, soberano, controlar todas as coisas e, ainda assim, o homem ser livre e capacitado a ter em suas mãos as decisões de maneira totalmente livre, podendo até mesmo aprisionar "Deus" em suas vontades, anulando-o, como se o placebo pudesse, em sua inatividade e ineficácia, controlar, determinar e administrar a cura em sua neutralidade indeterminada.

Nesse quadro, onde fica a graça salvadora de Deus? Se é pela graça que somos salvos, seria possível ela estar sujeita ao livre-arbítrio humano? E como esse suposto livre-arbítrio se relacionaria com a natureza pecaminosa e a Queda? Estaria ele dissociado delas? Ao ver do arminiano, isso é possível, porém, ilógico e insustentável, especialmente quando a Bíblia nos revela que todos estamos debaixo do pecado, não promovemos o bem mas o mal, e não queremos nada com Deus, não ao ponto de nos arrepender da nossa iniquidade e sujeitar-nos ao senhorio de Cristo espontaneamente. Na verdade, o homem natural quer um Deus submisso e sujeito, uma espécie de “deus da lâmpada”, um gênio das mil e uma noites sempre disposto a realizar os desejos das suas criaturas,  numa obediência lacaíca, carnal e tola.

O fato é que, se Deus não operar em nós a regeneração, o novo-nascimento, chamando-nos eficazmente a reconhecer a obra de Cristo como suficiente e única para a salvação e justificação do ímpio, nada feito! Permaneceremos mortos em nossos pecados e iniquidades, distantes de Deus, longe da sua graça, sem a menor vontade de arredar um centímetro em direção ao seu trono de glória; refestelando-nos no pecado como porcos na lama.

Em quase todos os aspectos, o pensamento de Wright está em acordo com o de Clark e um pouco menos com o de Cheung, [provavelmente por McGregor e Gordon serem presbiterianos ao contrário de Vincent; e aí reside a necessidade daqueles subscreverem a C.F.W. enquanto este não] o que o torna em calvinista no sentido pleno da palavra, pois não se encontram presentes no livro as comumentes expressões antinomia, paradoxo ou mistério, para explicar algum princípio bíblico que não se queira reconhecer baseado na Escritura, a fim de não causar "mal-estar" entre leitores e ouvintes mais suscetíveis à verdade. Normalmente paradoxo ou mistério é utilizado para respaldar algum conceito humanista e enfraquecer ou desqualificar um princípio bíblico, a não ser no caso especifício da "graça comum", a qual o autor parece dar algum crédito, assim como a maioria dos calvinistas, mesmo que não se encontrem evidências para ela, ao contrário, a razão indica a sua inexistência como princípio revelado por Deus. Porém, reconheço que Wright não detalha o que venha a ser "graça comum", revelando, talvez, a sua irrelevância doutrinária.

O livro é um excelente tratado sobre a "soberania divina x livre-arbítrio" [quem considera possível uma união de forças entre elas está completamente enganado, pois são conceitos antagônicos e rivais], e os argumentos e princípios bíblicos são reveladores de que Deus é 100% soberano e o homem não é livre para fazer escolhas autônomas à parte do Criador, como se houvesse chance desse homem ser, de alguma forma, livre de Deus. Nada no universo é livre de Deus; portanto, o homem é livre apenas para pecar conforme a sua natureza iníqua.

Um capítulo deveras interessante é o que Wright destina a análise dos supostos "versículos arminianos" na Bíblia. Escolhendo aqueles usados pelos autonomistas para defenderem suas posições [a partir da descontextualização], o autor, partindo-se do pressuposto de que não há contradição na Bíblia, e de que é impossível se afirmar um sistema e o outro ao mesmo tempo, ou propor uma simbiose entre eles [o que chamou de "calminianismo"], assegurou que o versículo em si pode não ensinar qualquer doutrina distintivamente calvinista, mas o ponto a ser estabelecido é que os arminianos não têm qualquer base para citá-los em seu favor.

Desta forma, provado que os supostos "versículos arminianos" não ensinam o arminianismo, livres de preconceito, poderiam explorar a possibilidade de realmente haver versículos na Bíblia que tornam inevitável o conceito calvinista da salvação.

Os versículos são agrupados tematicamente da seguinte forma:
1) Sobre o livre-arbítrio;
2) O termo vontade;
3) Escolhas humanas;
4) Ordens;
5) Convites;
6) A utilização do termo "livre-arbítrio" em algumas versões da Bíblia;
7) E, mais detidamente, nos únicos dois versículos "obviamente arminianos", ironicamente assim chamados por Wright, demonstram não haver nada de arminianismo neles.

Há a indicação do livro de John Owen "The Death of Death in the Death of Christ", publicado pela Banner of Truth, e disponível no Brasil resumidamente com o título "Por Quem Cristo Morreu?", publicado pela Editora PES.

Qualquer arminiano que ler esse capítulo em especial [desde que não se endureça a ponto de não ver a verdade, apegando-se tolamente à mentira], se certificará da fraqueza e verá desmoronar a sua interpretação quanto ao "arminianismo bíblico". Ele até poderá não aceitar a doutrina calvinista da salvação, mas não haverá como continuar proclamando a teoria antibíblica do arminianismo e o seu mote principal: o livre-arbítrio.

O autor aborda ainda a questão do determismo bíblico, da responsabilidade x liberdade, e do suposto dilema "Deus e o mal", prato-cheio para humanistas ignorantes e cristãos igualmente mal-informados.

Ao final do último capítulo, Wright esboça 5 razões para não se aderir à teoria do livre-arbítrio a partir das 5 máximas dos próprios "livre-arbitriristas".

Creio que, por isso, muitos decidem fugir de livros tão reveladores como "A Soberania Banida", contando-se com exposições frágeis, conflituosas, incoerentes e irracionais de autores não comprometidos com a verdade ou que apenas se enganam, iludidos pela mentira.

Notas: 1- Ao final de cada capítulo há uma lista de leitura adicional; infelizmente, em sua esmagadora maioria, não disponível em português.
2- "A Soberania Banida", escrito por R. K. McGregor Wright, e publicado pela Editora Cultura Cristã
3- Todos os meus comentários ao livro podem ser lidos AQUI
4- Na seção "Textos Selecionados", em "Cristologia & Soberania de Deus" e "Apologética & Outros", pode-se encontrar vários artigos em que abordo as questões da impossibilidade do "livre-arbítrio" e também sobre "responsabilidade x liberdade".
5- Avaliação do livro: [*****] Excelente!

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