23 fevereiro 2024

O Velho e o Mar - Ernest Hemingway


 


Jorge F. Isah



Como sempre acontece, existem leituras a suscitar curiosidade e interesse, mas negligenciadas, seja lá por qual motivo, durante anos e mesmo décadas. “O Velho e o mar” é uma delas. Li a novela (há quem insista em chamar de romance, mas eu prefiro descrevê-lo como novela) ainda adolescente, e sempre nutria, à medida que os anos avançavam, o desejo de reler, ou melhor, de lê-lo de verdade. Se inicialmente as impressões eram sobre a luta do homem com a natureza e suas forças aleatórias e caóticas, sobre a sobrevivência em seu estado mais puro e brutal, a velhice e inevitabilidade da morte, pude confirmar a maioria e acrescentar algumas outras.

Desde quando li, pela primeira, “Adeus às Armas” e embrenhei-me na escrita do americano, ela sempre me pareceu realista, quase ao ponto de ser autobiográfica, com poucos elementos ficcionais. A verdade é que o estilo de Ernest é muitas vezes áspero e violento, sem deixar, contudo, de esbarrar na poesia, sentimentos e emoções, e até mesmo em aspectos transcendentes, sem alijar a costumeira objetividade.

Talvez este seja o seu livro mais delicado, sem ser piegas ou ingênuo. Não. Em nada a história pode ser classificada por singela ou bucólica. Trata-se de um livro de sobrevivência, de luta pela vida, pela morte, de sucesso e fracasso. O próprio Hemingway se via as voltas com o ostracismo literário após o sucesso estrondoso de “Por quem os sinos dobram” (presente em minha lista há algumas décadas), morando em Cuba e se tornando ele mesmo um espectro do “velho” no mar. Nos dez anos a anteceder a publicação desta novela, o autor não produzira nada a chamar a atenção da crítica e público, e muitos o consideravam acabado para a literatura.

Mas, ele deu a volta por cima, e o velho Santiago, alterego de Ernest, é um ancião que perdeu a sorte na pesca e está há mais de oitenta dias sem fisgar nada. Alguma semelhança?... Dia sim, outro também, põe o seu barco em movimento e, como se diz entre os pescadores, leva as suas iscas para tomar banho. Não tem parentes ou amigos, à exceção do jovem aprendiz Manolin, a acompanhá-lo nas pescarias frustradas. Com isso, seus pais convencem o rapaz a abandonar o mestre e se juntar a outro que ainda não perdera a sorte. Manolin, como fiel escudeiro de Santiago, eleva-lhe o ânimo e estima, resgata histórias vividas por ambos e os vários sucessos nas investidas marítimas. Também supre-lhe as necessidades de comida, jamais o renegando.

Certa manhã, Santiago sai disposto a reverter o seu azar, novamente estimulado pelo pupilo, e aventura-se sozinho em mar aberto, no seu pequeno pesqueiro, e trava uma luta que durará dias com um Marlin azul ou Peixe-espada. Não foi à toa que Hemingway escolheu esse peixe, considerado por pescadores um dos maiores “brigadores” dos oceanos, capaz de chegar a quatro metros de comprimento e pesar meia tonelada. Essa era a sua batalha com outro “monstro” capaz de destruir almas e desgraçar vidas: a literatura. Diante do papel em branco, enfrentá-lo não é para qualquer um, seja calejado ou não no ofício da escrita. Em outras palavras, para o velho (ou Hemingway), era uma peleja difícil de se vencer, mas necessário desafiá-la. Com o tempo, adquire um certo “companheirismo” com o espadarte, passa a admirar a sua valentia, e até mesmo se arrepende de tê-lo pescado.

Em um dos momentos de meditação, ponderou:

“É maravilhoso e estranho, e quem sabe como será velho, pensou. Nunca apanhei um peixe tão forte, nem que se portasse tão estranhamente. Talvez não esteja disposto a saltar. Podia dar cabo de mim com um pulo ou uma correria desenfreada. Mas talvez já saiba o que é um anzol e que é assim que lhe convém lutar. Não pode saber que é um só contra ele, nem que é um velho. Mas que grande peixe! E, se a carne é boa, o que não dará no mercado! Mordeu a isca como um macho, é como um macho que puxa, e luta sem pânico algum.
Terá quaisquer planos, ou estará apenas tão desesperado como eu?”.[1]

Isolado, solitário, sem forças, com pouca água e comida, ferido, medita sobre várias coisas dos céus, da terra e do mar, e, entre elas, pairam dúvidas inclusive sobre sua profissão:

“Talvez eu não devesse ser pescador, pensou. Mas foi para isso que nasci. Não devo esquecer-me de comer a “tuna”, antes de aclarar”[2].

E reconhece também ser o peixe mais forte do que si, e a necessidade de não deixá-lo perceber sua fraqueza. Gostaria também que o garoto estive ali, para ajudá-lo a subjugar o animal:

“É um grande peixe, e tenho de o convencer, pensou. Não devo deixa-lo nunca tomar conhecimento da sua própria força, nem do que poderia fazer se corresse. Se eu estivesse no lugar dele, jogava o tudo por tudo, até que alguma coisa rebentasse. Mas, graças a Deus, não são tão inteligentes como nós, que os matamos, embora sejam mais nobres e mais capazes”.[3]

“Se o rapaz aqui estivesse, molharia as voltas da linha, pensou. Sim. Se o rapaz cá estivesse. Se o rapaz cá estivesse”.[4]

A narrativa é simples, acessível e moderada, sem ser bárbara (apesar de sanguinolenta e terrível) e, mesmo diante da morte e do iminente fracasso, permanece suave, tal qual calmaria após a tempestade. Certamente não é fraqueza, mas o sábio a reconhecer o imponderável e forças muito acima da sua capacidade e entendimento, a controlar o destino e rematar-lhe o final. Para um livro pequeno, a quantidade de significados abarcados são inúmeros; tem o caráter metafórico e análogo no conflito empreendido por Santiago e a saga de Hemingway as voltas com outro grande adversário: o desafio de vencer uma página por dia. Além, claro, dos aspectos a permear a vida de qualquer um, seja em qual tempo for, independente da situação, lugar ou circunstâncias, a verdade é que o livro tem caráter universal, aplicável a um, muitos ou todos, em diferentes nuances e minucias e, por isso, ganhou sucesso imediato.

Houve adaptações para o cinema (quero assistir ao Spencer Tracy), no teatro e na literatura. Não entendo a razão de muitos clássicos tornarem-se resumos ou sinopses. Especialmente quando se trata de uma obra próxima das cem páginas. Existe a peculiaridade de se tornar palatável e acessível volumes enormes a algumas dezenas de laudas, para atrair o público jovem, mas desconfio do tratamento dispensado a elas, mesmo saído da pena de grandes escritores.

Na infância, convivi com adaptações de Carlos Drummond de Andrade, Raquel de Queiroz, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Marques Rebello, entre outros nomes vultuosos e emblemáticos no Brasil, e usados nas aulas de português. Poder-se-ia, ao menos, cogitar um ou outro original, mas desde aquela época existia o hábito de subestimar alunos e tratá-los por incapazes de entender esse ou aquele autor, e vê-los como mendigos intelectuais. Vá lá! Nem tudo é possível ao inexperiente e juvenil leitor, mas aí se encontra a razão ou a lógica do mestre. Afinal, a ele é dado auxiliar e mesmo descortinar as complexas questões literários e da vida, certo? Errado. Já que cada vez mais os alunos são rebaixados e submetidos à pseudo literatura e pseudo autores, o trabalho se fazia mais fácil, e sem esquecer os interesses camuflados, jamais os estudantes tomarão contato com o que possa haver de real e verdadeiro. Dão-lhes a falsa ideia de ter, quando o pouco que não têm, é-lhes tirado.

Livros de quinhentas, seiscentas ou mais páginas eram condensados em cem, cento e poucas, e apesar do talento dos adaptadores, sempre foram mais danosas do que uteis. Então, me pergunto: qual o significado de resumir cem páginas em dez ou vinte?... O leitor indisposto a ler “O velho e o mar” se interessará por algo ainda mais diminuto; e, com o tempo, será capaz de apreciar os livros de Dickens, Dostoiévski, Tolstói, Mann, Faulkner e outros prolíferos escrevinhadores? Duvido. Na verdade, é impossível. Serve apenas para facilitar e sustentar a preguiça e o desânimo de apedeutas, sejam “professores” ou “pupilos”. E, com isso, se privam do melhor e mais rico “testamento” da humanidade, preferindo a ignorância de salamaleques e giros seminus ou tropeções na própria sombra... Fantasiados de docentes ou aprendizes. Quando não se ensina, ou não se está disposto a aprender, o que resta a não ser imitar macacos, funkeiros e exibicionistas? Resta os megalômanos e orgulhosos do TikTok, Instagram e OnlyFans, entre outros menos votados.

De volta ao livro, o final é ao mesmo tempo, trágico e belo. O renascimento na tragédia. A aurora após noite tenebrosa e revolta. Talvez Hemingway tivesse, tal qual o seu personagem, um novo sopro de vida em meio as vicissitudes e percalços. Mas a história, porém, não foi capaz de confirmar esse prenúncio, e sabemos no que deu, infelizmente.

Resta-nos, portanto, apreciar a intricada, mas inteligível, obra de “Hem”, composta de acertos e erros do homem Ernest, mas também do genial escritor; repleto de vida, ainda que esteja sempre a pairá-la a escorregadia e capeada morte.

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Avaliação: (****)

Título: O velho e o mar

Autor: Ernest Hemingway

Páginas: 80

Editora: Livros do Brasil

Tradutor: Jorge de Sena

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Notas: [1] Página 28 e 29

[2] Página 30

[3] Página 37

[4] Página 49

[5] Texto publicado originalmente na Revista Bulunga

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