29 dezembro 2010

Ponto de Fuga



Por Jorge Fernandes Isah


    Ano novo aproximando-se, já as portas de Janeiro, e estou a me perguntar: o que nos aguardará nos próximos doze meses? Em que condições a igreja evangélica deixará o país ao fim-do-ano? Será que a expansão numérica dos evangélicos no Brasil tem-se refletido em luz, ou "tudo continua como dantes no quartel do Abrantes"? Com os evangélicos não fazendo diferença, nem salgando o mundo?
  
  Quais mudanças serão percebidas na sociedade? Ela terá refletida a sabedoria e santidade bíblicas? Terá se tornado moral e eticamente aprovada? A defender a vida e os princípios estabelecidos por Deus em Sua palavra? 

   Ou a expansão numérica servirá apenas para aproximar a igreja cada vez mais do padrão do mundo (através da invasão de incrédulos e suas perversões no seio da igreja; e o que é pior, a aceitação passiva por parte daqueles que se dizem cristãos e defensores da fé bíblica)? A interagir e se fundir com o secular de tal forma que não se distingue o aparentemente santo do profano?

   Até que ponto, o triunfalismo e o otimismo com as possibilidades de um Brasil evangelizado é realidade ou ficção? Especialmente quando se sabe que a maior parte das pregações têm sido antibíblicas e não-cristãs? É possível se pregar o antievangelho e ainda assim evangelizar em moldes verdadeiramente cristãos? Ou estamos a misturar as coisas, sem saber o que fazemos, guiados por egos inflados, por doutrinas espúrias, com o objetivo de saciar a sanha indolente das criaturas? Sem glorificar o Criador e Senhor?

   Há muito tempo se ouve a frase: o Brasil para Cristo! Mas o que pregamos é Cristo crucificado, ressurreto e que está à destra do Pai governando o mundo, ou o anticristo?

   Até que ponto, igrejas preocupadas com atividades sociais, de lazer, empresariais, mercadológicas, envoltas pelo pragmatismo e a busca de resultados estatísticos e financeiros podem estar comprometidas com Deus e Sua palavra, ao ponto em que ela transborde e seja impossível não proclamá-la?

   Até que ponto, as igrejas estão preocupadas em pregar o arrependimento? E, assim, somente assim, reconhecendo-se nu e miserável o homem poderá quedar-se submisso diante do Deus Todo-Poderoso, santo e justo? Pois sem arrependimento, não houve novo-nascimento, e sem novo-nascimento como será possível ver o reino dos céus?

   Até que ponto, um povo obstinado em rejeitar a Deus pode ser chamado de cristão? Como está escrito: “Feriste-os, e não lhes doeu; consumiste-os, e não quiseram receber a correção; endureceram as suas faces mais do que uma rocha; não quiseram voltar”[Jr 5.3].

   Até que ponto, o Evangelho estará soterrado pelo humanismo? E se tornará irreconhecível como a mensagem do Deus Vivo?

   Até que ponto, continuaremos assentados confortavelmente em nossas poltronas sem clamar, interceder e orar pelas almas escravizadas pelo pecado? E por milhões cegados pelo deus deste mundo?

   Até que ponto, todo o nosso entendimento e rigor doutrinários estarão realmente a serviço do Reino de Cristo?

   Até que ponto, satisfaz o que temos e não o que damos?

   Até que ponto, continuaremos soldados na caserna, enquanto a guerra se desenvolve no campo?

   Até que ponto, ser cristão é não ser cristão?

   O compromisso dos que são de Cristo é seguir os passos do Mestre, para que se dê muitos frutos, senão será cortado e lançado "onde o seu bicho não morre, e o fogo nunca se apaga" [Mc 9.48]

   Quantas vezes é preciso ser vomitado? Por não ser frio nem quente, mas morno? Julgando-se rico, quando se é desgraçado, miserável, pobre, cego e nu? 

   “Sê pois zeloso, e arrepende-te” [Ap 3.19].

Notas: Este texto foi redigido em Janeiro/2010, e decidi republicá-lo no fim-de-ano, como minha última postagem, pois os questionamentos lançados nele ainda me angustiam, e alguns permanecem sem respostas.
    [2] Relutei em publicar o texto, porque, nos dias atuais, qualquer espécie de exortação ou alerta é sinal de prepotência e superioridade da parte de quem os faz, afinal, dizem, somos todos iguais, e por que você se considera melhor do que nós? A questão é que não estou a falar somente do que não foi feito, mas do que mesmo feito não foi bem feito, em conformidade com a Escritura. Fazer por fazer é muito pouco. Não fazer achando que se faz é nada. E fazer erradamente é prejuízo. Há, de certa forma, uma espécie de ufanismo por uma Brasil evangelizado, mas fico sempre a me perguntar: o Brasil é realmente um país evangelizado? Qual evangelho é pregado? De Cristo ou do anticristo? Então decidi publicá-lo. Não como uma maneira de dizer: olha, fiz mais do que vocês, que não andam fazendo nada. Não é isso, até porque, considero-me muito, mas muito distante da semelhança com Cristo, como disse no texto "Perdas e Ganhos"Como alguns pregadores sempre dizem que o sermão é primeiramente para eles mesmos, posso afirmar categoricamente que este texto foi escrito e inquirido primeiramente a mim.
   [3] Alterei apenas as datas na postagem para não parecer estranho a quem ainda não leu estas notas.

20 dezembro 2010

A rejeição da Lei e a abolição do Evangelho












Por Jorge Fernandes Isah

Ao ler o trecho abaixo, veio-me à mente o quanto o entendimento da Lei tem sido preterido e negligenciado entre os cristãos, ao ponto de, com raras exceções, todos considerarem que, de alguma forma, com a encarnação do Senhor, ocorreu também a abolição da lei. Este é um comentário sobre essa falsa premissa, que espero, se Deus quiser, complementarei em futuras postagens.


Primeiramente, vamos à frase: “As leis cerimoniais, as leis civis e o código penal foram anulados, e a lei moral recebeu mais esclarecimentos na pessoa e nos ensinos de Jesus Cristo"[1].


Ora, o que temos aqui? Se Cristo veio cumprir a lei, e elevou-a a condição muito superior, ao ponto em que não se é preciso cometer o delito, mas somente idealizá-lo para que o pecado seja consumado, como a lei foi anulada? E, em qual sentido o foi? E mais, quem a anulou?


Quer dizer que tudo o que Deus estabeleceu como abominação, como odioso aos seus olhos e, por isso, merecedor de castigo, escrito na Lei, foi abolido e não o desagrada mais? Não há código moral e ético vigente? Passamos a viver no “faça o que quer, me deixe fazer o que quero”? Essa mentalidade não está próxima da visão pós-moderna e relativista do mundo atual? Ou, mesmo pior, pois elimina qualquer critério de justiça e moral? Ao menos os relativistas acreditam numa moral pessoal e subjetiva; no conceito acima, não se chega nem a isso. Então, como viveremos? Livres para pecar e cometer delitos?


Outra questão que me vem à mente é: seria Deus mutável ao ponto de alterar sua escala de valores? E dar por errado o que é certo? E dar por imoral o que é moral? E desdizer o que disse? E eliminar o que estabeleceu?... O que se está a defender é a não unidade da Escritura e, por conseguinte, a não perfeição divina.

Cristo é superior à Lei, inclusive, na exigência de se cumpri-la. Não basta uma conduta exterior, mas ela também tem de ser interior. De nada adianta eu não ir para o motel com uma amante, se penso em levá-la e ter conjunção carnal, mesmo que somente em pensamento. De nada adianta não roubar, se o tempo todo estou a cobiçar o que é de outrem. Nem fraudar, se estou a proferir “mentirinhas” a cada dez palavras pronunciadas. Para Cristo, não basta limpar o exterior do copo e do prato, mas o seu interior [MT 23.26]. O que não quer dizer que o exterior não deva ser limpo, também. Acontece que essa é uma questão afeita somente aos eleitos, àqueles que são capacitados por ele a se manterem limpos por dentro e por fora, em seu caráter santificador. Por que Cristo veio nos libertar do jugo da lei, da sua conseqüência mais grave, a condenação, “para que sirvamos em novidade de espírito, e não na velhice da letra” [Rm 7.6]. Paulo, em seguida, arrematou: “Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei; porque eu não conheceria a concupiscência, se a lei não dissesse: Não cobiçaras” [v.7]. Este é um verso “knock down”, daqueles que lança o interlocutor distraído à lona. Pois, se a lei foi abolida, também o pecado o foi; se a lei foi abolida, não há necessidade de Salvador, nem de salvação, pois todos estão salvos. Se esse é o entendimento, não há necessidade de Evangelho nem de sua proclamação, pois o reino já é efetivamente verdade na vida de todos os homens; e todas as demais promessas que falam de julgamento, tribunal, condenação, juízo, e punição no inferno, não passam de lendas, ou quando muito uma ficção do que poderia ser o futuro, caso a lei não fosse abolida. Paulo ratifica esta idéia ao dizer: “porquanto sem a lei estava morto o pecado” [v. 8].

Alguns acrescentarão: mas a lei foi abolida apenas para os salvos, por aqueles que Cristo morreu, o qual pregou-a no madeiro [2]... É, porém, os antilei não a querem também para os ímpios, nem que a sociedade seja regida por ela; preferem uma lei regida e controlada pela mente e pela cultura humana; então, como fica o beco-sem-saída que os antilei criaram para si mesmos?... O certo é que a lei deve ser cumprida por todos, eleitos e réprobos; não como algo apenas espontâneo, que se deve obedecer por vontade própria, mas por coerção, e temor ao castigo oriundo da quebra da lei.

Cristo também disse que não veio abolir a Lei, mas cumpri-la; como exigência para que os eleitos fossem salvos, não para que fossem dispensados de cumpri-la. Isso revelaria um “cristo antinomiano”, que sequer se importaria em cumprir, ele mesmo, a lei. Porque desprezá-la é um claro sinal de rebeldia, e não de obediência, a qual o Senhor sempre teve pelo Pai e sua Lei. Se Cristo tivesse abolido-a, estaria a dar carta-branca para o livre-pecador, de tal forma que não haveria abundância da graça, mas da iniqüidade. Uma perversão no sentido de graça, de justiça e santidade divinas. E o que é pior, anulando-as completamente, o que significaria anular a própria natureza divina.

Somos salvos, mas não somos livres para pecar, ao contrário, somos livres para não pecar.


O erro portanto está em anular o que Deus não anulou; achando que anulou, quando o que o homem quer é anulá-lo para gozar uma liberdade que não se tem.


O próprio julgamento final, e a condenação ao inferno daqueles que descumpriram a lei, demonstram a sua validade, pois como Paulo disse, ninguém é justificado pela Lei, mas por ela todos são  julgados e condenados; “de outro modo, como julgará Deus o mundo?” [Rm 3.6]. Cristo veio trazer salvação e redenção para o seu povo, mas o povo que não é seu, será condenado pela Lei, em seu caráter penal. Não se esqueça de que o inferno é a penitenciária de segurança máxima que Deus estabeleceu para o diabo, seus anjos e os ímpios, por toda a eternidade. E lá, a pena não se paga jamais; como o Senhor disse, o inferno é o lugar onde o bicho não morre e o fogo nunca se apaga [Mc 9.44].


O estranho é que, com uma falsa idéia na cabeça, muitos cristãos se opõem ao caráter político da lei, de que o ímpio pode ser punido no inferno, mas não pode sê-lo aqui no mundo. Há até mesmo a defesa da lei humana sobre a divina, numa clara inversão de valores, como se a lei de Deus não fosse atemporal, permanente, para todos os homens e nações. Chega a ser desesperadora a forma como muitos defendem a não aplicabilidade da lei no mundo atual. Como se o crime fosse mais justo do que a sua prescrição legal, como se a pena fosse injusta, e o ato criminoso, assim como o seu autor, devessem estar sempre debaixo da indulgência da sociedade. Essa mentalidade de que somos responsáveis pelo criminoso e o seu crime, mas não somos responsáveis por puni-lo e evitar que incorra novamente em delito, não é somente um tiro no pé, mas na própria cabeça, e na alma de quem pensa assim. Parece-me que a distorção é tão grande, o foco escriturístico perdido há tempos, que não resta outra saída a não ser perpetuar a injustiça, pois a Lei justa, perfeita e santa, assim como é justo, perfeito e santo o seu Autor, Juiz e Executor, que a deu a todos indistintamente, não tem mais lugar no presente século, no mundo moderno.

Contudo, não foi isso o que Cristo disse, como está escrito: "Não cuideis que vim destruir a lei ou os profetas; não vim abrogar, mas cumprir. Porque em verdade vos digo que, até que o céu e a terra passem, nem um jota ou til jamais passará da lei, sem que tudo seja cumprido. Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus" [Mt 5.17-20].

O Senhor enfatiza algumas coisas nestes versos:

1-    Ele não veio destruir a lei ou os profetas;

2-    Até que o céu e a terra passem, nem um jota ou til da lei passará sem que tudo seja cumprido [e o cumprimento dela no Calvário se deu para os eleitos; mas os ímpios estão debaixo dela, e sujeitos a ela, no que ainda ela não se cumpriu integralmente, o que acontecerá no Juízo Final].

3-    Qualquer que violar um destes mandamentos e assim ensinar aos homens será chamado o menor no reino dos céus.

4-    Qualquer que ensinar e cumpri-los será chamado grande no reino dos céus.

Interessante que o Senhor usa a expressão “jota e til” para indicar os menores e menos importantes detalhes da lei, porém, como provenientes de Deus, são duradouros e devem ser observados. Promover a injustiça torna o seu promotor em injusto; defender a não cumprabilidade da lei é um erro gravíssimo, uma rebelião com sérias conseqüências e riscos aos que assim pensam, porque, ao assim agirem, estão a tentar enfraquecer a sua obrigatoriedade, a diminuir a sua abrangência, destituí-la de significado e relativizar o absoluto; um golpe atrevido por demais, com a intenção de tornar em verdade a mentira, de se reescrever a palavra de Deus pela fraude de uma pretensa espiritualidade.

Defender a descontinuidade da lei em seu aspecto legal, tanto civil como penal, é proclamar o reino da injustiça e dizer que nos tornamos mais sábios do que o próprio Deus, por isso, desprezamos o seu conselho, ficando com o nosso. Ou será que o salmista também perdeu-se no tempo, juntamente com a sua afirmação de que “abomino e odeio a mentira, mas amo a tua lei” [Sl 119.163]? Há descontinuidade na Bíblia? Ou temo-la por inteira, como a fiel palavra de Deus?

Sabemos que Cristo aboliu o caráter sacrificial e cerimonial da Lei, pois não é mais necessário que se imole carneiros e bodes para expiar os pecados, pois o Senhor já o fez por nós, uma única vez, na cruz. Portanto, não há essa necessidade; até mesmo porque Paulo nos diz que o sacrifício de touros e bodes não pode expiar os pecados, pelo contrário, imolá-los significava comemorar os pecados... De tal forma que sacrifícios, holocaustos e oblações pelo pecado não lhe agradaram, mas eis que Cristo veio para fazer, ó Deus, a tua vontade. “Tira o primeiro, para estabelecer o segundo” [Hb 10.9]. Deus não se agradava do primeiro sacrifício, por isso ele foi tirado e substituído pelo segundo, o qual Cristo o cumpriu integralmente, e do qual o Pai se alegrou. Aqui temos claramente uma ordem divina abolindo a lei sacrificial, pois ela era “sombra dos bens futuros; e não a imagem exata das coisas” [Hb 10.1].  Eram como símbolos apontando para o Redentor e Salvador das almas daqueles que creriam, e por isso, cumpriram a lei cerimonial ao sacrificar os animais; mesmo sabendo da sua inutilidade para expiar os pecados, mesmo sabendo que teriam de voltar a fazê-lo ano após ano, mas reconheciam a necessidade de obediência, de se observar aquilo que Deus estabelecera como prova de sujeição e amor ao seu santo e bendito nome. Quem pode questioná-lo?, diria Paulo; mas, quem és tu ó homem que a Deus replicas? [Rm 9.20]

As contradições no pensar do crente atual é que me são estranhas, por como pensam e o que pensam. De um lado, dizem que a Lei Moral, resumida nos Dez Mandamentos, prevalece para hoje e para o crente. Porém negam haver continuidade da lei judicial e penal, assim como da lei civil. Ora, se a Lei Moral condena pecados descritos e condenados na lei judicial e penal, bem como na civil, como se é possível defender um ponto e não defender os outros? Ou apenas se defende a exposição dos pecados sem defender a punição? A lei civil e penal nada mais é do que o detalhamento da Lei Moral, a fim de que o homem, em sua corrupção, não distorça e anule a Lei em sua aplicabilidade, fazendo-se ele mesmo legislador e juiz da sua causa.

Para piorar a situação, a base bíblica usada para a abolição da lei, não existe. Há várias distorções do seu sentido, confundindo-o com graça, salvação, evangelismo; confundindo-o com o caráter expiatório de Cristo, mas nada que corrobore a sua não legitimidade. O que normalmente se faz é afirmar uma coisa e negar as outras, sentenciando-as como verdade sem o respaldo escriturístico, o que as tornam falsas em suas afirmações de pôr fim ao pecado e as obras do mal, acusando-as sem condená-las. Seria dizer que o tiro matou, mas a bala não foi a causadora da morte, e sim o estampido da arma. Isso apenas descredencia o Evangelho, divide-o, esfacela-o, e faz de Deus um deus ambivalente, ao desejar que o seu povo ame a lei, e instantes depois a desprezem [visto que o ódio dos ímpios é natural, pois está a coibir-lhes a natureza pecaminosa]. Desta forma, constroem sobre o fundamento, Cristo, paredes de pau-a-pique tortas, que à primeira fagulha, ateia-se fogo em toda a casa, ainda que o fundamento não possa jamais ser queimado ou destruído. Tornam suas afirmativas em especulações sem fundamento, cuja base é tão somente opinativa ou pessoalmente preferencial, a partir de generalizações vagas e infundadas.

Outro erro é dizer que a lei somente pode e deve ser cumprida pelo crente, que através da regeneração e pelo poder do Espírito Santo buscará a santificação. Seria o que se chama de integridade ética aplicada na integralidade de vida. Ela serviria como parâmetro para se avaliar a vida cristã, "como um termômetro a medir a intensidade do nosso amor por Deus, da obediência à lei dele e da nossa dependência dele para a vida" [3]. Acontece que a Lei foi dada para a nação de Israel, o que representa dizer que foi entregue a crentes e descrentes, como o plano de Deus para que assim houvesse justiça e paz social, muito além do seu caráter meramente pedagógico [como aio] ou didático. Não se pode excluir o efeito justo e pacificador da Lei, pois ela foi produzida pelo Deus santo, perfeito e justo, e aplicável em todos os tempos e a todos sem exceção, como freio à desordem e incitação à ordem. Essa é a vontade de Deus, que não fosse revogada; porém é rejeitada exclusivamente porque, na sua mente, o homem caminha num processo de evolução, de melhoria, quando sabemos ser essa outra mentira. O humanismo fez com que o homem encontrasse em si mesmo a bondade [inexistente, falsa], e o fez crer que era bom, e o fez crer que essa bondade o restauraria, e consigo toda a sociedade. Por isso as leis são cada vez mais frágeis, contemporalizadoras com o mal, ao ponto em que se cumpre o que Isaias disse: tornam o mal em bem, e o bem em mal; fazem das trevas luz, e da luz, trevas [Is 5.20].

Portanto, quero fazer um desafio: alguém se habilita a provar, biblicamente, a descontinuidade da lei judicial, penal e civil, sem que se afete a unidade da Escritura?

Porque se abolindo a Lei, um dos pilares, a estrutura bíblica desmorona-se. E o que sobrará então, além da descrença? A impiedade dos ímpios; e a desonra a Deus pela rejeição da Lei, e a abolição do Evangelho.

Notas: [1] "Lei & Evangelho", Editor: Stanley Gundry, Ed. Vida, pg. 39, edição esgotada
[2] Novamente, indico a leitura do meu texto "Lei e Graça: revelação divina"
[3] "Lei & Evangelho", pg. 62

13 dezembro 2010

Cristo não é Senhor dos que correm, mas dos quais se compadece




















Por Jorge Fernandes Isah 


Há um trecho na Escritura que sempre me comoveu desde que o li, a primeira vez, logo após a minha conversão. As palavras de Jesus soavam duras demais para os meus ouvidos sensíveis e pouco acostumados com a verdade; e não considerava o caráter justo de Deus, muito menos a sua obra como eficaz, na qual ele veria o fruto do seu trabalho e se satisfaria; o que vale dizer que Cristo considerou a sua obra concluída, acabada e não por terminar, como querem alguns, ainda que inconscientemente [Is 53.11].

A maioria utiliza-no em seu caráter santificador, com perguntas do tipo: Você conhece Jesus?... Você obedece a Deus?... O seu entendimento sobre Cristo é apenas cognitivo?... Quando vai conhecê-lo em seu coração? Ou afirmações parecidas com: Você tem de viver o Evangelho... Não basta crer, pois até os demônios crêem... O seu relacionamento tem de ser pessoal com Deus. E por aí afora...[1]

Não estou dizendo que as perguntas e as afirmativas estão erradas, mas elas falham em compreender algo fundamental e que tem sido relegado a um ponto senão obscuro, ininteligível, para nós; e toda vez que o trecho é comentado ou usado, emprega-mo-lo como se destinado exclusivamente para fariseus, hereges e ímpios; porém há algo muito mais fantástico em sua sentença, algo que me emociona sobremaneira, hoje mais que ontem: o esforço pessoal é irrelevante para Deus, pois importa-lhe tão somente os eleitos, aqueles que escolheu por sua vontade. E ponto final.

Estou a defender o antinomismo? De forma alguma! Acontece que a lei não é objeto de salvação, mas o salvo tem prazer em cumpri-la[2]. Enquanto, para o ímpio, resta obedecer-lha, em seu caráter temporal, para não ser punido, sem que haja qualquer prazer em sujeitar-se. E nem mesmo a lei é o que separa eleitos de réprobos, salvos de condenados, mas a eleição eficaz de Deus, a qual determinou a condição de cada um dos seres humanos; como está escrito: E porá as ovelhas à sua direita, mas os bodes à esquerda. Então dirá o Rei aos que estiverem à sua direita: Vinde, benditos de meu Pai, possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo... Então dirá também aos que estiverem à sua esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos” [Mt 25.33, 34, 41]. Os santos não foram incluídos no Reino por um sistema de recompensa, como uma “bonificação” aos obedientes, um prêmio aos que se mantêm fiéis a Deus; mas o Reino foi criado para os eleitos, os santos, antes da fundação do mundo, como o lugar onde todos os escolhidos reinarão “com toda a sorte de bênçãos espirituais nos lugares celestiais em Cristo” [Ef 1.3]. Por isso, ele nos elegeu antes da Criação, para sermos “santos e irrepreensíveis diante dele em amor” [Ef 1.4]; e “nos predestinou para filhos de adoção por Jesus Cristo, para si mesmo, segundo o beneplácito de sua vontade, para louvor da glória de sua graça, pela qual nos fez agradáveis a si no Amado” [Ef 1.5-6].

A ação divina não é passiva, do tipo, Deus viu que o homem se salvaria, se santificaria, se esforçaria em entrar no Reino, aceitaria-no e, então, somente então, Deus o predestinaria e o elegeria. Mas que eleição é essa onde o eleito é quem se auto-predestina? Onde o escolhido se auto-escolhe e impõe a sua escolha por seus próprios méritos para aquele que o predestinou? O que vem primeiro, a predestinação ou o esforço do eleito em satisfazê-la, e por isso, ser predestinado? Seria o mesmo que dizer que alguém se afogou antes de entrar na água. A predestinação, por mais que se queira distorcer o seu sentido, tem  somente uma definição, de acordo com o Priberam:

predestinar - (latim praedestino, -are)
v. tr.
1. Eleger desde a eternidade (ex.: afirmou que Deus predestina os justos).
2. Destinar para grandes coisas ou para determinado fim. = eleger
3. Destinar com antecedência


Ora, predestinar é claramente a atitude de destinar antecipadamente, de previamente decidir, e não o ato de antever o que irá acontecer e então determinar que aconteça. E, então, fica a pergunta: quem garantiu que o evento aconteceria? Deus? O homem? O acaso? Forças impessoais? Ou a cooperação mútua dessas forças? O que não entendo é: se Deus viu o que iria acontecer, como algo certo, visto tê-lo previsto, por que o determinaria já que o fato é, em si mesmo, exequível em sua realização, e não dependeu da sua vontade ou decisão para ser observado? Pelo contrário, o fato previsto seria soberanamente livre, impedindo que Deus agisse para mudá-lo, ainda que não fosse do seu agrado. Isso não levaria à conclusão de que esse "Deus" antes de ser pessoal é um "Deus" impessoal? E a presdestinação, assim como a eleição, não passaria de uma piada sem graça, um xiste, que tornaria esse "Deus" num mero espectador, a endossar obrigatoriamente até mesmo o que lhe contrariaria? Em outras palavras, a sua soberania seria uma lenda, e tudo, desde a Criação, teria de ter outra explicação; tudo, na verdade, não poderia vir da vontade desse "Deus", mas de outra força, pois o que ele faz é consentir que cada evento ocorra como visto, e a sua vontade seja adequada a cada evento de tal forma que eles permaneçam imutáveis. A vontade dele se subordinaria à inexorável realização do ato antevisto. Por todos os lados, o que temos aqui não é o Deus bíblico, mas um "Deus" impotente, escravo da visão; um "Deus" transitivo quando a revelação nos apresenta o Deus intransitivo, completo e perfeito em si mesmo. Contudo, estou saindo do foco desta postagem, ainda que este seja um elemento pertinente a ela...

Voltando à vaca-fria, do ponto de vista humano, seria possível se equilibrar em uma corda-bamba, sem pára-quedas, dez mil pés de altitude, com ar rarefeito, rajadas fortes de vento, chuvas, gelo, e a gravidade puxando-o incontinênti para baixo?[3]. Como  manter-se assim, por si só? Quais forças o sustentariam, impedindo-o de despencar em queda-livre? De ser tragado no espaço? Essa é a condição do homem diante do pecado e da condenação; fatalmente será sugado por eles, destruído, se Deus não agir ativamente, em todo o processo, sustentando-o na corda-bamba. Na verdade, ele nos tirou dela, e nos colocou são e salvos no chão, em terra firme, enquanto quem tomou o nosso lugar foi Cristo. E os ímpios? Os que não se esborracharam ainda no chão? Estão precipitados no ar, a espera de juntarem-se aos corpos estatelados no abismo.

Mas, esse não é o trecho em questão, que me comoveu nos últimos anos. Então, qual é?

“Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus” [Mt 7.21]

Bem, a exigência de obediência está evidente, não é? Claro! Somente entrarão nos céus aqueles que fazem a vontade do Pai, certo? Sim. Então, onde está o problema apontado por você? De haver uma leve distorção nesse ensino? Respondendo a mim mesmo, pergunto: quem faz a vontade do Pai? Alguém, entre nós, é capaz disso? Há de se entender que a vontade divina não é uma parte, nem fração ou divisão. Não são peças de um quebra-cabeças que se vai montando; ela é pronta e acabada, não restando o que pôr ou retirar. O Senhor referiu-se a ela como “a vontade”, única, inseparável, não-repartida. Assim, quem se habilita ao Reino dos céus?

Seguindo o esquema soteriológico vigente no presente século, Cristo morreu por todos, e cabe a cada um dentre todos, alcançá-lo por seus próprios meios, como um feito, uma obra pessoal. Segundo esse mesmo sistema, o homem pode conseguir salvar-se mas pode perder-se novamente ao falhar em cumprir a vontade do Pai. Mas não bastaria uma falha para tudo ir por água abaixo? Ou seja, mesmo que Cristo tenha morrido por todos, é possível que ninguém seja salvo, pois o princípio da obediência é a vontade divina como um todo, completa, não uma partícula, não uma seção; visto a salvação vir pela fé em Cristo, mas a fé não ser suficiente, pois se tem de, ainda que seja no ato inicial, alcançá-la pelo esforço individual de aceitar aquilo que está sendo proposto.

O arrependimento não justifica o erro, nem pode anulá-lo. O arrependimento é o agradecimento por, ainda que errando, Deus nos haver perdoado; é o reconhecimento daquilo que fez ao anular a dívida que tínhamos, pelo sacrifício de Cristo na cruz. O arrependimento não pode nos livrar da condenação, por isso, Judas permaneceu condenado em seus pecados, mesmo reconhecendo seus erros. Uma dívida não pode ser paga a menos que seja quitada. Como não nos foi possível remi-la, Jesus tomou o nosso lugar e, "havendo riscado a cédula que era contra nós nas suas ordenanças, a qual de alguma maneira nos era contrária, e a tirou do meio de nós, cravando-a na cruz" [Cl 2.14]; perdoando-nos todas as ofensas. Elas foram pagas de uma só vez, pela obediência completa do Filho de Deus, não sendo possível imputar a quem foi perdoado nova condenação. No tribunal de Cristo não há recursos nem apelações, dívida paga, dívida quitada, não há débitos, nem a possibilidade de serem reavidos, cobrados e pagos outra vez. Por isso, Paulo diz que é impossível ao salvo recair e ser novamente renovado para o arrependimento; se tal coisa acontecesse, "de novo crucificam o Filho de Deus, e o expõem ao vitupério" [Hb 6.6]

Voltando ao exemplo do homem em queda-livre, sem pára-quedas, o que pode ele fazer além de esperar por um milagre? Nada. É o caso do homem em relação à sua salvação. Não lhe resta nada a fazer, pois o que foi feito por Cristo é plenamente eficaz, de tal forma que nenhum acréscimo é-lhe permitido, sendo perfeito, e ao perfeito não se adiciona coisa alguma. Porque ele, e somente ele, foi capaz de satisfazer toda a vontade do Pai; de obedecê-la integralmente, sem falhas nem tropeços, equilibrando-se na corda-bamba de ponta a ponta, dominando-se a si mesmo sem inclinar-se para um lado ou outro do abismo. Por isso, tem a autoridade para responder aos réprobos: “Muitos me dirão naquele dia: Senhor, Senhor, não profetizamos nós em teu nome? e em teu nome não expulsamos demônios? E em teu nome não fizemos muitas maravilhas? E então lhes direi abertamente: Nunca vos conheci; apartai-vos de mim, vós que praticais a iniqüidade” [Mt 7.22-23].

Há alguns aspectos a serem abordados aqui:
    
1)      Ímpios podem ser usados por Deus para fazerem a sua obra, segundo a sua vontade, já que também são servos, como tudo o que foi criado está-lhe sujeito e a servi-lo. Portanto, haverá nessa lista de “desconhecidos do Senhor”, pastores, missionários, teólogos, e mesmo pessoas que, aos olhos humanos e carnais, eram irrepreensíveis, assim como Paulo era entre os judeus [Fp 3.6].
2)      Eles podem fazer muitas coisas, como: profetizar, expulsar demônios e outras maravilhas, mas isso não lhes assegurará a participação no Reino; evidência de que, como disse no início deste texto, Deus não se importa com o nosso esforço pessoal, o qual nada vale se não for como conseqüência dele nos conhecer, predestinar, chamar, justificar e glorificar; verbos que guardam em si ações diretas, ativas de Deus na vida daqueles que destinou a “serem conformes à imagem de seu Filho, a fim de que ele seja o primogênito entre muitos irmãos” [Rm 8.29].
3)      A despeito de tudo o que fizeram, em nome de Cristo, ele lhes dirá abertamente: “Nunca vos conheci”. Essa afirmação guarda um tesouro, não para os desconhecidos, mas para os conhecidos. Dirão alguns que isso é a prova da presciência, da antevisão divina, assim como um vidente vê o futuro, apenas e tão somente, sem poder intervir nele. A palavra “conheci” procede do grego ginosko[4] indicando “ter a ver com”, “conhecer pessoalmente”. Cristo quis dizer que “não tinha nada a ver com aqueles homens”, “que nunca teve nada a ver com eles”, “que os desconhecia”, por isso deviam apartar-se dele. Fica a pergunta: se Cristo morreu por eles, como era possível que não os conhecesse e tivesse um conhecimento pessoal? Em contrapartida, aqueles que “conhece”, têm tudo a ver consigo, são-lhe íntimos, têm uma relação estreita, ao ponto do Pai vê-los por intermédio do Filho, que satisfaz a sua vontade. E a satisfez plenamente na cruz, ao morrer por aqueles que o Pai lhe deu, os quais jamais se perderão e sairão das suas mãos. Cristo morreu por suas ovelhas apenas, não por todas, e ele mesmo se encarregou de agregar as que ainda não estavam em seu aprisco... e elas ouvirão a sua voz, “e haverá um rebanho e um Pastor” [Jo 10.16]. Por isso, Cristo ainda diz: “Não me escolhestes vós a mim, mas eu vos escolhi a vós... Eu rogo por eles; não rogo pelo mundo, mas por aqueles que me deste, porque são teus” [Jo 15.16, 17.9].

A relação aqui é de posse; somos de Cristo, assim como somos do Pai, o mundo não é de Cristo, no sentido específico da salvação, do ato expiatório do Senhor ser objetivado aos eleitos, e não à humanidade genericamente. Somos de Cristo, pois, por nós, morreu, resgatando-nos com o seu próprio sangue [At 20.28]. A segurança do eleito está nele, o qual nos conhece, e destinou-nos infalivelmente a que o conhecêssemos. Em outras palavras, Cristo nos conhece, e não há a menor chance daqueles que conhece não o conhecê-lo. Por isso, além de revelar a qualidade moral da obediência [no que todos os cristãos concordam], a qual é o padrão para fazer parte do Reino, incontestavelmente o trecho da Escritura reivindica a salvação e a reprovaçao como escolhas diretas de Deus sobre os homens, adquirindo o sentido exato de que a verdade comunicada é esta: “assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus que se compadece... Logo, pois, compadece-se de quem quer, e endurece a quem quer” [Rm 9.16, 18].

O que o Paulo quer dizer com isso? Você curou? Ótimo, mas não confie na cura que fez... Profetizou? Não confie em sua profecia... Expulsou demônios? Isso não lhe garante nada... Fez milagres? Cuidado!.. Fez maravilhas? E daí?... Se Deus falou por intermédio de uma jumenta, e usou ímpios como Ciro, Balaão e Judas para realizarem feitos muito maiores do que esses; por que não pode usá-lo? E, mesmo assim, nem o animal ou aqueles homens foram salvos, antes foram condenados, “para que o propósito de Deus, segundo a eleição, ficasse firme, não por causa das obras, mas por aquele que chama” [Rm 9.11]. Logo, o que impede Deus de usá-lo na pregação, no evangelismo, no sustento ministerial, e ainda assim condená-lo?

Para concluir, mais duas colocações:

Primeira, como já disse, não estou defendendo nenhum conceito antinomiano, nem de que as exortações da Bíblia para que busquemos a Deus, obedeça-mo-lo, e sejamos santos como ele é santo, são inúteis e incapazes de serem cumpridas. Nada disso! A obediência não é um salvo-conduto para se ingressar no Reino, pelo contrário, se não houver o chamado divino, e Deus não o capacitar a realizar esses e outros feitos para a sua glória, nem mesmo a maior de todas as maravilhas o impedirá de ir para o inferno. Servir a Deus e ser-lhe obediente são consequências e não causas da salvação. O eleito, após a regeneração, deverá buscar, se esforçar, e lutar para, dia após dia, ser transformado à imagem de Cristo, não como algo intrínseco à sua natureza, mas como dádiva do Senhor pela qual somos, nos movemos e existimos. Em outras palavras, se o eleito busca, se esforça e luta para ser como o seu Senhor, é porque Deus opera nele até mesmo nos pensamentos e desejos menos evidenciáveis, de tal forma que se cumpra a promessa de Deus tê-lo elegido desde o princípio para a salvação, em santificação do Espírito, e fé da verdade... para alcançar a glória de nosso Senhor Jesus Cristo [2Ts 2.13-14].

Segunda, o entendimento da soberania de Deus não é algo que pode ser mudado conforme a nossa conveniência. Algo que sempre me trouxe paz é saber que, mesmo numa eventual não-eleição [como uma hipótese], e sendo condenado ao fogo do inferno, eu daria glória a Deus, bendiria-o, e declararia a todos a sua santidade, perfeição, justiça, mesmo em meio as labaredas eternas, pois a sua vontade irretocável cumprir-se-ia soberanamente.

Com isso, não estou a duvidar da minha salvação e eleição, mas reconhecer que o Senhor permanece o que é e sempre foi, que a sua natureza não pode ser abalada em nenhum aspecto, ainda que o inferno fosse o meu destino. Não está errado reconhecer a justiça e perfeição divinas por nos salvar; mas o fato de não ser salvo, e estar destinado à condenação, não o tornaria injusto, mau ou tirano. Por ser essa a sua vontade e, portanto, santa e perfeita.
Fazendo uma analogia, utilizando-me de um trecho do livro de Jó, Deus permanece Deus a despeito da minha condição e situação, pois "nu saí do ventre de minha mãe e nu tornarei para lá; o Senhor o deu, e o Senhor o tomou: bendito seja o nome do Senhor" [Jó 2.21].

Ele entendeu isso. Cabe-nos fazer o mesmo.

Notas: [1] Este texto é a segunda parte, a continuação, ao entitulado “Deus não faz acepção de pessoas”.
[2] Escrevi sobre a lei, dizendo que ela sempre tem o caráter de condenar e jamais salvar em “Lei e Graça: revelação divina”
[3] Analogias não são totalmente eficientes e confiáveis quando relacionadas ao texto bíblico, mas podem nos dar uma idéia do que ela está dizendo, facilitando o entendimento; sendo as analogias falíveis, como falível é o nosso pensamento.
[4] Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, pg 398, Editora Vida Nova

06 dezembro 2010

Lei e Graça: revelação divina












Por Jorge Fernandes Isah

   Qual o objetivo da Lei? [1]
   Salvar? Condenar?
   Há uma terrível confusão entre os cristãos. Muitos acham que a Lei teve, em algum momento da história, o caráter de salvar. Fica a pergunta: quem foi salvo? Houve um homem, apenas um, que fosse salvo por ela? Nenhum. Então, por que veio a Lei? “Foi ordenada por causa das transgressões”, disse Paulo [Gl 3.19], “porque onde não há lei também não há transgressão” [Rm 4.15]. Parece que é mais ou menos isso que não somente os ímpios querem, mas muitos cristãos também. Talvez numa forma inconsciente de antinomia; talvez por desejarem pecar livremente; talvez por descuido ou ignorância; talvez porque o laicismo grite mais alto do que a lei de Deus no coração. Ou seria, meramente, outra forma de soberba dos tempos modernos? Um intelectualismo estereotipado com o intuito de se apresentar como alguém civilizado, progressista e não-retrógrado? O certo é que a lei tem o caráter de revelar o pecado, mas não somente isso, de também puni-lo. Contudo, esse preâmbulo será alvo de outra postagem, o que me interessa agora é responder à pergunta: a Lei pode salvar? Ou Deus deu-lhe vida para que todos fossem julgados e condenados por ela?
   Primeiro, como é de praxe, vamos às definições dos termos:
1)      Lei – A palavra lei foi usada para traduzir o termo hebraico “tora”, que significa instrução ou doutrina, e a palavra grega “nomos”, que significa hábito estabelecido. Em ambos os casos indicam alguma regra ou regulamento imposto sobre o homem ou a natureza por um poder superior. Ao legislador reserva-se o direito de punir toda infração e desobediência.
2)      Lei Natural – É a Lei de Deus gravada nos corações humanos “testificando juntamente a sua consciência, e os seus pensamentos, quer acusando-os, quer defendendo-os” [Rm 2.15]; ao ponto em que até mesmo os gentios que não têm a lei, ao fazerem naturalmente as coisas que são da lei, para si mesmos são lei [v.14].
3)      Lei Mosaica – Ela se divide em:
a)      Lei Moral – resumida nos Dez Mandamentos, ou Dez Palavras, que regula a relação do homem com Deus e o próximo.
b)      Lei Civil – são aplicações ou amplificações da Lei Moral a casos específicos, detalhando os Dez Mandamentos.
c)      Lei Cerimonial – regulava os ritos relativos ao sacerdócio e aos sacrifícios, o ministério no santuário do Tabernáculo e depois no Templo.
   A lei natural escrita nos corações do homem, quando da Criação, não foi suficiente para que ele não pecasse; de tal maneira que, pela corrupção do homem, foi necessário escrevê-la, literalmente, para lembrar-nos da obrigação que temos diante de Deus.
   Analisemos o caso de Adão: Se não houvesse a lei, a ordem expressa de Deus para não pecar/desobedecer, comendo do fruto da árvore do bem e do mal, ele estaria tranquilamente até hoje no Éden, pois não precisaria da lei para se salvar, já que estava “salvo”. Porém, quando Deus lhe deu o mandamento, ele teve o nítido caráter de revelar o pecado “latente” em Adão; mostrando a sua imperfeição do ponto de vista não da Criação, como algo bom, mas em relação a Deus. Os privilégios dos quais desfrutava, a partir da lei e do pecado [que invariavelmente aconteceria e não havia como não acontecer], perderam-se, e o homem passou a viver como uma miserável criatura. Com ele, o qual era o cabeça da humanidade, toda a Criação caiu, não do seu caráter perfeito, mas da ordem natural, tornando-se em caos [Gn 3.16-19]. O natural se tornou antinatural, e foi preciso que o próprio Deus, na pessoa de Cristo, encarnasse e viesse ao mundo para restabelecer a ordem perdida, primeiro, nos eleitos e, quando da sua segunda vinda, em todo o Cosmos.
                                 Pausa.
   Apenas para evitar confusão, o meu entendimento é de que a ordem lógica das coisas não foi essa, mas antes se deu pelo amor de Deus para com os eleitos e, assim, veio a Criação, a Queda, a Redenção e a Santificação. Deus determinou todas as coisas por causa dos eleitos e, por eles, fez ver ao mundo o seu amor, graça, justiça e glória, ainda que o mundo não possa ver nem entender, mas os que foram chamados exclusivamente por ele a Cristo, o verão como é.
                                Voltando da pausa.
   Portanto, qualquer um que disser que a lei poderia levar à salvação, em alguma hipótese, estará a cometer um grave erro. Ela vem para condenar, revelando o pecado e decretando a punição do infrator, e do ponto de vista pedagógico, levar os eleitos a Cristo, do qual somos completamente dependentes para sermos restaurados. Com isso não estou a dizer que voltaremos à condição de Adão, no Éden, antes da Queda; que para muitos era perfeita, mas perfeita em quê? Ou em relação a quê? Se na primeira oportunidade Adão não exitou em pecar?
   Para a maioria dos cristãos, e mesmo a maioria calvinista, regindo-se pelo pensamento de Agostinho [2], o primeiro homem podia escolher entre pecar e não pecar. Contudo, fica a pergunta: diante da lei, o que se evidenciou na natureza de Adão e em nós? O pecado. Não a possibilidade de rejeitá-lo, nem de se manter puro, incontaminado, mas uma disposição natural para a depravação, para a rebeldia. É o que Paulo parece dizer: “Ora, nós sabemos que tudo o que a lei diz, aos que estão debaixo da lei o diz, para que toda a boca esteja fechada e todo o mundo seja condenável diante de Deus” [Rm 3.19]. Pensem comigo: se Adão não tivesse pecado, a lei o salvaria, mas o salvaria de quê? Qual justiça Adão buscaria na lei? Ela não lhe traria benefício algum, nenhum “extra” se a cumprisse, mas o de manter-se no estado em que se encontrava. “De toda a árvore do jardim comeras livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás” [Gn 2.16-17]. A lei veio portanto para salvá-lo? Ou para condená-lo? Qual é o seu papel? Em que Adão foi favorecido? Em nada, porque a Queda era inevitável. A lei veio revelar que Adão [e nós, os quais pecamos juntamente com ele], não podia não pecar, mas certamente pecaria, como pecou. Porque Deus encerrou tudo debaixo do pecado; e guardou-nos debaixo da lei, desde Adão; e encerrou-nos para a fé que havia de se manifestar em Jesus Cristo, para que fôssemos justificados [Gl 3.21-24].
   Assim, Cristo não veio restaurar a perfeição do homem, a qual não havia, mas fazer-lhe perfeito. Primeiro, por imputação, o seu sacrifício já nos fez e tornou-nos perfeitos nele; e segundo, de fato, quando na eternidade, ao contrário do Éden, será impossível ao homem pecar. Cristo veio restaurar a condição inicial do homem antes da lei, quando não havia a possibilidade de pecado, visto não haver o “aio” que estabeleceria e normatizaria uma conduta e prática pecaminosa. Antes da lei, era impossível para Adão pecar. Antes da lei, Adão não teria como cair. Sem a lei, Adão permaneceria em seu estado de pureza “irresponsável”. Sem a lei e seus preceitos, ele era “livre” e não poderia ser acusado de nenhuma transgressão, pois não havia o que transgredir. Mas quando Deus lhe deu uma ordem, e mostrou-lhe o castigo caso desobedecesse a ordem, Adão não pode resistir. Em sua natureza, o pecado ainda não se manifestara, mas estava pronto a se revelar, a se desenvolver, bastando para isso as condições necessárias, o momento propício para tornar público o que estava oculto. A lei, em sua condição explicitamente condenatória, trouxe o pecado à tona, e fez com que todos se tornassem injustificáveis em si mesmos; que a possibilidade de falar por meio das obras fosse silenciada definitivamente; “porque pela lei vem o conhecimento do pecado” [Rm 3.20]. E, por ela, somos feitos pecadores, e indesculpáveis diante de Deus.
   A lei não traz vida para a salvação, mas a morte [Rm 7.9-11]. A lei não justifica, mas acusa. Jamais liberta, mas escraviza [Gl 4.21-31]. A lei poderia absolver alguém, hipoteticamente falando, se todos não fossemos pecadores.  A lei poderia declarar um homem justo, se todos não fossem injustos. A lei promete uma vida impossível, e uma morte evidente. A lei reclama que se olhe a realidade do pecado, e é inadmissível não vê-lo. E por isso é maravilhosa, santa, perfeita, pois sem ela, jamais seria revelado aos eleitos o amor de Deus. Jamais haveria Cristo, homem, e a certeza de um dia sermos como ele. Jamais seríamos perfeitos, mas num estado de falsa perfeição. A lei não nos exalta, mas humilha. Traz sobre todos os ímpios a ira de Deus [Ef 2.3]. Nos coloca em nossos devidos lugares, como carentes, desesperadamente sujeitos à misericórdia, autoridade, graça e poder de Deus. A lei nos põe debaixo da maldição, para sermos resgatados por Cristo, o qual se fez maldição por nós [Gl 3.13].
    Em todos os aspectos da lei, ela não tem como nos salvar, nem alguém pode ser salvo por ela. Se a lei pudesse trazer vida, a justiça teria sido por ela; mas aprouve a Deus nos chamar à vida por seu Filho Amado Jesus Cristo. Por ele, somos feitos santos, e nos fará de fato santos, não porque escolhemos ser santos, mas porque ele nos escolheu santificar; e, uma vez com ele, com ele estaremos para sempre em perfeição e santidade.
    Concluindo, a lei foi criada por Deus para estabelecer e determinar o caráter pecaminoso de nossa alma, do contrário não haveria pecado, pois não haveria transgressão, nem inobservância da lei. O que exclui qualquer possibilidade de justiça e justificação, de tal forma que estaria o homem livre para agir segundo o seu coração, sem impedimento, como um homem sem lei [Rm 7.9].
   Não há nenhuma oferta de “boas novas” na lei, hipotética ou real, que propõe a salvação estando à disposição de todos que aceitassem a tarefa de obedecê-la até à perfeição; especialmente porque, além de Cristo, ninguém mais foi capaz de cumpri-la, logo, não há base para qualquer suposição teológica que corrobore a justificação legal.
   A lei trouxe a justiça ao nos tornar injustos, revelando a justiça de Deus e a necessidade de sermos justificados por ele. Em outras palavras, o que ela revela é o completo desperdício e inutilidade do homem buscar a justiça de Deus na lei, sendo ela mesma a revelar-nos a sua ineficiência para a salvação. Foi o que Paulo disse: “Porque eu, pela lei, estou morto para a lei, para viver para Deus” [Gl 2.19].
  Adão, ainda que não houvesse lei teria de ser regenerado em sua natureza; o que a lei fez foi revelar-lhe, e a todos nós, que os seus caminhos eram maus, e de que carecia de Deus para ser resgatado, transformado, e colocado na trilha dos seus perfeitos e santos caminhos.
  Ficam as perguntas: a lei foi abolida pela graça? Ou ela se revelou na graça?
  Tentarei responder mais à frente. Se Deus quiser.

Notas: [1] Este texto foi escrito previamente há mais de dois meses. Pretendia publicá-lo em seguida à minha exposição da graça, tema dos dois últimos textos, mas optei por antecipá-lo agora. 
[2] Agostinho defendia o que, séculos depois, ficou conhecido como esquema infralapsariano.

22 novembro 2010

Pagando a dívida, e ainda devedor [Comentário a Gl 2.20]













Por Jorge Fernandes Isah

    Gálatas 2.20 é um versículo precioso, poderia dizer, inigualável. Não somente porque foi o versículo da minha conversão [que descrevi no texto O dia em que Cristo me fez], mas porque, de uma forma singular, poder-se-ia resumir a vida cristã ou, ao menos, descrevê-la plenamente. É também o alvo, o de um dia poder dizer: “Já estou crucificado com Cristo; e vivo, não mais eu, mas Cristo vive em mim”. São palavras que me acalentam, me dominam, me compungem a encontrar-me nelas. Poderia ser a epígrafe cravada na minha sepultura, porém, muito mais a quero gravada em meu coração. O resumo de tudo o que almejo e quero experimentar. Mais do que isso, ser. E desde aquele momento, decorei-as, como se decora a melodia da mais bela entre todas as canções. Como se ouvisse a sinfonia perfeita, inefável, a síntese do mais puro e santo sentido, ainda que com palavras indizíveis em sua verdade absoluta e extraordinária. Como se estivesse a construir algo que sei impossível, por mim mesmo, construir. De certa forma, invejo a Paulo por ter sido ele e não eu a proferi-las; mas creio que saídas de sua boca, elas têm o som da minha voz, o som da sua voz, o som da voz de todos os santos, daqueles que são um em Cristo, e por ele vivem.
     
       Mas, o que levou o apóstolo a proferi-las?
    
     A mensagem central de Gálatas é a disputa: Lei x Evangelho. Em vários momentos, parece haver o desprezo de Paulo pela lei, como se fosse descartável e não existisse mais nenhum sentido nela. Mas esse não é o caso. Em outra carta, ele diz: "E assim a lei é santa, e o mandamento santo, justo e bom” [Rm 7.12]. E, ainda: “Anulamos, pois, a lei pela fé? De maneira nenhuma, antes estabelecemos a lei” [Rm 3.31].
    
   O que está em disputa entre Paulo e os judaizantes é a lei como instrumento de salvação. Eles pregavam contra o Evangelho, ao afirmar que era necessário se cumprir toda a lei para salvar-se. Por isso, o apóstolo diz: “Se a justiça provém da lei, segue-se que Cristo morreu debalde” [ 2.21]. Ora, se para ser salvo o crente deveria cumprir toda a lei, qual a razão de Cristo encarnar, padecer, e morrer na cruz? Por isso o homem não é justificado pelas obras da lei, mas pela fé em Jesus Cristo [2.16]. Desta forma, Paulo constrói a defesa do Evangelho da Graça, sem que haja nenhum tom antinominiano [1] em seu discurso, pelo contrário: “É porventura Cristo ministro do pecado? De maneira nenhuma. Porque, se torno a edificar aquilo que destruí, constituo-me a mim mesmo transgressor” [2.18].

     Se Cristo pagou na cruz a dívida que tínhamos para com Deus, e se está paga, definitivamente paga, o que mais podemos fazer que ele não fez? Fico a imaginar Paulo rindo-se da tolice desses homens, mas entristecendo-se pelo caráter sutil e maligno de distorcerem a fé a fim de enganar incautos, e anular a graça.  Cristo, ao destruir o pecado e seu caráter condenatório sobre os eleitos, não poderia restituí-lo novamente, ao ponto em que seria exigido o cumprimento da lei para a salvação. Se a justiça foi decretada na cruz para os que crêem, se o pecado foi morto, ressuscitá-lo significaria dizer, entre outras coisas, que a obra do Senhor não foi eficaz, e de que, loucamente, ao trazer a justiça, trouxe a injustiça.

  O apóstolo está a condenar aqueles que anteriormente pregavam o Evangelho da graça, para agora viver pela lei, tornando-os em transgressores, porque quem não está morto para a lei, vive para ela, ou seja, vive para a morte, pois pela lei ninguém pode ser justificado perante Deus [3.11],  antes está debaixo da maldição da lei. Ao contrário, quem está morto para a lei, vive para Deus, eternamente. Paulo ensina a teologia correta, a doutrina correta, mas muito mais do que isso.

      Ele disse que estava morto para a lei.

      Que estava crucificado com Cristo.


      Que vivia, não mais ele, mas Cristo.


      Que Cristo o amou, e se entregou a si mesmo por ele.


      Então, o que levou o apóstolo a proferir o verso 2.20?

    A consciência de tudo isso acima, mas, sobretudo, reconhecer que, sem Cristo, nada disso seria possível. Nem mesmo ele, Paulo, seria possível. De uma forma maravilhosa, Paulo reconhecia a completa dependência do Senhor, e a obra fantástica que fez para que ele pudesse reconhecer-se em Cristo. Sem ele, o que seria Paulo? Sem Cristo, o que seria eu? Você? Não haveria esperança, não haveria o perdão, nem a salvação. Apenas a tristeza assoladora de que a condenação era questão de tempo, irremediável, uma maldição a pairar sobre nossas cabeças eternamente. E se eu, antes condenado, agora salvo pelo poder de Deus, o que quereria exaltar em mim mesmo para voltar à destruição? Ou seria possível exaltar-me na ruína? Ou antes, arrependendo-me de mim mesmo para ser um dia como Cristo é? Pois se olharmos para nós, como somos, sem Cristo, não haverá nada além de  condenados sem que seja preciso esperar o castigo, pois estamos já a “curtir”, sobre nós, a ira de Deus. Se olhar para mim, descobrirei apenas que sou miserável, e nu, e cego. Se olhar, e apenas me ver, há um pecador naufragando em pecados. Se sou o futuro, não há futuro; apenas o passado de morte, de sofrimento e angústia. Ao contrário, se vejo Cristo em mim, assim como Paulo o via em si, as coisas mudam de figura. Já não sou mais um condenado, antes justificado. De pecador, a santo. De maldito, a bendito. De desgraçado e vil, a agraciado e amado.

    A teologia de Paulo [2] estava certa. Ela lhe trouxe esperança, certeza, convicção. E abriu-lhe os olhos para a mais surpreendente e inesperada verdade, de que ele já não era mais ele, mas Cristo a viver nele. E trazia no seu corpo as marcas do Senhor [6.17], marcas profundas que não o impediam de se ver como era, de reconhecer o que era, de gloriar-se nas fraquezas para que o poder do Senhor em si habitasse [1Co 12.9].  Porém, antes era necessário que compreendesse e conhecesse isso, para depois sentir; pois, como sentir o que não se conhece ou não compreende? Como alguém desejará o que não conhece?

    Como qualquer homem, ele tinha de nascer, crescer e amadurecer na fé. Mas ninguém nasce por si mesmo; era necessário que fosse gerado por Cristo; que o sangue do Senhor não somente o limpasse dos pecados, mas corresse em suas veias e bombeasse no seu coração a vida. A vida que somente o Senhor poderia dar, e deu, a despeito de todo o desejo de nos apossar dela como se fosse nossa por direito, e não por dádiva, misericordiosa, e graciosamente entregue pelo amor com que Deus nos amou. O caminho nos é mostrado, mas não há nada que nos faça andar nele, se não nos for revelado. Quem não pode ver, como saberá onde andar?

    O certo é que, como João o Batista disse, era necessário que ele diminuísse e Cristo crescesse [Jo 3.30].

      E assim será para todos os que foram crucificados e mortos com Cristo.

     Se ele não viver em nós, a morte viverá.

Nota: [1] Antinomianismo significa “antilei”. É o oposto de legalismo, e como ele, uma heresia. Para os defensores do antinomianismo, o crente não tem de obedecer à lei de Deus, pois Cristo à pregou na cruz. E se a pregou na cruz, está-se livre para viver como quiser, inclusive pecando o quanto quiser; ao ponto de até mesmo distorcerem o sentido de graça, ao afirmar que, quanto mais se peca, mais a graça se manifesta.
[2] Paulo, ao defender magistralmente o Evangelho da graça, afirmando a justificação somente pela fé no sangue derramado de Cristo na cruz, defende também a sua autoridade e ministério contra os falsos-mestres, os detratores que buscavam difamá-lo e desqualificá-lo como apóstolo. E nada mais verdadeiro do que reafirmar que estava morto para si, para viver para Cristo, enquanto aqueles queriam viver por si mesmos.
[3] Aguçado pela conversa com uma querida irmã, lembrei-me que devia um texto sobre Gl 2.20. E, por mais que escreva, sempre serei devedor a Deus por tê-lo dado a mim.
[4] Não entrei muito na questão da impossibilidade da lei como meio de salvação, a qual farei brevemente em outro texto.